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S ERVIÇOS DE UTILIDADE PÚBLICA NA DOUTRINA NACIONAL

2. I NTERPRETAÇÃO DOUTRINÁRIA DA INTRODUÇÃO DOS SERVIÇOS DE UTILIDADE PÚBLICA NO

2.1. S ERVIÇOS DE UTILIDADE PÚBLICA NA DOUTRINA NACIONAL

A noção genérica de public utility norte-americana não raro é utilizada como ponto de partida por autores brasileiros no intuito de tratar dos serviços de utilidade pública. Para fins deste estudo, abordaremos como referencial teórico autores clássicos, contemporâneos à implementação mais intensa dos serviços de utilidade pública no Brasil, quais sejam: Bilac Pinto, Francisco Campos, Odilon de Andrade, Alfredo Valadão, dentre outros.

De maneira simplificada, para Odilon de Andrade, nem toda utilidade oferecida à sociedade poderá ser elevada à categoria de serviço de utilidade pública. Para que o seja, é preciso haver a conjugação de duas condições essenciais: (i) deve haver o atendimento a uma necessidade geral, igual e intermitente; e (ii) as circunstâncias devem forçar a intervenção do Estado como única maneira de solucionar questões relacionadas ao suprimento159.

159 Para maiores detalhamentos, conferir: ANDRADE, Odilon C. Serviços públicos e de utilidade pública. São

Telmo Vergara esclarece que há uma utilidade imediata nos serviços públicos e nos de utilidade pública, mas a intensidade do caráter público é o que os distingue:

[o]s serviços públicos e os de utilidade pública se dirigem, ambos, à coletividade, porque ambos contêm a utilidade imediata a que se refere Odilon de Andrade. O que os distingue é o grau, a intensidade do caráter público, cuja medida é obtida pelo grau ou intensidade dessa mesma utilidade imediata160.

Odilon de Andrade entende, a respeito dos serviços públicos e serviços de utilidade pública, que “há entre ambos um como que denominador comum: o caráter público do serviço (...) [d]iferenciados pela utilidade imediata, que é social nos primeiros e individual nos segundos”161.

Em sentido similar à identificação da utilidade imediata como critério diferenciador dos serviços públicos e aqueles de utilidade pública, de Vergara, Bilac Pinto diferencia tais atividades, ao entender que “[o]s serviços públicos e os de utilidade pública se dirigem ambos à coletividade; o que os distingue é a intensidade do caráter público, o grau de utilidade imediata que nêles contém”162. Sendo assim, Bilac Pinto encontrou na “intensidade do caráter público”

o seu critério diferenciador entre os serviços públicos e os de utilidade pública.

Tais atividades são revestidas de caráter público, mas este será menos intenso do que nos serviços públicos. Ainda que a noção brasileira de serviço de utilidade pública tenha sido inspirada na experiência norte-americana, confusões terminológicas envolvendo os serviços públicos, os serviços de utilidade pública e as public utilities são frequentes em nossa doutrina163. Na atualização da obra de Bilac Pinto por Alexandre Aragão, identifica-se que:

Malgrado a semelhança da nossa noção de serviço público com o conceito anglo-saxônico de public utilities, não podemos perder de vista que nos Estados Unidos da América do Norte não há a ideia de serviço público propriamente dito; toda atividade é em princípio privada. Todavia, algumas atividades são de tamanho interesse coletivo e/ou tão sujeitas ao monopólio natural, que só podem ser exercidas se licenciadas pelo Estado. São as public utilities164.

160 VERGARA, Telmo. Serviços públicos e serviços de utilidade pública. Revista de Direito Administrativo, v.

2, n. 1, p. 381-383, 1945. p. 382.

161 VERGARA, Telmo. Serviços públicos e serviços de utilidade pública. Revista de Direito Administrativo, v.

2, n. 1, p. 381-383, 1945. p. 381.

162 VERGARA, Telmo. Serviços públicos e serviços de utilidade pública. Revista de Direito Administrativo, v.

2, n. 1, p. 381-383, 1945. p. 381.

163 PINTO, BILAC. A Regulamentação Efetiva dos Serviços de Utilidade Pública [atualização de Alexandre

Santos de Aragão]. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 57-58.

Relevante explicar o protagonismo deste jurista no estudo dos serviços de utilidade pública, que recebeu “convite do Ministro da Justiça, professor Francisco Campos, para membro da Comissão Especial criada para elaborar o anteprojeto da Lei Federal de Regulamentação dos Serviços de Utilidade Pública”165.

O jurista empenhava esforços para estudar os serviços de utilidade pública, intensificados por um movimento de urbanização, e mostrou-se “atento à evolução e crescimento das cidades brasileiras, consequência da diáspora do meio rural para as zonas urbanas, cada vez mais submetidas a pressões de melhoria das condições de vida da população”166.

Na doutrina brasileira, pelos escritos de Bilac Pinto, pode-se depreender que o conceito de serviço de utilidade pública não deve ser entendido de maneira rígida, inflexível. Importantes lições traz Telmo Vergara que reconhece, tal qual Bilac Pinto, que “[o]s serviços públicos e os de utilidade pública se dirigem, ambos, à coletividade, porque ambos contêm a utilidade imediata a que se refere Odilon de Andrade” 167.

