• Nenhum resultado encontrado

O século das Luzes – a Ilustração

No documento Análise da imagem em manuais escolares (páginas 179-182)

9. Alguns marcos prévios às questões da análise e avaliação de imagens

9.2. A imagem impressa e didáctica – resenha histórica

9.2.4. O século das Luzes – a Ilustração

O século XVIII é ainda considerado o século das luzes, capitaneado intelectualmente por homens como Voltaire, Diderot, e com legados filosóficos de Rousseau e Descartes, Kant, Leibniz e David Hume é um período em que a luz natural há-de elucidar a vida do homem. Da reflexão nascida da experiência e da observação há-de surgir também a sua “libertação”. “Os filósofos das Luzes são pessoas que só confiam na experiência, que se interessam pela ciência teórica, pelas técnicas, pela vida quotidiana, pelas transformações dos costumes“ (Châtelet, 1993, p. 94). O século XVII e XVIII são pois pela via de uma intervenção mais burguesa do que da corte, gérmens das academias de ciência e da devoção crescente a esta. As ideias da ilustração que seguiram da Inglaterra para França e depois para outros países deram relevo à razão e ao positivismo. Surgiram então as primeiras revistas científicas e filosóficas como surgiu também a grande enciclopédia de Diderot e D`Alembert. Esta é uma obra extraordinária “combinando um estudo do saber livresco do tempo com uma reflexão sobre a técnica e sobre a vida de todos os dias [e aonde é admirável ver a minúcia com que é reproduzido], ―o trabalho do sapateiro, do marceneiro, etc. As ferramentas utilizadas, as madeiras…tudo sendo objecto de descrição minuciosa‖ (Châtelet, 1993, p. 95). À imagem, agora tomada como ferramenta do conhecimento, da explicação e da substituição vicária da realidade, era dado um relevo, por esta via, até aí nunca alcançado. Verdadeiramente pode falar-se também de imagem instrutiva ou didáctica em muitas das publicações da altura. Em vários países há exemplos de boas obras com funções de divulgação sobre variados assuntos. No campo puramente literário também o recurso às imagens se impunha. Em Espanha é publicada talvez a melhor edição de sempre de D. Quixote de la Mancha, em quatro volumes, integrando imagens muito adequadas e expressivas, por Joaquim Ibarra em 1780. Também o Robinson Crusoé de Dafoe se sujeitou a ilustrações de cariz naturalista e ambientalista. Na Dinamarca surge uma bela obra em diversos volumes Flora Dinamarquesa, com belas placas de cobre que foram coloridas à mão e procuraram registar com mais verosimilhança a natureza local.

O espírito deste período dito “das Luzes”, era porém de tal modo aberto e de tão grandes convicções, imbuído de uma espécie de missão face ao desejo de expansão do conhecimento que levou autores actuais como Hesse, C. (1998, p. 29), a interrogar-se sobre a similitude entre as descrições actuais do novo texto electrónico e dos modos de textualidade inventados e explorados pela imprensa do século XVIII:

O jogo livre com o formato do livro, a emoção da combinação de imagens, música e texto, a reafirmação da linha editorial por cima da voz do autor, a noção de texto como um boletim de anúncios e, além disso, como uma rede transparente para o intercâmbio de palavras. O século XVIII também foi testemunho da experimentação de microtecnologias como maneira de colocar o poder da publicação ao alcance de cada cidadão. Em 1789, Condorcet, teve a fantasia de usar estas novas tecnologias de impressão a toda a França... e, de facto, converteu-se num participante chave na formação de um grupo editorial multimédia que experimentou com todos estes modos de publicação e circulação.

Condorcet lutava, àquele tempo, mais em prole da divulgação e extensão do conhecimento numa possível interacção informativa do que pela manutenção de uma divulgação monolítica que interessava prioritariamente à monarquia absolutista. Uma das suas interrogações é exemplo disso: “Como pode então ter uma delas [as mentalidades] o direito exclusivo de ser a fonte de ditas ideias ou informação?”112.

