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Sarney, a Nova Atenas e o boi: pobres e ricos unidos para reerguer o Maranhão.

Luís e ao Maranhão com a vitória de Sarney nas eleições de 1965, e sua posse subseqüente em 1966, e como ela se relaciona com a aceitação do boi como símbolo de identidade maranhense, juntamente com Atenas.

1.4. Sarney, a Nova Atenas e o boi: pobres e ricos unidos para reerguer o Maranhão.

Início de 1966, 31 de janeiro, José Sarney é empossado governador, eleito pelo voto popular no ano anterior. Qual seu slogan de campanha? “Maranhão Novo”. Promessas: erradicar a pobreza e as desigualdades que caracterizavam o estado socialmente. Erradicar o analfabetismo que se escondia sob a capa de erudição. Trazer o desenvolvimento e a modernização para um estado que parecia parado no tempo economicamente, distante do resto da nação, sem a projeção nacional que tivera no séc. XIX. Buscava cumprir os sonhos projetados nos anos 50 pela “geração dos novos”, que se percebiam descentes dos primeiros

atenienses. Novos porque trouxeram a discussão do modernismo para o cenário artístico e

intelectual maranhense, novos porque se opunham às desigualdades sociais do estado, novos porque se propunham reerguer o estado economicamente e culturalmente no cenário nacional; novos porque denunciavam a fraude eleitoral, os desmandos da oligarquia, a corrupção desenfreada. Sarney não foi uma liderança das oposições, inclusive entrara na política pela mão de Vitorino Freire, o principal alvo da oposição. Entretanto tivera participação no

movimento dos Novos, ou Geração de 50 – dividida em diferentes grupos, entre eles o da Movelaria do qual Sarney participou. E, na política nacional, ganhou projeção no início dos anos 1960, ao integrar a “bossa nova” da UDN, assinando um projeto pelas Reformas de Base, encampando as propostas dos movimentos populares nacionais defendidas em grandes manifestações públicas, tendo por conseqüência a forte repressão militar que justificou o golpe de 1964110.

Segundo Ferretti (1996), ao estudar a Casa das Minas, uma das mais importantes casas de culto afro-maranhense, Sarney, com alguns poucos intelectuais da elite, freqüentava esta casa, o que o liga às classes populares da cidade de São Luís. Estas visitas serviram de base para construir uma ligação sua com cultura popular. A história dele se conta muito amiúde, ressaltando-se sua origem que seria intermediária entre ricos e pobres. Entretanto, o pai de Sarney era desembargador e amigo pessoal de Vitorino Freire, e por isso conseguiu apoio para seu filho. O fato de ter morado em bairros centrais da cidade, em casas comuns, é considerado um indicativo de sua proximidade das classes populares, esquecendo-se que na década de 1950, a classe média e a elite de São Luís ainda moravam no centro histórico ou nas suas proximidades, e no seu em torno a população mais pobre. Na década de 1960, a expansão urbana da cidade alcançara apenas o bairro de Monte Castelo, indo em direção do bairro do Anil (mais no interior da ilha)111. Estes fatos, que sobrepõe o desenho da cidade e distintas filiações intelectuais e políticas de Sarney, são pinçados pelos interlocutores para construir imagens dele que transitam livremente entre duas posições polarizadas: defensor das elites e amigo dos pobres.

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Veja-se Costa (2001) para uma discussão das Oposições Coligadas na década de 1950, e suas relações com a política nacional pós-estado novo.

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Segundo Ribeiro Jr (2001) na década de 1960 a área urbana de São Luís constituía-se dos bairros centrais – Centro, delimitado pelas ruas do Passeio, Remédios, São Pantaleão em direção ao Largo do Carmo (p. 86) – neste caso compreende no mapa os bairros Praia Grande, Remédio e Desterro, sendo os bairros mais pobres da Madre Deus, Lira, Belira, e Camboa. A expansão urbana, ainda segundo Ribeiro Jr, na década de 1960 alcança novos bairros, vão surgindo, crescendo e adensando-se os bairros da Liberdade, Monte Castelo (Areal), Apeadouro,

Fátima, Alemanha, João Paulo, Caratatiua, Jordoa e Sacaven,encurtando o caminho para a vila do Anil. (...) Para 1969, diante de uma população estimada em 251.389 habitantes, aproximadamente 40.000 destes residiam em palafitas (p. 86). Em 1970 a população de São Luis, segundo o IBGE era de 265.486 (Ribeiro Jr, 2001:87).

Aqui estou considerando as afirmações de Ribeiro Jr, e indico no mapa que segue qual o desenho da cidade, segundo a memória local e seus historiadores na passagem da década de 1960-70.

