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Do São João na Roça à Capital do Forró

3 FESTAS JUNINAS EM CARUARU

3.1 Do São João na Roça à Capital do Forró

Os festejos juninos157 estão entre os mais tradicionais do país, sendo os de Caruaru, na atualidade, um dos eventos mais conhecidos do Brasil158. A festa de São João da cidade se constitui importante evento para o lazer e para a movimentação econômica, através do turismo e seus serviços, bem como na divulgação de grandes marcas de produtos e outros bens culturais. Mega-evento, a festa conta, atualmente, com patrocínios de empresas nacionais e multinacionais e verbas públicas municipais, estaduais e nacionais, através de seus órgãos específicos, tais como Fundação de Cultura de Caruaru, EMPETUR, EMBRATUR e Ministério do Turismo. Para chegar a esta grandiosidade, apenas a ação popular, como ocorria

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Entendemos esta expressão comoChianca (2007, p. 45)“conjunto de manifestações festivas associadas aos santos católicos Antônio, João e Pedro.” Outras expressões com o mesmo sentido são “Festas de São João” e “Festas do ciclo junino”. Em nosso texto, também reproduzimos expressões utilizadas no século XX, tais como “sanjuanescas” e “sanjoanescas”. Na Europa, segundo folcloristas, suas origens estão ligadas aos rituais que se utilizavam do fogo, nos dias 22 a 24 de junho, na celebração do solstício (BORBA, 2005). Noutra versão, há uma lenda que associa as fogueiras juninas com uma fogueira acesa por Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus, no dia do nascimento de João Batista (MELLO MORAES, 1999; BORBA, 2005)As festas juninas, no Brasil, foram trazidas pelos portugueses, em meados do século XVI (LIMA, 2002) e relatos das celebrações juninas são identificadas em diversas regiões, como exemplo Rio de Janeiro, Salvador, Sergipe e Recife, no século XIX. (MELLO MORAES, 1999).

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nos anos 1970, não seria suficiente. Centralizada no Pátio de Eventos, localizado no Espaço Cultural Tancredo Neves159, no Centro, a festa principal recebe, durante um mês inteiro de comemorações160, em estimativas, quantia superior a um milhão de pessoas161, em busca de lazer e cultura, num cenário de cores, luzes, sorrisos constantes, euforia, e também, brigas, super-aglomeração, pequenos furtos, etc. O local da festa comporta, segundo dados publicados na mídia, cem mil pessoas, que se distribuem entre o palco principal, as barracas de bebidas, os bares e os “forrós pé-de-serra” (barracões com trios de forró).

Mesmo com atrações questionadas como não sendo representantes do que seria um “verdadeiro” forró, tais como as bandas de “forró estilizado”, o discurso sobre a festa é de “tradição”, de evocação às festas de tempos passados. Em 2009, por exemplo, centrou-se a homenagem ao centenário de nascimento do artesão Mestre Vitalino162, utilizando-se de sua imagem de “artista popular”, portador da tradição cultural de Caruaru. O slogan da festa era “A Tradição do Melhor São João”. A questão da “tradição” pode ser pensada, nesse sentido, como citado anteriormente, a partir de Hobsbawn e Ranger (2006), que entendem que as mesmas podem ser inventadas. Sabemos que a comemoração junina é antiga, não apenas em Caruaru, mas no país inteiro. Porém, essa festa que, hoje, é chamada de tradicional, numa conotação de antiguidade, era pouco comentada nos livros, nos jornais e nas músicas sobre Caruaru de tempos anteriores a 1960. Este formato atual, por exemplo, tem apenas 25 anos e é completamente dependente de patrocínios. Da mesma forma, o formato de rua, que transformou as festas juninas de Caruaru famosas advém, apenas, do final dos anos 1960.

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Em 1985, o complexo da Fábrica Caroá, falida em 1978, foi doada pelo Banco do Brasil à Prefeitura Municipal de Caruaru. O espaço foi organizado e, a partir de 1995, comporta os festejos juninos da cidade. 160

Em 2009 foram 40 dias de festas, devido à comemoração do centenário de nascimento do Mestre Vitalino, no dia 10 de julho. Nesse ano, 32 dias ininterruptos de atrações.

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Revista “Gol Linhas Aéreas Inteligentes” de junho de 2010 indica que a organização da festa esperaria dois milhões de pessoas o mês inteiro.

