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2 DISPOSITIVOS DE UMA FORMAÇÃO “IN LOCO”: APONTAMENTOS E

2.3 O SISTEMA BRAILLE E OS SABERES DOCENTE

2.3.2 Saberes pedagógicos sobre leitura e escrita braille

No cenário educacional a acessibilidade tem sido pensada muitas vezes, apenas do ponto de vista da mobilidade com o alargamento das portas das escolas, criação de barreiras arquitetônicas, rampas, banheiro, entre outros de caráter estrutural. De tal modo, é impossível pensar um sistema educativo inclusivo para as pessoas com deficiência visual, no qual os sistemas de leitura e escrita permaneçam em sua maioria escritos de forma visual e linear, sem

a menor garantia de acesso a materiais impressos em braille, adaptações em alto relevo, audiodescrição ou uso das tecnologias assistivas.

A leitura e a escrita são ferramentas indispensáveis no cotidiano das pessoas, pois através delas exercemos a comunicabilidade e a sociabilidade. Os autores Neubaer e Novaes (2009, p.1) afirmam que “são elas que produzem os olhares, os lugares discursivos, os sentidos e consequentemente, o conhecimento que se apresenta como um pressuposto básico para compreensão dos mecanismos de desenvolvimento humano atrelado ao processo de leitura”. Ações simples como um recado escrito num bilhete, uma anotação de uma lista de supermercado, acessar uma conta bancária num terminal de autoatendimento, tarefas simples, mas que podem ser barreiras gigantescas no dia a dia de quem não domina os códigos da linguagem usada socialmente ou de quem não pode ter acesso a ela por causas maiores, como é o caso das pessoas com deficiência visual.

Quando o sujeito se apropria dos sistemas de leitura e escrita de forma plena, é possível apreender o conhecimento que vem sendo historicamente construído e perpetuado através das gerações, reformulando-o e assumindo sua subjetivação enquanto leitor crítico-participativo. Assim, o domínio dessas ferramentas é também necessário às pessoas no exercício de seus direitos, no trabalho e na participação social.

Nesse contexto, a escola é concebida como um lugar propício a educação e a transformação da realidade através da produção e aquisição do conhecimento. Na proposta de uma educação inclusiva, essa instituição deve assumir a responsabilidade de buscar vias alternativas de leitura e escrita através de materiais em braille, ledores de tela, audiodescrição, adaptações em alto relevo ou uso de tecnologias assistivas, isso de forma a oferecer as pessoas cegas as informações que não podem ser percebidas com os olhos.

A escrita surge cerca de 4.000 a.C de forma rudimentar, apenas para atender necessidades dos povos da época, era pictórica e sem um código social determinado. Ao longo da história da humanidade ela foi se adequando e ganhando novos códigos de acordo com as necessidades de cada sociedade. Assim, os avanços nas formas de escrita, através das convenções e acordos internacionais de padronização de caracteres, de significados, de medidas e tantos outros possibilitam que a escrita possa desenvolver a abstração, a expressão da linguagem e a comunicação para diversas funções como: autoconhecimento, lazer, trabalho, relações interpessoais, reflexão, crenças etc.

Nessa esfera a escrita foi sendo criada, modificada, ampliada e usualmente aceita por representar fatos, registrar momentos, representar ou definir conceitos, enfim para diversas necessidades que acompanham o ser humano ao longo do seu processo evolutivo. De tal

maneira, a existência de um sistema de escrita exigiu também um sistema de leitura, esses historicamente foram feitos de forma visual. No Brasil, somente em 1854, no Rio de Janeiro, foi possível adotar um sistema de leitura e escrita próprio às pessoas com deficiência visual, o braille.

Acerca da conceituação da palavra leitura, em uma significação ampla Neubaer e Novaes (2009, p.5) afirmam que: “a leitura é um processo por meio do qual compreendemos a linguagem escrita. Para essa compreensão, são importantes tanto o texto (sua forma e conteúdo) como o leitor, suas expectativas, seus conhecimentos sobre o assunto e a finalidade com que faz a leitura”. Ela ainda pode ser reconhecida como um “elemento formador e reformulador de conceitos, considerando que a linguagem, a leitura e a produção escrita, juntas, são importantes para a aquisição de novos conhecimentos” (FIGUEIREDO; OLIVEIRA; ROCHA, 2013, p.1). Através da escrita e consequentemente da leitura, o homem pode desvelar-se, expor sentimentos, apreender emoções, emancipar-se e principalmente exercitar sua liberdade de expressão.

