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TABELA 4: POPULAÇÃO URBANA DE CARUARU

1.2 Festas e Tradições

1.2.1 Sobre Festas

A antropóloga Rita Amaral (1998) afirma que quem primeiro pensou numa definição, em tempos recentes, para “festa”, foi Sigmund Freud: “um festival é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma proibição” (FREUD apud AMARAL, 1998, p. 37). Já Isambert (apud AMARAL, 1998, p. 40), define a festa como “celebração simbólica de um objeto (evento, homem ou deus, fenômeno natural, etc.) num tempo consagrado a uma multiplicidade de atividades coletivas de função expressiva”. Rita Amaral (1998) atesta que a festa é o lugar da transgressão consentida da ordem, é o lugar da ruptura, do extraordinário. Por uns instantes, a festa reinventa a sociedade que a criou. A festa, simultânea ao cotidiano, comemora o nascimento, a colheita, o rito de passagem, o casamento, a morte, a guerra, a independência, as “identidades”.

Para Durkheim(apud AMARAL, 1998), as festas têm como características a superação das distâncias entre os indivíduos, a produção de um estado de “efervescência coletiva” e a transgressão das normas coletivas. Sobre a “efervescência”, Durkheim afirma que a mesma “muda as condições da atividade psíquica. As energias vitais são superexcitadas, as paixões mais vivas, as sensações mais fortes” (DURKHEIM apud AMARAL, 1998, p. 28). Os indivíduos, ao frequentaram o espaço da festa, mudam seus modos de agir e de pensar, momentaneamente, agindo sob impulso de influências externas, como a música, a dança, a

bebida, os comportamentos dos outros, e internas, as suas emoções, sensações, concepções religiosas, etc.

A festa é um evento necessariamente coletivo: o envolvimento do grupo é essencial para o seu acontecimento. As festas têm grande poder aglutinador, posto que, momentaneamente, integram grupos sociais antes separados pelos mais diversos motivos. É “um momento de espera, de expectativa de um mundo „outro‟, de um espaço e de um tempo diferentes do cotidiano” (ARAÚJO, 2008, p. 37). Durante as festas, pode haver uma destruição das diferenças entre os indivíduos, através de atos e de simbolismos (AMARAL, 1998). Nos atos, percebe-se o uso do recurso da violência e do conflito. Nos simbolismos, aparece o sacrifício, o holocausto. No sacrifício, não necessariamente haverá a morte de uma vítima: a destruição pode ser de bens simbólicos e materiais, demonstrando que a festa tem um “preço”.

As festas não são uma fuga do cotidiano, mas, um evento contíguo a este. Diferem dele devido à amplitude e densidade que possuem (AMARAL, 1998). A relação entre festa e cotidiano não é de oposição, subversão ou desordem, mas, de diferença: “festejo não é um momento especial fora do universo cultural cotidiano, contudo instaura uma diferença no cotidiano, promovendo também uma multiplicidade de possibilidades” (ARAÚJO, 2008, p. 37). Da Matta (2006) fala sobre os eventos sociais como pertencendo a dois pólos: o “formal” e o “informal”. Neste último, estariam as festas, fundadas na idéia de espontaneidade, na despersonalização e na “quarentena” da hierarquia. Neste sentido, a passagem dos acontecimentos cotidianos para o “extra-ordinário” traria transformações no comportamento, nas relações, no trabalho, criando condições para que eles sejam percebidos como especiais. Ainda para o mesmo autor, “as festas, então, são momentos extraordinários marcados pela alegria e por valores considerados altamente positivos” (DA MATTA, 2006, p. 52).

A festa tem o seu lado “rebelde”: algumas delas, simbolicamente, questionam autoridades, hierarquias e modelos sociais, num ritual de inversão35. No Carnaval, por exemplo, veste-se um “pobre” de realeza. Mudam-se os papéis sociais de homens e mulheres. Há a mistura de grupos sociais, fazendo os indivíduos se “perderem” na multidão. Reproduzem lendas e mitos de um passado atemporal, através de fantasias e alegorias.

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Para Da Matta apud Amaral (1998, p. 53), os rituais podem ser divididos em três grupos: de separação ou reforço (onde uma situação ambígua torna-se claramente marcada); de inversão (onde há quebra dos papéis rotineiros) e de neutralização (combinação dos anteriores).

Mesmo sendo coletivas, o sentido das festas não é igual para todos os povos e todas as pessoas de um lugar. Inclusive, nas festas, a criatividade e as alternativas criadas indicam que os grupos sociais, simbolicamente, estão demonstrando suas estratégias de organização, de luta pelo poder. Entendendo as festas contemporâneas como bens simbólicos dentro do capitalismo, portanto bens consumíveis, vemos que a assimilação dos que festejam não se dá de forma passiva, mas, como afirma Certeau (1994), as pessoas “anônimas”, os “ordinários”, vivenciam as festas reelaborando os seus significados, a partir das suas estratégias do cotidiano.

Mas, na festa, também há lugar para a manutenção da “ordem”. A divisão hierárquica e social pode ser percebida nos lugares onde uma mesma festa é comemorada: um cordão de isolamento pode significar proteção, mas, também, segregação. Um camarote pode ser uma forma de dar melhor visibilidade, mas, também, demonstrar quem tem mais poder econômico e político. Um desfile militar, onde a ordem e a sincronia são essenciais, podem indicar as relações de poder. (DA MATTA, 2006).

