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Este capítulo trata de uma reflexão sobre tecnologia, ciência e religião como variáveis determinantes no processo identitário do sujeito. Por meio desse diálogo pretendemos compreender como se dá a relação técnica/religião para o indivíduo transplantado em busca de um sentido emancipatório.

Para traçar um parâmetro histórico, recorremos a Marx que foi um dos teóricos que, já no século XIX, refletiam acerca do desenvolvimento tecnológico e suas conseqüências para o indivíduo, a família e a sociedade. Conseqüências estas que devem ser, segundo o autor, interpretadas à luz da contradição imposta pelas normas do sistema capitalista.

Quando faz a crítica em relação ao desenvolvimento técnico/industrial da época, Marx enfatiza que na medida em que a tecnologia permitia sua utilização, seja por pessoas mais fortes, seja pelas mais fracas, no sentido físico muscular, prometendo certa democracia, a mesma tecnologia instituía novas e mais eficazes formas de controle social, pois já naquele momento histórico, tanto mulheres, quanto crianças poderiam fazer parte do mercado de trabalho, porém, com salários menores. A mecanização industrial atinge grande desenvolvimento e a técnica, por meio deste autor, é pensada em relação com a economia e a política. No decorrer

de sua crítica, Marx evidencia as novas necessidades criadas por meio do desenvolvimento da tecnologia como formas de controle capitalista. Essa teoria foi, no século XX, repensada pelos teóricos da Escola de Frankfurt, dentre eles Adorno, Horkheimer e Marcuse. A Escola de Frankfurt desde seu início, por meio de seus fundadores, é marcada por pesquisas e desenvolvimento de teorias a respeito do progresso; eles desenvolveram pensamentos sobre o crescimento da racionalidade tecnológica, mostrando como, na medida em que o progresso técnico rapidamente foi aderido ao sistema dominante, os objetivos políticos e sociais do sistema foram impelidos ao subjetivo.

Para esses pensadores o desenvolvimento da tecnologia não significa a aniquilação dos mecanismos de diferenciação social, dados a princípio pela divisão social do trabalho; ao contrário, há uma desigualdade persistente, o que permite a análise do fenômeno da dominação que sobrevive em si mesmo como poder econômico. Sua obra é desde o início uma crítica ao positivismo por meio de uma reconstituição histórica da reflexão metodológica das ciências humanas.

Habermas, um dos teóricos da Escola de Frankfurt, embora não pertença à mesma geração de Adorno e Horkheimer, afirma em seu pensamento que a neutralidade das ciências não resiste ao exame crítico das condições do conhecimento, sendo que o processo de conhecimento das ciências naturais é orientado como interesse técnico de dominação da natureza. Interesse fundamentado na estrutura da razão instrumental baseada em regras e técnicas de produção e de controle. Por meio dessas regras é que o homem se relaciona com a natureza e a controla.

O desenvolvimento de um pensamento técnico, segundo o pensamento do autor, exige uma crescente intervenção do Estado na estrutura econômica como um sintoma do capitalismo tardio. O Estado, por meio de uma necessidade maior de manutenção e ampliação de infra-estrutura material e social8, apodera-se de verdadeiras forças produtivas sem as quais não há crescimento econômico; são elas a ciência e a tecnologia que, como formas de legitimação das regras de controle social, tornaram-se instrumentos da ideologia dominante. Uma das funções da ideologia dominante é evitar questionamentos sobre os fundamentos do poder; apresentando-o como verdade indiscutível, promovendo, assim, a reprodução social.

Em contrapartida, o interesse que orienta o processo de conhecimento das ciências histórico-hermenêuticas é o da comunicação. Interesse fundamentado pela ação comunicativa baseada por meio de normas lingüisticamente articuladas. Essas normas têm o objetivo de entendimento mútuo sendo o meio pelo qual os homens se relacionam entre si. As formas de conhecimento humano de acordo com seus interesses específicos atuam a favor da emancipação da espécie.

Entendemos, segundo o próprio Habermas, em relação a ambos os conhecimentos que: 1) o instrumental, pela via da produção, visa à satisfação das necessidades externas, libertando o homem da esfera da necessidade e 2) o comunicativo permite ao homem libertar-se dos representantes intrapsíquicos das formas de controle social - permitindo ao homem emancipar-se das formas de repressão social. No entanto, o autor argumenta que de acordo com as regras do Estado liberal cabe à ciência superar a religião por meio da dominação da natureza que contraditoriamente exerce a mesma função da religião, ou seja, livrar o homem

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Refere-se aqui às necessidades de vários setores, como saúde, educação, transportes, comunicação entre outros que são transformados em investimento tecnológico e em desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

do medo, por meio de verdades, da razão dogmática. E assim o mercado e a política, o Estado liberal, seguem na pressão e controle das relações inter-humanas.