Portanto, para pessoas com deficiência visual que não tem ao longo de sua existência o desenvolvimento pleno dessas habilidades, ele poderá enfrentar sérios desafios no convívio social ou na realização de atividades corriqueiras. Não basta apenas ser alfabetizado, é preciso dominar os processos de produção da leitura e escrita, agindo sobre eles de forma crítica e consciente, de forma letrada. Soares (2003) em suas ponderações afirma que:

Tornar-se alfabetizado, adquirir a “tecnologia” do ler e escrever e envolver-se nas práticas sociais de leitura e escrita, tem consequências sobre o indivíduo e altera seu

estado ou condição em aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos,

linguísticos e até mesmo econômicos; do ponto de vista social, a introdução da escrita em um grupo até então ágrafo tem sobre este grupo efeitos de natureza social, cultural, política, econômica, linguística. O “estado” ou a “condição” que o indivíduo ou o grupo social passam a ter, sob o impacto dessas mudanças, é que é designado por literacy. (SOARES,2003, p.18.)

Segundo essa autora o termo literacy assume o significado de letramento, ou seja, o processo em que a leitura e a escrita é usada em suas representações e contextos sociais, de forma que o sujeito adquire competências próprias de ser e agir na realidade que o cerca. Nesse âmbito, a escrita é uma forma eficaz de entendimento do mundo e se constituiu como um fator de interação entre os sujeitos.

Por facilitar os processos de interatividade, é importante que haja uma preocupação nos espaços educativos, bem como nos programas de formação continuada em possibilitar meios de garantir o acesso à leitura e a escrita aos alunos com deficiência visual, evitando assim que estes sejam prejudicados em suas relações psico-afetivas, por não interagirem normalmente com seus colegas. De tal modo, com a ausência desses aspectos, supõe-se que há um

comprometimento nos resultados escolares, comprometendo assim a aprendizagem dos alunos com deficiência visual.

Pensando nessa perspectiva, percebe-se que muitos são os agentes que dificultam uma ação pedagógica democrática e emancipadora no espaço institucional, dentre elas estão às dificuldades da escola em compreender as diferenças e saber lidar com elas.

Portanto nesse contexto, os alunos com deficiência visual ou outras NEE, em suas diferenças, são os constituintes da instituição escolar que, via de regra, deve garantir o direito de todos de serem ouvidos e compreendidos, agregando-os à proposta curricular da escola, possibilitando meios de letramento, interação e socialização de todos. Assim, o currículo da escola e da rede púbica de ensino deve ser cautelosamente pensada, a fim de não subjugar, nem deixar de lado os alunos com necessidades educativas especiais, como é o caso das pessoas com deficiência visual. Deve-se criar meios de envolver esses alunos num ambiente letrado, cujas práticas aproximem os sujeitos cada vez mais de tarefas simples que possam desempenhar no dia-a–dia e também de tarefas complexas que lhes exijam um pouco mais de competências leitoras.

Ensinar pessoas com deficiência visual a ler e a escrever na perspectiva de letrá-los, constitui um processo também de emancipação e empoderamento desses sujeitos, pois nessa esfera é possível assumir suas identidades e suas subjetividades, de forma a se desenvolverem integralmente. Para que isso aconteça, o ensino deverá assumir uma proposta intercultural multiculturalista, na qual a escola é concebida como um espaço, cuja composição refere-se às características de diferentes indivíduos que convivem no mesmo espaço com as mesmas condições de oportunidades, mas com metodologias de ensino adequadas às diferenças e às particularidades. Em relação a esta questão, os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental dizem o seguinte:

(...) supõe um projeto pedagógico que enseje o acesso e a permanência – com êxito – do aluno no ambiente escolar; que assume a diversidade dos educandos, de modo a contemplar as suas necessidades e potencialidades. A forma convencional da prática pedagógica e do exercício da ação docente é questionada, requerendo-se o aprimoramento permanente do contexto educacional (...) (BRASIL, 1998, p.19). No processo sócio histórico de ensino da leitura e da escrita para pessoas com deficiência visual no Brasil, muitas vezes essa tarefa ficou relegada a instituições especializadas. Ao conversar informalmente, nas minhas vivências com alunos ingressos e egressos da rede pública de ensino de Irecê na Associação de deficientes visuais de Irecê e

região -ADEVIR 16, notei que todos eles foram alfabetizados nas salas de recursos multifuncionais. Pelas suas falas, o ensino na sala regular foi de pouca contribuição, muitos nem chegaram a concluir os Anos Finais do Ensino Fundamental.