De um modo geral a propósito deste glorioso século XVIII, e na problemática que nos ocupa podemos dizer com Sousa (1999, p. 145): “No século XVIII a ilustração converte-se em livro, até ao ponto em que nalguns casos, o texto é só um pretexto. É o triunfo do livro ilustrado”. Curiosamente a Revolução Francesa de fim do séc.XVIII provocou, ao menos no princípio, um retrocesso da ilustração e do próprio uso da imagem particularmente na sua forma mais refinada e artística. Segundo Hesse (1998, p. 30), houve um “desmantelamento do sistema corporativo do antigo regime e a sua substituição por um mercado livre no mundo das ideias‖. O problema foi a anarquia subsequente e nada aconteceu como Condorcet predicara. De qualquer modo e ainda como diz Renonciat (2004): “o movimento europeu das revoluções começadas em 1848, oscilando entre revolução e reacção, coincide com um alancar excepcional da imprensa em todas as suas formas, e em particular da edição ilustrada, da caricatura e da imagem popular”. Por esta altura surgirão as primeiras reportagens ilustradas de acontecimentos tomadas ao vivo – cenas de barricadas, fuzilamentos e outras cobrindo variadíssimas nuances do comportamento e emoções humanas: do trágico ao heróico, do burlesco e humorístico ao laudatório e que circulavam com rapidez inédita. A vontade do povo, a ânsia de novidades perante a dinâmica da evolução político-social criou uma rede comunicacional própria onde a imagem ganhava franco protagonismo, em favor do panfleto, do livreto ou da folha e jornal volante e em desfavor do convencional livro. Nunberg (2000, p. 174) citando uma carta do escritor Stendhal aonde este dá conta da sua estranheza ao

112 In: Marie-jean-Antoine Caritat, Marquis de Condorcet (1776). Fragments sur la liberté de la Presse. In

encontrar, numa pequena povoação de França, dois ou três “cabinets de lecture”, graças aos quais a média mensal da leitura de novelas (ilustradas) por uma só mulher, podia exceder facilmente os vinte volumes (ibid.).

Com a expansão das conquistas de Napoleão e com o afinco declarado deste a constituir um diversificado e grande espólio bibliográfico feito, a maior parte das vezes, do saque dos países visitados em campanha, houve um denodado interesse pelo valor dos livros, não só a nível particular como institucional. O interesse coleccionista e a bibliofilia incrementaram-se ao nível dos países mais avançados e começaram a realizar-se leilões sociais de livros efectuados com grande aparato e interesse.

A gravura em madeira teve agora, e desde a sua origem, um influxo novo após quase dois séculos de quase estagnação, no momento em que, por voltas do primeiro quartel do século XVIII se começou a usar uma madeira de extrema dureza, o buxo e que permitia um detalhe de impressão próximo ao da chapa em cobre e com as vantagens do uso da madeira, nomeadamente na impressão simultânea com o texto. Surgiram então refinados gravadores nomeadamente em França como Daumier e Gustave Doré que, além de prolíficos imprimiam uma qualidade expressiva assinalável aos seus trabalhos, particularmente tirados do real ou a ele referidos. De assinalar também para o nosso estudo o desenhador e gravador Bewick que, em Inglaterra, havia conseguido, usando esta técnica, fidedignas reproduções sobre mamíferos e aves com grande riqueza de detalhes e a busca da identidade caracterial do animal como espécie, um pouco à maneira do que fazem hoje os grandes ilustradores da natureza e praticantes do dito “desenho científico”, conseguindo, simultaneamente, embaratecer todo o processo de impressão de imagens. Por esta via foi-se abrindo cada vez mais o caminho que conduziu a um uso mais massificado de ilustrações em variados suportes e com vários fins. Nomeadamente, interessa referir neste período a importância conferida por Lineu (1707-1778) à sistematização do estudo das ciências naturais, particularmente o da botânica. Lineu estabeleceu segundo Bruzzo (2004, p. 1364), as bases da taxionomia moderna, aonde o conceito de “espécie” assentava no reconhecimento de alguns caracteres essenciais, considerando-se os demais acessórios. Neste pressuposto, e ainda segundo aquela autora, as imagens utilizadas poderiam assentar numa simples esquematização em vez de um rebuscado iconismo. Na verdade o esquematismo proposto por Lineu era completado com o recurso da palavra, ou melhor, a nomenclatura latina baseada na designação binomial de nomeação dos seres, e assim se harmonizavam os dois discursos num encaixe funcional e credível. Era a forma adequada talvez já prevista por Plínio, O Velho, quando se lamentava de que só a palavra era ineficaz, como também ineficaz era o uso exclusivo da imagem, particularmente a possível de reproduzir para divulgação na Antiguidade Clássica. De outro modo, só a minúcia do desenho científico moderno, no seu hiper-realismo sujeito mesmo assim a critérios de selecção e exposição próprios consegue transmitir visualmente toda a informação pertinente no desenho taxionómico. Interessa referir ainda por esta via, e no antecedente ao moderno desenho científico, a Buffon (1707-1788), famoso pela edição da sua História natural, em 44 volumes, que partilhava a opinião de que “conhecer uma espécie significava descrevê-la com atenção para questões gerais que seriam reveladas pelo exame detalhado de cada espécime”

(Bruzzo, ibid., p. 1364), devendo actuar as imagens em conformidade descritiva, o que pressupunha também um afastamento do esquematismo científico de Lineu.

No documento Análise da imagem em manuais escolares (páginas 179-182)