Apenas por meio da crítica e da auto-reflexão é que se pode re-significar o processo histórico e conscientizar-se do interesse fundamental, o da emancipação. Assim, o pensamento de Habermas adquire uma perspectiva político-cultural. Da ordem do discurso, numa práxis argumentativa, que parte de uma racionalidade argumentativa.

Habermas (1996), afirma que estamos imersos na tecnologia, de tal forma, que esta acaba por escapar do nosso controle; estamos cercados por produtos de técnica e ciência mediados pelo dinheiro e pelo poder, através da oferta e demanda que regulam a fabricação, a difusão do produto, bem como uma atividade organizada do Estado, que possibilita a utilização desses aparatos, assegurando a infra-estrutura técnica e governando-a mediante uma densa rede de disposição jurídica. A tecnificação da vida cotidiana apresenta-se, para o autor, como uma variável no jogo entre as exigências funcionais do sistema econômico e administrativo e as pretensões do mundo da vida orientadas por valores de uso.

De acordo com a lógica sistêmica das mediações sociais a subjetividade se mantém submetida ao controle tecnológico por meio de uma intervenção desintegradora da técnica em relação ao ser humano. A evolução da técnica, mediada sistematicamente, captura e coloniza o mundo da vida.

Segundo Lemos (2002), o progresso técnico desde a segunda metade do século XIX, é um processo irreversível. É a eficiência maximizada ao extremo que o determina, sendo que a idéia do progresso nunca é objeto de discussão, pois a fala técnica impõe-se sobre a fala de outras ordens, já que, com o advento da

modernidade, entramos numa fase da evolução histórica de eliminação de tudo o que não é técnico, sendo o desafio da modernidade um desafio técnico. O progresso técnico, em progressão geométrica, é a lei simbólica principal do imaginário tecnológico moderno, e a técnica torna-se desenvolvimento das forças econômicas. O simbolismo da técnica moderna encontra-se na potência do artefato como instrumento legítimo de dessacralização da natureza, que transforma, paradoxalmente, a técnica num totem sagrado, num Deus Supremo da sociedade. Uma verdade inquestionável.

Ainda assim, o avanço da técnica é uma produção humana sócio-histórica que nos propõe meios para a preservação da vida. Entretanto, quanto maiores os processos de avanço tecnológico, mais a autonomia é ameaçada no mundo da vida. Se o sentido do uso da medicalização é um "milagre", permanece um caráter regressivo e não emancipatório. Portanto, o que parece determinar se a tecnologia tem um caráter emancipatório ou não é o sentido que lhe é atribuído pelo sujeito. Habermas (2002) refere-se à idéia de uma razão comunicativa, mediada pela linguagem, como possível meio de entendimento para a produção de sentido.

... a razão comunicativa não se apresenta no palco assumindo a figura de uma teoria tornada estética, como se fosse o elemento negativo apagado de religiões que distribuem consolo. Tampouco

ela proclama que o mundo abandonado por Deus é sem

consolo. Nem ela se arvora em consoladora. Ela também renuncia à exclusividade. Enquanto não encontrar no meio da fala argumentativa palavras melhores para caracterizar aquilo que a religião sabe dizer, ela coexistirá sobriamente com esta, sem apoiá-la (...)" (HABERMAS, 2002, p.181/182)

O autor supera as bases do discurso metafísico e lança as condições para um pensamento pós-metafísico, preservando a autonomia da pessoa necessitada de ajuda, principalmente diante das situações de crise de sentido e desorientação provocados pela modernidade. Para Habermas (2004), quaisquer experiências de origem misteriosa manifestadas pelos indivíduos modernos diante da crise de sentido não podem ser colocadas a priori no plano religioso; devem conter a idéia de deflacionar o extraordinário, o que, segundo ele, permite ao indivíduo situar-se distanciado de deduções fantasmagóricas e falsamente universalistas.