Assim, a tarefa de alfabetizar e inserir o aluno no processo de aprendizagem ainda está basicamente restrito ao professor da sala de recursos multifuncionais. Embora o atendimento educacional especializado- AEE seja um grande avanço a nível de política pública, é preciso criar meios de inserir alunos cegos nos processos de aprendizagem da leitura e da escrita nas salas regulares dos Anos Finais do Ensino Fundamental, de forma que estes desenvolvam suas potencialidades e possam gozar dos seus direitos e oportunidades escolares em condições de equidade.

De tal modo, promover uma educação inclusiva exige um forte engajamento dos professores, da gestão e da comunidade escolar como um todo. É preciso unir forças para incluir os alunos com deficiência visual, de forma a não prejudicar o processo de aprendizagem da leitura e da escrita, consequentemente também do letramento17. Bazerman citado por Cunha (2007, p.126) diz que:

Os resultados do letramento são os mais diversos possíveis, pois esta interação consciente do indivíduo com as práticas leitoras e de escritura pode afetar as ações sociais e culturais do sujeito, tais como a memória coletiva, a autoimagem, a participação política, a complexidade do conhecimento e do repertório cultural disponível, as relações de trabalho, a participação em instituições e a estratificação social.

É fundamental criar estratégias metodológicas que facilitem o contato das pessoas com deficiência visual com produções escritas, disponibilizando material pedagógico acessível através dos ledores de tela, de audiodescrição, de livros sensoriais ou escritos em braille, etc. Vemos que a grande dificuldade é a produção ou adaptação desses recursos, tornando a escola muitas vezes apática e sem nenhum compromisso com o ensino da leitura e da escrita para pessoas com deficiência visual, prejudicando imensamente o processo de escolarização, de

16A Associação de deficientes visuais de Irecê e região - ADEVIR: É uma entidade filantrópica sem fins

lucrativos, foi fundada em 15 de novembro de 2000 por um total de oito deficientes visuais que buscavam melhores dias para suas vidas, e consequentemente políticas públicas que disponibilizassem aos cegos da região de Irecê as mesmas oportunidades que os ditos normais tiveram e têm nos dias de hoje. Disponível em: http://www.adevir.com.br/. Acesso em: 20/12/2017.

17 É o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e a escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo

social ou um individuo como consequencia de ter se apropriado da escrita. SOARES, Magda. Letramento: um

estratificação social18, das relações de trabalho. Enfim, impossibilitando que a pessoa com deficiência visual leve uma vida normal como a de qualquer outra pessoa.

Ensinar a ler e a escrever, garantindo o acesso ao universo letrado é uma possibilidade que se abre para o desenvolvimento e benefício de todos, com ou sem necessidades especiais, nas escolas e nas diferentes instituições, pois é um sistema de comunicabilidade e o ser humano é um ser que necessita dessa ferramenta para ser inserido na sociedade em todos os seus segmentos: trabalho, lazer, saúde, dentre outros.

De tal modo, a LDB referência no artigo 59, que “[...] os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais: currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específica, para atender às suas necessidades” (BRASIL, 1996,). Portanto, mesmo com dificuldades, é preciso criar técnicas especificas, métodos, recursos que contemplem as necessidades dos deficientes visuais. Não basta só ter uma lei, é preciso debater, apontar soluções a curto, médio e longo prazo. Acerca disso, Figueiredo, Oliveira e Rocha (2013, p.4), afirmam que:

Para ler e escrever, os alunos com deficiência visual utilizam formas diferentes dos demais alunos, necessitam de ações pedagógicas específicas, precisando de adaptações e complementações curriculares, tais como a adequação do tempo, espaço, modificação do meio e de procedimentos metodológicos e didáticos e os processos de avaliação têm que ser preparados de acordo com as suas necessidades. Dessa forma, o acesso à leitura e à escrita é mais difícil, podendo acarretar dificuldades na grafia e pronúncia correta das palavras.