Como se verá a partir do estudo empírico do capítulo 3 desta pesquisa, as normas que, supostamente, versam sobre serviços de utilidade pública podem criar regras para os serviços de utilidade pública (atos normativos) ou, ainda, instituir serviços de utilidade pública (atos de consentimento), por meio dos quais “entregam” aos particulares a prestação daquele serviço.

A respeito dos atos de consentimento, Vergara assume que apenas mediante a existência de caráter público mediato poderá haver sua entrega ao particular. Do contrário, estaria cerceando a liberdade de comércio, segundo a qual qualquer particular, independentemente de consentimento do Poder Público, poderia prestar a atividade168. Segundo o autor, “[n]ão poderá,

assim, o Poder Público declarar a utilidade, e, em consequência, exercitar ou conceder a execução, de uma atividade particular que não possui o caráter público mediato. Se o fizer, estará cerceando, inconstitucionalmente, a liberdade de comércio”169. Telmo Vergara ainda

Santos de Aragão]. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 57-58.

165 BADARÓ, Murilo. Bilac Pinto: o homem que salvou a República. Gryphus, 2010. p.69. 166 BADARÓ, Murilo. Bilac Pinto: o homem que salvou a República. Gryphus, 2010. p.67.

167 Em complemento, esclarece que “[o] que os distingue é o grau, a intensidade do caráter público, cuja medida é

obtida pelo grau ou intensidade dessa mesma utilidade imediata”. VERGARA, Telmo. Serviços públicos e

serviços de utilidade pública. Revista de Direito Administrativo, v. 2, n. 1, p. 381-383, 1945. p. 382.

168 VERGARA, Telmo. Serviços públicos e serviços de utilidade pública. Revista de Direito Administrativo, v.

2, n. 1, p. 381-383, 1945. p. 382.

169 VERGARA, Telmo. Serviços públicos e serviços de utilidade pública. Revista de Direito Administrativo, v.

complementa:

Para que o fato de que uma atividade privada, porque se entrosa com o serviço de inegável utilidade pública, ou mesmo serviço caracterizadamente público possa justificar a intervenção do Poder Público, é preciso que essa utilidade pública não possa existir sozinha, sem a ajuda daquela atividade privada170.

Observe-se, neste sentido, uma peculiaridade histórica que pode levar a uma contradição, se não forem muito bem definidos os contornos de um serviço de utilidade pública: quando o Poder Público declara a utilidade de uma atividade, reconhece que esta deve ser, de algum modo, supervisionada por ele. Contudo, quando se diz que o Estado vai “exercitar ou conceder a execução” de uma atividade, pode-se estar tratando, em verdade, de um serviço público.

Nas décadas de 1930 e 1940 Bilac Pinto reconhecia que “[n]o plano do Estado, os fatos mais característicos da nossa época são a sua intervenção, cada vez mais ampla, no domínio econômico e na ordem social”171. A impossibilidade de que atividades tão relevantes ficassem

livremente abertas à iniciativa privada, sem qualquer tipo de interferência estatal, tem sido uma orientação aplicável deste então e até os tempos atuais. Como o serviço de utilidade pública é um conceito que ainda perdura na realidade jurídica brasileira, existem autores contemporâneos que tratam deste assunto.

Alexandre Santos de Aragão contribuiu para o debate por atualizar a obra “Regulamentação Efetiva dos Serviços de Utilidade Pública”, de Bilac Pinto, e acrescenta que:

Caio Tácito denomina como ‘serviços de utilidade pública’ as atividades privadas sujeitas a autorizações administrativas funcionais, distinguindo-os dos ‘serviços públicos’, denominação reservada para as atividades de interesse coletivo titularizadas pelo Poder Público172.

Ademais, para além da atualização de uma obra clássica, Aragão afirma que os serviços de utilidade pública se diferem dos serviços públicos (titularizados pelo Estado, mas, eventualmente, delegados) porque são incumbidas à iniciativa privada, aos quais o Estado

170 VERGARA, Telmo. Serviços públicos e serviços de utilidade pública. Revista de Direito Administrativo, v.

2, n. 1, p. 381-383, 1945. p. 382.

171 PINTO, BILAC. A Regulamentação Efetiva dos Serviços de Utilidade Pública [atualização de Alexandre

Santos de Aragão]. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 1.

172 PINTO, BILAC. A Regulamentação Efetiva dos Serviços de Utilidade Pública [atualização de Alexandre

impõe normas de caráter regulatório, de forma a estabelecer requisitos mínimos de qualidade, preço e padrões de competição173.

Para José Guilherme Giacomuzzi, tais atividades, “(i) em função de sua importância para a coletividade, ou (ii) em função do modo como são prestadas ao público, podem e devem ser submetidas a uma regulamentação mais interventiva e restritiva do Estado”174.

De modo bastante semelhante, Régis da Silva Conrado identifica como elementos caracterizadores de um serviço de utilidade pública “(1) a importância do serviço para a sociedade (...) e (2) a ineficiência da iniciativa privada de prestar e regular adequadamente o serviço”175.

Adotar-se-á, portanto, a ideia de que uma atividade será caracterizada como sendo um serviço de utilidade pública quando, por disposição constitucional, for de titularidade privada e, ao mesmo tempo, revestir-se de tamanho interesse público que o Estado sob ela terá forte ingerência por meio de sua função regulatória.