As condições para um pensamento pós-metafísico e um comportamento ascético pressupõem essa idéia do deflacionamento do extraordinário - que se apresenta como um processo crítico das manifestações consideradas metafísicas - através da racionalização constante desses fenômenos que distingue o que é ordinário, considerado como passível de explicações lógico-científicas, do que seria considerado pertencente ao campo do extraordinário.

Segundo Habermas (2004), os filósofos pós-metafísicos podem prestar auxílio às pessoas, provocando reflexões que visem a um autoconhecimento racional, respeitando-lhes a autonomia na busca por um sentido de vida. Todavia, não podem deixar de reconhecer a competência do discurso religioso em oferecer consolo e ajuda de vida àqueles que dele necessitam.

Para Habermas (1983),

A ciência moderna se apossou do terreno deixado livre pelo Deus transcendente, que abandonou uma natureza decididamente dessocializada e dessacralizada. A partir do momento em que um sistema de fé completamente eticizado entra em concorrência

com a ciência, inicia-se um processo de destruição dos dogmas que, no final, põem em questão a própria interpretação religiosa da natureza, a natureza como criação. O sujeito cognoscitivo encontra-se então diante de uma natureza plenamente objetivada:a abordagem intuitiva da vida e da essência da natureza - quando não se põe sobre o terreno de uma arte que se tornou autônoma tanto da fé como do saber - é lançada no domínio do irracional...(p. 86)

Apesar de defender a necessidade de diálogo entre os discursos científico e filosófico e religioso, Habermas ainda considera difícil a questão de se lidar com a religiosidade e reconhece que sua concepção, dentro da tradição religiosa, liga-se a uma ética universalista da fraternidade, de uma utopia da comunidade solidária e conciliada, de uma dignidade fundamental igual entre todos os homens, que deriva do relacionamento comum com um único Deus; reconhece ainda que as esferas do pensamento mítico, religioso e metafísico são indispensáveis para a gênese evolutiva (filogênese) dos elementos estruturais da racionalidade teórica e pratica; nega, porém, que essas formas de pensamento hoje ainda sejam necessárias para o pleno desenvolvimento e manutenção das estruturas racionais autônomas.

Habermas declara a insustentabilidade da idéia de Deus e critica a insensatez das proposições teológicas, apesar de o pensamento pós-metafísico não contestar a existência de significados emancipatórios na tradição das grandes religiões. Em sua crítica, ataca as raízes da religião e abre caminho a uma dissolução histórico-crítica dos conteúdos dogmáticos. Nas religiões há um caráter normativo, uma oferta de sentido capaz de propiciar consolo diante das situações individuais de negatividade. Quanto aos riscos individuais da vida, acredita que não podemos pensar numa teoria que seja capaz de dar conta para o sujeito de questões como a solidão, a culpa, a doença e a morte, devendo-se, necessariamente, conviver com elas.

Habermas, enfaticamente, nega as pretensões universalistas da religião, que subtraem do debate público seus fundamentos dogmáticos. Propõe, contudo, que haja a apropriação crítica de significados emancipatórios da tradição, e que estes sejam submetidos ao debate democrático, para seu reconhecimento (ou não) como forma jurídica apoiada na argumentação racional de uma proposta política, que se expõe à discussão pública, a partir de uma ética universal da linguagem.

Habermas (2002) reconhece também que a própria filosofia muitas vezes apresentou-se na defesa da esfera do irracional:

Ela apresentou-se como fé filosófica e iluminação da existência (Jaspers), como mito complementador das ciências (Kolakowski), como pensamento místico do ser (Heidegger), como tratamento terapêutico da linguagem (Wittgenstein), como atividade desconstrutiva (Derrida), ou como dialética negativa (Adorno). (p.47)

O autor se refere ao processo de adaptação, sofrido pela filosofia, às ciências da natureza ou do espírito, que direcionou a filosofia para um caminho da metodologia e da teoria da ciência, história da filosofia e, como última tentativa, para essa guinada ao irracional. Para o autor nenhuma dessas alternativas devolve à filosofia seu papel na sociedade. Para tanto, há necessidade de que se determine o nexo entre ela e ciência hoje; a filosofia precisa sair da rota da exclusividade e do distanciamento em relação ás ciências, bem como, sair da direção de uma assimilação das ciências particulares.