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Vitalino Pereira ou Mestre Vitalino é das figuras mais conhecidas de Caruaru. Artista do barro e tocador de pífano, nos anos 1950 e 1960 fez muito sucesso no Brasil e no exterior, principalmente, na França. Houve uma grande disputa acerca da personagem Mestre Vitalino entre os intelectuais regionalistas e os nacionalistas no que diz respeito à sua obra: os primeiros diziam que ele era portador da cultura nordestina; os outros afirmavam que ele era representante do folclore nacional. Um bom estudo sobre este tema está em Santos (2006). A figura do Mestre Vitalino é tão forte que existem dezenas de músicas tratando de seu nome e sua obra. Algumas delas são: Caldeirão dos Mitos (Bráulio Tavares), Elba Ramalho; Leão do Norte (Lenine e Paulo César Pinheiro), Lenine; Mestre Vitalino (Eduardo Fittipaldi), Os Mocambos; Vitalino (Onildo Almeida), Marinês; Menino de Barro (Valdir Santos), Valdir Santos; Deus do Barro (Petrúcio Amorim, Marron Brasileiro e Rogério Rangel), Petrúcio Amorim; Barro Cozido (Érisson Porto), Érisson Porto; Cem Anos de Vitalino (Rominho, Kayto e Zé Carlos), Som da Terra; Pai de Barro (Paulo Fernando e Roberto Andrade), Banda de Pau e Corda; Vita, Vitalino (Sandro Dornelles e Luis Pimentel), Sandro Dornelles; A Feira de Caruaru (Onildo Almeida), Luiz Gonzaga; Alto do Moura (Kuarup), Kuarup; O Mundo de Barro do Mestre Vitalino (Samba Enredo da GRES Império da Tijuca, 1977); Sambas enredo da Mocidade de Padre Miguel (1978), Beija-Flor (1982), Unidos da Tijuca (1983). No teatro, Vital Santos criou a peça “Auto das Sete Luas de Barro”, noticiada na revista Veja, nº 608, 30 de abril de 1980..

Mesmo assim, a festa do ciclo junino da cidade continua a ser proclamada como tradicional numa evocação a um passado distante.

A festa de hoje está dentro da lógica das grandes “festas-espetáculo”163

, motivadas pela movimentação econômica, em especial, do turismo, investimentos capitalistas e “capital político” (todo candidato a prefeito tem que ter um projeto especial, no seu plano de governo, para as festas juninas). Algumas opiniões, vindas da mídia, de políticos, de artistas ou outros setores da população, alegam que é uma “festa para turista ver”: o cenário, o espaço, as atrações e o público formariam um ambiente para a atração turística, descaracterizando uma festa tradicional. O povo da cidade seria um mero figurante, um ser passivo nas comemorações, esperando a ação dos órgãos oficiais. Discordamos desta opinião amparando- nos nas idéias de Michel de Certeau (1994) acerca da recepção e ressignificação dos produtos e bens culturais consumidos pelos anônimos, os “homens ordinários”: o povo participa da festa não como um ser passivo, mas, como um indivíduo que reelabora os seus elementos de acordo com suas vontades, possibilidades e entendimentos. A festa, como um bem cultural, não é recebida e assimilada homogeneamente e passivamente pelos “anônimos”: ela sofre as adaptações a partir da realidade de cada indivíduo que dela participa. Um exemplo disto seria a convivência deste formato de festividade junina espetacularizado com as festas particulares (familiares, escolares, ambientes de trabalho), com as festas em algumas ruas, com as festas das “comidas-gigantes”164

, bem como com as centenárias fogueiras defronte das casas, a soltura de fogos, o consumo de comidas típicas, etc. A própria ida da população à “festa- espetáculo” é motivada pelo lazer, pelo “espírito junino” dos caruaruenses ou pela própria idéia, principalmente, entre os mais jovens, de que este é o festejo junino de Caruaru propriamente dito e, por isto, precisa ser vivenciado.

Em todos os anos da história recente de Caruaru, já nos meses de abril e maio, a espera da festa pela população gera ansiedade e debates acerca da programação, com suas atrações e

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Sobre as “festas-espetáculo”, afirma Farias (2005, p. 7): “compreendem acontecimentos que compõem um circuito de eventos-espetáculo cosmopolitas definidos em razão do forte apelo mercantil das atividades desenvolvidas, as quais estão voltadas para a prestação de serviços de diversão e turismo e situam-se nos fluxos translocalizados dos símbolos pelas redes midiáticas.

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Há uma prática festiva em Caruaru, surgida nos anos 1990, que é uma reelaboração das antigas festas de rua: são as comemorações das “Comidas-Gigantes”: nelas, os moradores de uma rua organizam uma festa junina que dura um ou dois dias no qual a atração principal é a confecção de uma iguaria que possa ser degustada por centenas de pessoas. Existem, assim, a “maior pamonha do mundo”, “maior pé-de-moleque do mundo”, “maior arroz-doce do mundo”, “maior cuscuz do mundo”, “maior munguzá do mundo”, “maior quentão do mundo”, dentre outros. Vale salientar que, desde os anos 1970, havia a queima da “Maior Fogueira do Mundo”, no Pátio do Convento, na véspera de São Pedro: a fogueira possuía mais de dez metros de altura. Nos últimos tempos, por questões ecológicas, esta prática vem diminuindo, a ponto de não ocorrer em certos anos.

formatos. “Tradicionalistas” e “progressistas” argumentam, a favor ou contra, cada um à sua maneira, sobre a manutenção ou não dos elementos juninos da cidade165. Isto ocorre devido ao fato das festas juninas em Caruaru terem sofrido modificações recentes, havendo pessoas que conviveram com formatos anteriores. Foram várias transformações e convivências simultâneas até chegarmos ao atual modelo: até o começo dos anos 1960, a festa de São João seguia um modelo “rural”. De meados da década de 1960 até os anos 1980, criou-se o São João urbano, o São João de rua, nosso tema de maior interesse, que rendeu a Caruaru a fama de “Capital do Forró” ou de “maior” ou “melhor São João do Brasil”. Dos anos 1980 em diante, veio a “festa-espetáculo”, centralizada em algum espaço principal do Centro166

ou, como hoje, no Pátio de Eventos Luiz Lua Gonzaga.