Zona Urbana da cidade de São Luis até 1970, segundo a memória dos seus moradores. Bairros centrais da cidade de São Luis.

Conjunto habitacionais populares construídos a partir da década 1970, na ciadde de São Luis. Bairros residenciais de classe média construidos a partir da década 1970, na ciadde de São Luis.

João Paulo

Anil

Ponte José Sarney

Madre Deus

Á figura de Sarney, juntam-se fatos, imagens e símbolos do seu governo, construindo para ambos significados que são incorporados ao estado e à cidade de São Luís, a partir de como são contadas as suas histórias. A primeira delas é a dimensão tomada pela cultura, acompanhada do qualificativo popular, ao se falar da história de São Luís e do Maranhão. Como visto acima, o próprio governador é ligado à produção literária e considerado um defensor da cultura popular. Entre seus assessores, um dos principais, está Bandeira Tribuzi, que também é poeta de renome no Maranhão, além de ser filho de um artista plástico. Outro importante colaborador no seu mandato foi Domingos Vieira Filho, intelectual que integrou o Movimento Folclórico Nacional, reconhecido localmente pela defesa, pesquisa e delimitação dos estudos sobre folclore no Maranhão112. Josué Montello também figura entre seus correligionários. No campo da política cultural, Sarney, diretamente ou a partir dos seus sucessores que chegaram ao poder com o seu apoio, iniciou a fundação dos primeiros museus públicos do Estado do Maranhão. Museus que são espaços fundamentais para reverenciar identidade.113 Dessa forma, Sarney cumpriria a proposta de renascimento do Maranhão a partir das letras, conforme o projeto dos atenienses de 1950, a geração modernista da cultura local que ele integrou.

O projeto de governo de Sarney é significativo, denominado “Maranhão Novo”, propunha-se recolocar o Estado na rota de desenvolvimento, conforme as propostas do regime militar de 1964114. O espaço urbano de São Luís modificou-se a partir do governo Sarney. A população foi aumentada pelas migrações do interior para a capital, além do crescimento vegetativo. Por outro lado, há uma reconfiguração do espaço com a incorporação da sua zona rural à zona urbana. Estas mudanças conferem novas representações espaciais, por um lado, novos bairros populares são construídos rapidamente, por outro lado, cria-se novas vias e

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Ver Vilhena (1997) para o movimento folclórico nacional.

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No capitulo 3 deste trabalho discuto o processo de institucionalização da cultura no Maranhão, a partir da fundação dos museus, erudito e popular, criação da secretaria de cultura e outras instituições, onde se destacam Vieira Filho e Montello citados antes.

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Há uma relação do projeto de Sarney com as propostas desenvolvimentistas do regime militar de 1964. Costa (2001) na sua análise da relação entre Sarney e o regime militar salienta as convergências das propostas de desenvolvimento de ambos. Não posso esquecer que as propostas dos militares de desenvolvimento para o Brasil resultaram no que ficou conhecido como milagre brasileiro, intensificando a industrialização nos moldes capitalistas iniciada nos anos 1950. De certa forma, o projeto de Sarney, dado a posição desfavorável do Maranhão nesse quadro, assim como outros estados do Norte e Nordeste (cronicamente as regiões menos desenvolvidas do país desde os deslocamentos de renda do Norte para o sudeste, decorrente da política fiscal do Império [Mello, 1999]), competia com outros estados nordestinos para entrar na rota de desenvolvimento nacional. Para uma análise quantitativa da industrialização e urbanização do país durante o regime militar ver Bacha e Klein, 1986.

espaços de circulação que, por sua vez, significam a elaboração de novos trajetos urbanos onde poderiam se cruzar atenienses e brincantes dos bois. Acompanhou este processo, grandes desapropriações e deslocamentos dos moradores pobres para outros lugares – no geral do centro, em torno da qual residia maioria da população pobre de São Luis, para a periferia urbana115.

A criação desses conjuntos habitacionais parece responder a uma questão posta por Sarney para a elite local: a revelação da existência da miséria dos pobres de forma crua e repleta de impacto no documentário de posse realizado por Glauber Rocha – Maranhão 66116. Segundo os assessores de Sarney mostrar a pobreza era necessário e tinha dois propósitos: denunciar os desmandos dos governos apoiados por Vitorino Freire, e convencer o governo federal a ajudar o Maranhão a se desenvolver. Porém, a pobreza e acentuada desigualdade do estado – situado entre os mais pobres do país – quebrava uma representação da identidade maranhense, sobreposta e aliada da visão ateniense, da riqueza natural, base da opulência perdida. Dessa forma, perceber a existência da pobreza e ajuda-la poderia ser um dos primeiros passos do desenvolvimento proposto por Sarney, o qual afirmava ser o “Povo:

inesgotável fonte de energia para alcançar o progresso”117.