Ela precisa travar relações com a auto-compreensão falibilista e com a racionalidade metódica das ciências experimentais; ela não pode pretender um acesso privilegiado à verdade, nem um método próprio ou um campo próprio de objetos, nem mesmo um estilo próprio de intuição. (HABERMAS, 2002, p.47)

A teoria da racionalidade comunicativa prescinde uma filosofia participante em diálogo com a religião, a ciência e o Estado. Segundo Habermas (2002), a passagem de uma filosofia da consciência para uma filosofia da linguagem, traz vantagens objetivas para o mundo da vida.

Ela nos tira do circulo aporético onde o pensamento metafísico se choca com o antimetafísico, isto é, onde o idealismo é contraposto ao materialismo, oferecendo ainda a possibilidade de podermos atacar um problema que é insolúvel em termos metafísicos: o da individualidade. (HABERMAS, 2002, p. 53)

O agir comunicativo, pode ser “indicado como meio de processos de formação que tornam possíveis, de uma só vez: a socialização e a individuação” (HABERMAS, 2002, p. 57-58), segundo o filósofo, porque o consenso não anula as diferenças das perspectivas entre os falantes:

A função gramátical dos pronomes pessoais constrange falantes e ouvintes a um enfoque performativo,na qual um se defronta com o outro na forma de Alter ego – somente na consciência de sua absoluta diferença e impermutabilidade é possível a alguém reconhecer-se no outro. Deste modo continua acessível, na prática

comunicativa do dia-a-dia, e de modo trivial, aquele algo não-idêntico (...) (HABERMAS, 2002, p. 58)

No caso do objeto e objetivos deste trabalho, a forma pela qual o paciente inserido no programa de transplante ou o transplantado, propriamente dito, reage, vai depender da sua postura quanto aos riscos de vida a que será exposto, do sentido que ele dá à medicalização, ou técnica da medicina, de questões relacionadas a sua socialização e individuação, enfim, de sua forma de agir comunicativamente diante de uma situação de vida e morte.

Vida é transformação e Ciampa (1987/2005), ao descrever as histórias de Severino e de Severina, remete-nos à metamorfose. Visando a própria sobrevivência, o dilema da morte e da vida são vivenciados por Severino, assim como também pelos transplantados, no sentido de vencerem a morte, ganhando a vida através de outro coração.

São inúmeros os Severinos e Severinas; inúmeros também os transplantados, cuja identidade se faz pela própria singularidade, pelo sentido por meio do qual são designados pelas diferentes escolhas a partir de suas histórias individuais, da articulação entre suas igualdades e diferenças. O poema citado por Ciampa (1987/2005) mostra-nos que:

De fraqueza e de doença É que a morte Severina Ataca em qualquer idade E até gente não nascida. (...)

iguais em tudo na vida, morremos de morte igual: mesma morte Severina

que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes do vinte, de fome um pouco por dia

(João Cabral de Mello Neto apud CIAMPA, 1987/2005 p. 22)

Ciampa (1987/2005) descreve que a identidade é constituída também por vidas ainda não vividas e por mortes ainda não morridas, mas que já estão contidas em suas condições atuais, e que emergirão como desdobramento de um tempo severino. Então, da mesma forma que Severino se descobre morto-ainda-vivo, o paciente que, ansiosamente, espera um coração, vive a angústia da ameaça da vida. Sua identidade vai se engendrando, alguns esperam a morte, outros a vida. Severino se transformou: sua vida adquiriu novo significado, ao ver encarnada a vida num recém-nascido, como o transplantado que encarna uma nova possibilidade de vida salvando-se da morte. É um vir-a-ser. O desejo de Severino de encontrar a vida, segundo Ciampa, pode ser traduzido em concretizar uma identidade humana. Conclui esse autor, através do poema de João Cabral de Melo Neto:

E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio

(que também se chama vida), ver a fábrica, paciente

que ela mesma se fabrica, vê-la surgir como há pouco

em nova flor explodida.

(Apud CIAMPA, 1987/2005, p. 37)

Severino encontrou a vida, cujo valor, segundo Ciampa (1987/2002), é o de reconhecer-se como humano; é o de ser identificado e o de identificar-se humano. O transplantado, por meio de seu drama, de seu sofrimento, da dor sentida, da luta pelo viver encontra seu renascimento, através de outro coração. A medicalização essencial a esse paciente, como para tantos outros, é uma necessidade que, aliada à produção de sentido nesse ciclo dramático da vida, pode levar à salvação, mesmo que provisória, mas que, certamente, promove metamorfoses emancipatórias.

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