Nessa instância, deverão ser pensadas intervenções que rompam impasses significativos no processo de apropriação do Sistema de Escrita Alfabético19- SEA, desde os primeiros anos da escolarização é preciso ter um projeto político pedagógico que contemple a alfabetização das pessoas com deficiência visual, de forma que esta seja alfabetizada plenamente e goze de seus conhecimentos para prosseguimento dos estudos. Sabendo assim que todas as atividades de leitura e escrita contribuem diretamente para ampliação do repertório linguístico, a linguagem pode ser a ponte que fará o aluno com dificuldades de aprendizagem avançar para

18 Estratificação social, no mundo da sociologia, é um conceito que envolve a "classificação das pessoas em grupos

com base em condições socioeconômicas comuns; um conjunto relacional das desigualdades com as dimensões econômicas, social, política e Antropológica".

Disponível em: https://www.infoescola.com/sociologia/estratificacao-social. Acesso em:22/12/2017;

19 Quando concluem a alfabetização com sucesso, os indivíduos passam a usar o sistema de escrita alfabética

(SEA), invenção recente na história humana. Quando se diz que tal processo é uma apropriação, ressalta-se que o objeto cultural, alfabeto, passa a ser algo interno, disponível na mente do aprendiz que o reconstruiu. Se falamos em sistema de escrita alfabética, é porque a concebemos como um sistema notacional e não como um código. Para aprender um código, basta apenas decorar novos símbolos que substituem outros símbolos de um sistema notacional já aprendido.

Ref.: MORAIS, Artur Gomes. Apropriação do sistema de escrita alfabética. Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/autor/artur-gomes-de-morais. Acesso em 20/12/2017.

maneiras de compreensão mais ricas. Portanto, a linguagem representa um elemento decisivo e reestruturador das experiências e dos conhecimentos prévios do aluno.

Nesse contexto, a constituição do sujeito leitor é um processo longo e complexo, que exigirá bastante dedicação e vontade de aprender. O que levará o educador a função cautelosa de trabalhar com assiduidade utilizando recursos e técnicas de construção prazerosa para despertar o gosto pela leitura.

O educador comprometido e formado para atender a estas peculiaridades poderá também promover rodas de leitura, recontos, dramatizações, peças, leitura dramatizadas entre outros, pois tais ações são indispensáveis para aprimorar o vocabulário, gosto do leitor e apreciação dos mais variados portadores textuais. Nesse contexto, o papel do professor é sem dúvida o de mediador do saber, é a pessoa que orienta e dispõe os recursos aos alunos e acima de tudo, é um sujeito leitor.

Para corresponder às diversas necessidades educacionais, os diferentes ritmos de aprendizagem, é imprescindível a capacitação docente, uma reestruturação sócio educativa, com propostas curriculares apropriadas e adaptadas para a diversidade, mudanças organizacionais, estratégias didático-pedagógicas, recursos diferenciados e estruturação do espaço físico. Não importa apenas uma formação continuada, é preciso desenvolver também uma cultura inclusiva na escola e na comunidade.

Nesse âmbito, o desafio de construir pontes é algo peculiar, que não pode ser ignorado no ensino básico, principalmente nos Anos finais do Ensino Fundamental, pois é nessa etapa que segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica (2013) “os adolescentes modificam as relações sociais e os laços afetivos, intensificando suas relações com os pares[...]acelerando o processo de ruptura com a infância na tentativa de construir valores próprios (BRASIL,2013).

Assim, para que a escola e os professores atendam aos alunos cegos inseridos nessa realidade dos Anos Finais do Ensino Fundamental, é basilar que se desenvolva um planejamento bem articulado e direcionado contemplando atividades que envolvam o uso do Sistema braille, das tecnologias assistivas- TA, de materiais adaptados etc.

A elaboração de bons planos didáticos exige uma grande dose de criatividade do professor e um conhecimento razoável de como se realiza o processo de aprendizagem dos conteúdos, bem como da aquisição da leitura e da escrita para pessoas com deficiência visual. Uma formação de professores “in loco” tendo como objeto de estudo a deficiência visual é um mecanismo salutar no processo de compreensão das necessidades dos alunos e também dos docentes, a nível de preparação e otimização do tempo/espaço de aprendizagem na sala regular.

De tal modo, essas iniciativas corroboram a implementação de uma política educacional inclusiva que potencialize práticas pedagógicas e promovam espaços/tempos de diálogo com a comunidade escolar, além de reafirmar ações inovadoras na modalidade da educação especial na perspectiva inclusiva. Essa discussão é pertinente, à medida que se propõe refletir sobre os princípios de equidade e respeito, tendo sempre como premissa o direito a igualdade de oportunidades e de atendimento, pilares de uma educação de qualidade.

2.3.3 O uso de Tecnologia Assistiva -TA no processo de ensino/aprendizagem dos alunos