Voltando para as questões sobre a elaboração de uma identidade maranhense e os novos sentidos atribuídos ao boi, pode-se pensar numa correlação com estes vários processos socioeconômicos e demográficos que reestruturaram São Luís espacialmente. A expansão urbana da cidade (construção intensa de novos conjuntos habitacionais para os pobres que partem do centro para o interior da Ilha) possibilitaria um encontro com as áreas que ainda permaneciam rurais (espaço onde o boi poderia circular livremente, e deveria estar contido).

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O crescimento demográfico de São Luís, em termos de crescimento geométrico, para os períodos de 1940-50 foi de 3,41, passando para 5,31 entre 1960-70, e para 5,41 entre 1970-80. A população total passou de 158.292 em 1960, para 265.486 em 1970, alcançando em 1980 um total de 449.432 habitantes. (Dados do IBGE segundo Ribeiro Junior, 2001:85 e 91). A partir do final da década de 1960 (mais precisamente 1967, 1 ano após a posse de Sarney) inicia-se a construção de conjuntos residenciais para a população de renda mais baixa (entre 1967-70 Caratatiua, Cohab Anil I, II, III, Maranhão Novo – num total de 2928 unidades). Até a década de 1980 foram construídos 20 conjuntos habitacionais com um total de 10.268 unidades, indo sempre em direção ao interior da Ilha. Paralelamente, com a construção da Ponte Sarney, surgiram os financiamentos para os bairros de classe média na direção da orla marítima de São Luís, com os bairros do São Francisco e Renascença, Ponta da Areia, porém a resistência dos pescadores e moradores de palafita desta área, forçou a expansão urbana em direção a São Marcos, IPEM, Calhau – que juntamente com São Francisco e Renascença são conhecidos como a nova São Luís. (Ribeiro Jr, 2001:92-3) Ver no mapa anterior

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Costa (2001) faz uma análise detalhada deste documentário – que foi realizado a pedido de Sarney com imagens anteriores às eleições e da festa da posse – no qual me baseio para fazer as considerações que se seguem.

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As migrações do interior para a capital, onde o bumba boi era também símbolo de pertencimento e auto-definição (revelados nos nomes dos seus sotaques), propicia o surgimento de novos grupos de boi ou fortalecimento dos já existentes. Esta conjunção de fatores, parece-me, levou a uma desconcentração do espaço da cidade, e ao mesmo tempo, possibilitando que significados culturais que atribuem sentido de pertencimento circulassem em novos lugares. Por exemplo, Araújo (1986) salienta que os moradores da Madre Deus que passaram a morar em novos conjuntos habitacionais, mantinham suas relações com o bairro de origem, sendo o bumba um dos elos dessa relação. Nesse sentido, pode-se pensar que aquilo que estava contido passa a circular num espaço maior, propiciando, simultaneamente, seu fortalecimento. Por isso, os atenienses poderiam propor a civilização dos brincantes, já que era inevitável a circulação dos bois, tendo em vistas os novos espaços criados na cidade de São Luís, com os conjuntos habitacionais populares, que alargam sua própria representação. Ou seja, como não seria mais possível mantê-los distante e na sombra, o melhor seria incorpora- los. E como afiançou dona Zelinda, acabar com a repressão aos bois era uma promessa do candidato Sarney, assim devia ser cumprida118.

Além disso, Sarney procurou desenvolver projetos de industrialização, alguns ligados ao beneficiamento de babaçu, considerado, desde os anos 50, a esperança de crescimento econômico do estado. Em maio de 1966, 4 meses após a posse de Sarney, foram retomadas as obras de construção do porto de Itaqui, concluído em 1971, já no mandato do seu sucessor. Este feito, entre outras razões, é significativo porque o Porto de Itaqui era considerado central para o desenvolvimento econômico da capital e do estado119. Em fim, seria a retomada definitiva do crescimento, retirando o Maranhão da decadência em que permaneceu ao longo do séc. XX e em especial de São Luís, para de certa forma, poder voltar a ser Atenas.

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Como se verá no próximo capitulo, surgiram também grupos de classe média, voltados para uma educação popular e concomitantemente promovendo as manifestações populares, ou sua linguagem estética, no teatro e na música.