A intenção deste capítulo não é tratar desta última fase, da festa-espetáculo dos anos 1980 até os dias atuais, mas, sim, mostrar como Caruaru foi construindo o seu nome de “Capital do Forró”, expressão que ostenta desde os anos 1980, fruto de suas festas juninas surgidas na fase da “festa urbana”. Por isto, faremos uma análise de como a cidade, entre as décadas de 1960 e 1980, modificou as suas festas juninas, saindo de um modelo “rural” para um modelo “urbano”, o São João de rua. Vale salientar que diversas outras cidades, inclusive pernambucanas, também faziam festas juninas com estes mesmos elementos caruaruenses. Assim, pretendemos mostrar como a população, empresários e poderes públicos transformaram a festa junina no principal evento da cidade e num dos maiores elementos identitários de Caruaru, exatamente quando as outras festas da cidade estavam desaparecendo. A decadência da Festa do Comércio e do Carnaval e o simultâneo crescimento das festas juninas demonstram como a cidade estava passando por mudanças em sua estrutura social, econômica, política e cultural. Uma cidade que sofria transformações internas e externas, motivadas pelas mudanças na própria história brasileira do período. De uma cidade que possuía suas tradições decenais ou seculares, respectivamente, Carnaval e Festa do Comércio, ligadas às elites patrocinadoras, para uma cidade que escolheu uma manifestação cultural que, apesar de antiga, não ocupava o lugar central nas tradições municipais, porém era mais aberta à participação popular. A mídia escrita é uma prova destas mudanças: em 1960, por exemplo,

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Para se perceber como a festa junina gera debates, observemos dois exemplos: Bezerra (1980; 1983) alega que as festas de rua se constituíam de uma descaracterização do folclore junino de Caruaru, o São João da Roça, e que, “o suplicante tem que pagar os olhos da cara para arrastar os pés, balançar o esqueleto num forró [de palhoça de rua] qualquer. Leite Filho (1994), por sua vez, coloca as festas juninas como renovadas graças ao turismo.

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Entre meados dos anos 80 e o ano de 1994, a festa ocorria nas adjacências da “Coletoria Estadual” e na Avenida Rui Barbosa. A partir de 1995, foi transferida para o “Pátio de Eventos”, denominado anteriormente de “Pátio do Forró”.

na edição de 26 de junho(apenas dois dias após o dia de São João), o principal jornal da cidade, que era semanal, não fazia nenhuma menção a festas juninas em Caruaru! Já em 1986, o mesmo semanário trazia o seguinte título de matéria no período momesco: “Já é Carnaval na Terra do Forró”167

. O que teria ocorrido nestes 26 anos?

Portanto, para realizar esse intento, delimitamos como período histórico deste capítulo os anos que vão de 1962, onde começaram os concursos de quadrilhas na cidade que ajudaram a transformar as festas juninas em um modelo urbano, até 1985, momento em que as festas passam a ter proporções de mega-espetáculo. No entanto, antes, precisamos citar as festas rurais, o “São João da Roça”, que ocorriam antes dos anos 60. Isto será necessário para que possamos entender que as festas juninas já existiam, já faziam parte das práticas culturais da cidade, mas, não eram citadas com a importância que teriam posteriormente. Elas não eram consideradas tradicionais, pela população, principalmente se comparadas com Festa do Comércio e Carnaval.

Este capítulo começará, então, mostrando como era festejado o ciclo junino de Caruaru antes dos anos 60. Depois, mostraremos como o modelo de São João urbano foi sendo criado e como população, mídia, empresários e poderes públicos foram forjando o modelo junino urbano, o São João que tornou a cidade famosa nacionalmente. A construção desta imagem que relaciona Caruaru aos festejos juninos passou pela música junina, o forró: Caruaru, além de fazer grandiosas festas de São João, tornou-se a cidade mais cantada em termos juninos, tendo este conceito sido massificado através de centenas de forrós cantados por diversos artistas e tocados nas rádios, de Caruaru e outras cidades, chegando-se ao ápice com a música “Capital do Forró”, gravada em 1980. Este título construído para Caruaru foi e é utilizado pela população, meios empresariais e poderes públicos como uma bandeira que representa importante identidade da cidade: Caruaru é a terra do Mestre Vitalino, da Feira de Caruaru cantada por Luiz Gonzaga, mas, também, é a “Capital do Forró”.

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