Christine de Alencar Chaves(2003), que pesquisou sobre a relação entre política partidária e festas, aponta para o caráter simbólico das festividades: as mesmas devem ser vistas como um “mundo de referências” no interior do sistema de representações sociais. Inclusive, a festa possibilita que “o lugar” das pessoas seja ocupado: os nativos e os “forasteiros” tecem uma relação de “poder” entre os que são “donos da tradição” e os que são “portadores das mudanças”. São feitas, assim, trocas culturais e trocas econômicas entre os “de casa” e os “visitantes”.

Para Mary Del Priore (apud AMARAL, 1998), as festas brasileiras podem ser agrupadas em, ao menos, duas grandes categorias: as festas promovidas pelo Estado e pela Igreja e as festas do povo. Porém, durante o período colonial e, até mesmo, imperial, devido às questões próprias da formação brasileira, o povo organizava festas religiosas, dando-lhes um sentido que mesclava, num mesmo evento, o “sagrado” e o “profano”, sendo o primeiro ligado às questões religiosas e o segundo aos comportamentos não religiosos,a saber a comida, a bebida, a dança,etc (DEL PRIORE apud AMARAL, 1998). No período medieval europeu, esta distinção (sagrado x profano) não era vista, como indica Mello Moraes (1999), surgindo, apenas, a partir do mundo moderno, no período da Reforma. Portugal, no entanto, trouxe para o Brasil uma herança diferente desta que se formava na Europa moderna, o que

ajudou a forjar as festas brasileiras com este formato singular indicado por Del Priore, de mesclagem dos elementos “sagrados” e “profanos”.

Rita Araújo (1996), sobre as festas brasileiras da Colônia e do Império, demonstra que, nelas, a comemoração com bebidas, danças, festas, desfiles era um complemento da celebração religiosa, sem que houvesse uma relação de dualidade, mas, sim de complementaridade, até mesmo pelas condições sociais da época, que não favoreciam muitas formas de encontro social entre os habitantes do Brasil. A autora aponta para a festa como “ambigüidade”: ela refere-se a um objeto sagrado ou sacralizado, mas, tem necessidade de comportamentos profanos, como exemplo, as celebrações do Candomblé, em cuja festa se louvam orixás ou iniciação, tendo preocupações com comida, bebida, decoração, etc. (AMARAL, 1998, p. 38). Seria até mesmo difícil separar o profano do sagrado, pois, um estaria dentro do outro. Nos bailes pastoris, por exemplo, apesar da “presença” dos santos, os reis magos e os pastores saudavam o Divino Menino com temas e títulos profanos como “Baile da Aguardente”, “Baile da Patuscada”, etc.

Certos autores, principalmente os folcloristas, defendem que as festas, de forma geral, estão se acabando36. Em seus argumentos, as tradições populares estão se perdendo com a industrialização e a urbanização37. Mas, Rita Amaral (1998), na realidade brasileira, o que ocorreu foi a mudança de sentido e de formato nas festas. Enquanto umas, de fato, sumiram porque não faziam mais sentido para a população, outras sofreram modificações38. Em algumas delas houve, até mesmo, um enriquecimento de seus ritos, símbolos, amplitudes, etc.: é o caso do Carnaval, do Círio de Nazaré e do São João nordestino. Umas foram reinventadas de acordo com as novas condições de vida resultantes dos novos contextos econômicos e sociais. Noutras, ainda, fragmentaram-se em diferentes formas de festejar. E, outras, ainda, desapareceram em alguns lugares, fortalecendo-se em outros, que passaram a atrair mais e

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Lipovetsky (2007) indica que muitos acreditavam que as festas estavam perdendo seu espaço na sociedade capitalista. No entanto, o autor verifica que as mesmas não apenas ganharam mais espaço como sofreram transformações simbólicas.

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Este debate é percebido nos jornais caruaruenses com relação à Festa do Comércio e o Carnaval, durante os anos 60 e com relação ao São João de Rua, nos anos 80. Um exemplo disto seria o autor caruaruense Agnaldo Fagundes (1983)

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Novamente vemos o exemplo caruaruense: a Festa do Comércio (a partir dos anos 1930), por exemplo, que começou como celebração religiosa de Nossa Senhora da Conceição, que ainda existe, era fruto de um momento histórico no qual as relações de poder estavam bem definidas e as “classes conservadoras”, os ricos, tinham o monopólio sobre a sua organização e feitura. O Carnaval, apesar de ser uma festa universal, como atestam alguns autores, era patrocinado, em Caruaru, por empresários que, ou por perderem o estímulo, diminuírem as possibilidades econômicas, dentre outras, não continuaram investindo no período momesco, deixando os investimentos para a prefeitura do município, fazendo com que este declinasse até o estágio final nos anos 90. Já os festejos juninos, readaptaram-se e tornaram-se, de festas na roça em festas urbanas.

mais festejadores. No caso caruaruense, o São João é um exemplo de festa que foi re- elaborada, reinventada, adaptada à nova realidade da população e do mercado. A Festa do Comércio, diversão natalina, foi sendo substituída pelas ceias familiares e por viagens. E o Carnaval da cidade perdeu espaço para os concorrentes carnavais litorâneos ou da capital de Pernambuco.