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Os comandantes de navio ameaçavam constantemente não atracar no Porto de São Luís – na Praia Grande – porque ele era muito perigoso. Estas ameaças ocorriam desde os tempos da colônia, sendo desde período a primeira proposta de construção de um Porto em Itaqui. Por isso, considero que sua conclusão no governo Sarney é muito significativo para o desenvolvimento do estado e retomada da posição central da capital para o escoamento da produção. São Luís vinha perdendo sua importância comercial para cidades do interior, em especial Bacabal e Imperatriz, a partir das quais a produção era econômica era escoado, papel fortalecido com a abertura de novas rodovias ligando o Maranhão a outros estados do Nordeste. Lembro que a comercialização entre as cidades do interior e os estados vizinhos do Maranhão ocorria desde os tempos da colônia e do Império, entretanto, dado a conjuntura de estagnação econômica da capital, com a falência das indústrias têxteis no séc. XX, esta concorrência, parecia mais ameaçadora. Afirmações de Ribeiro Junior (2001) com as quais concordo.

Um dos pontos centrais para a reestruturação espacial da cidade para os seus moradores foi a conclusão, também postergada de governos anteriores, da ponte sobre o Rio Anil, unindo o centro histórico com a região das praias120. O projeto da ponte era antigo, e sua retomada e conclusão por Sarney, forneceu mais uma razão para associa-lo à modernização da cidade, como também novos significados de auto-reconhecimento para seus moradores (lembro que em diversos momentos da minha estada em São Luís me informavam sobre a importância da ponte para o desenho atual da cidade)121. Esta ponte tem um sentido simbólico marcante, pois ela sintetiza a união entre o centro histórico e colonial de São Luís, com a São Luís Moderna (Ribeiro Junior, 2001:89 ss). A cidade nova, a Nova São Luís, passa a ser erguida na década de 1970, nessa região das praias para onde se expande a vida da cidade, iniciada por bairros residenciais de classe média, seguindo-se a instalação dos centros comerciais e financeiros, lazer, etc.

Além das mudanças urbanas de São Luís o governo Sarney ficou associado com a vitória das oposições coligadas contra Vitorino Freire, o chefe oligárquico à frente do governo estadual desde 1945. Freire era dito como um usurpador do poder do povo maranhense por ser natural do estado de Pernambuco. Era acusado de fraudar as eleições para se manter no poder. Era considerado corrupto, e por conta disso não concluía as obras que retomariam o crescimento econômico. Era responsabilizado pelas desigualdades do estado e a pobreza do seu povo. Sarney então, ao se eleger, recebeu uma aura sagrada e um sentido messiânico para o seu governo, o salvador do Maranhão. (Cf. Costa, 2001).

Portanto, o governo Sarney pode ser considerado um evento crítico especialmente no que se refere à composição de novas relações entre os símbolos de identidade maranhense, particularmente a relação entre erudito e popular com a ascensão do bumba meu boi dentre esses símbolos122.O sentido de evento crítico que lhe atribuo está na ordem do simbólico,

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A primeira ponte sobre o Rio Anil foi construída também no governo Sarney, ligando os bairros suburbanos de Caratatiua/Ivar Saldanha aos futuros conjuntos habitacionais construídos na década de 1970. (Ribeiro Junior, 2001:89).

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Costa (2001) relata as várias polêmicas sobre a ponte do São Francisco entre os partidários de Vitorino Freire e seus opositores, os quais reclamavam sua conclusão e denunciavam a corrupção decorrentes dos projetos de sua construção.

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Na concepção de Das (1995:5-6) um evento crítico (critical events) é aquele que possibilita novos modos de ação e redefine categorias tradicionais de honra, e afeta instituições distintas, porém de forma conjunta. Portanto, reelabora conteúdos morais. No caso da formação de identidade maranhense me parece que a relação entre erudição e cultura popular passa a operar em novos termos, por sua vez a categoria da tradição passa conter novos significados. Das usa o evento também para compor a etnografia, ou seja, os eventos críticos são descritos no

posto que as desigualdades estruturais do estado e da cidade de São Luís, assim como ocorreu com o restante do país, não foram muito alteradas pelo processo de desenvolvimento instaurado no regime militar, do qual Sarney recebeu apoio constante123. A partir do governo Sarney no estado, São Luís passa a ser apresentada como modernizada, mas a tradição continua no seu horizonte. Não é uma dicotomia, mas a busca simultânea pelos dois opostos. Parece que não quer perder o significado de atualizar o passado no presente, que o termo tradição apresenta entre seus historiadores e intelectuais. Esta ênfase no crescimento da cidade e do estado, a partir de Sarney, sugere que, talvez, a decadência tenha sido deixada para trás definitivamente, e talvez por isso, ao se refazer idealmente a ruptura do tempo que fora dado pela decadência, a cidade e o estado podem agora retomar a tradição na sua plenitude e revelar a dimensão popular que Atenas não queria deixar ouvir. Por isso o boi, ao ser valorizado, não estabelece uma descontinuidade entre a cultura popular e a erudita (bois e atenienses) também não parece haver uma descontinuidade entre o tradicional e moderno, embora o diálogo entre eles esteja perpassado por tensões e conflitos.