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Trocas de bênçãos para circulação e encerramento: o batizado e a morte do boi.

2.2.1. O batismo.

O batizado deve ser no dia 23, véspera de São João47. O ritual tem o objetivo de preparar o boi para se apresentar fora do seu terreiro, ou seja, da sua sede. Neste caso todo o folguedo está simbolizado na figura mesma do boi, o qual é colocado em cima de uma mesa, em frente de um pequeno altar erguido para São João. Altar enfeitado com flores artificiais, velas, e a imagem de São João em destaque. O boi é que será batizado, apenas ele, imóvel sobre a mesa, ladeado pelos padrinhos, o amo e os oficiantes da cerimônia, seguidos pelas autoridades políticas, e, em círculos sucessivos, vão se dispondo todos que vieram ver a sagração do boi, inclusive os brincantes, que não ocupam lugares específicos. Esta consagração é simultaneamente um ritual de purificação e de proteção para a saída do

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Fui informada que alguns grupos estão deixando esta pratica, ou movendo a data. Não realizar o batismo é considerado uma quebra do ritual, antecipa-lo é considerado uma estratégia válida e seria decorrente dos processos de adaptações para a continuidade do folguedo, porém realizar depois do dia 23, perde seu sentido propiciatório de proteção e de sucesso para o grupo. Entretanto, este fato não parecia causar maiores polêmicas, sendo mais ressaltadas as modificações nos grupos de acordo com os conteúdos e sentidos de tradição a eles associados.

boi para os espaços das apresentações, que ocorrerão até o ritual da morte, que encerra o ciclo anual da brincadeira. É o momento de apresentar o novo couro do boi para os brincantes e para a assistência.

O boi tem padrinho e madrinha. Nesta escolha, há uma troca recíproca de obrigações e de poder. Ser padrinho e madrinha confere distinção às pessoas escolhidas para estas posições. E por sua vez, quem está nestas posições, contrai obrigações com o grupo, de preparar o boi para se apresentar em diferentes terreiros até o ritual da morte. Estas obrigações dos padrinhos são de diversas ordens: econômico, moral, político. Os padrinhos, em geral, são convidados pela posição social que ocupam na comunidade. Pode ser sua condição econômica mais estável, o poder político (não apenas por ocupar funções políticas, mas também a capacidade de articular relações com as instâncias políticas mais abrangentes), ser considerado um guardião dos preceitos morais defendidos pelo grupo; ou ocupar um lugar de destaque na história do folguedo, que lhe confere uma aura de portador da identidade do próprio grupo48.

O apadrinhamento simboliza uma gama de relações, que dão sustentação ao grupo que organiza a brincadeira. Ele expressa as hierarquias, pois confere legitimidade a quem ocupa posições elevadas no grupo, ou a quem irá ocupá-las. O ritual do batismo também condensa e apresenta para o grupo, suas relações com a cidade de São Luís. Estas relações possibilitam compreender o prestígio e significado da brincadeira para a cidade. Por sua vez, os que vêm de fora assistir ao ritual, e são colocados em lugares de destaque, procuram estabelecer ou fixar posições sociais fora deste espaço. Ou seja, ser “bem aceito” no grupo de boi, pode significar, maior prestígio por estar mais próximo de um símbolo que expressa, mais do que outros, o que é ser maranhense atualmente. E o reconhecimento do grupo que faz o boi, para aqueles que vem de fora, parece ser maior quando é dado no momento do batismo, posto que este ritual demarca temporalidade – a partir dele o boi pode circular por toda a cidade; e apresenta o couro do boi para todos os participantes – couro que reafirma ou traz novos símbolos que conferem significados ao Maranhão.

Portanto, no batismo, a figura do boi torna-se fundamental, e sua simbologia encontra-se condensada nos bordados do couro, que recebe um reforço significativo, pelas

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novas indumentárias usadas pelo conjunto dos brincantes, especialmente o personagem do amo49. O que se vê retratado no couro do boi são: bandeiras; brasões; as raças, consideradas fundacionais da nação e do estado; os santos – guardiões da sacralidade; a natureza fértil do Maranhão; suas lendas que integram o sentido local de história; monumentos, para referendar a erudição; políticos (os heróis?); e, o próprio boi – o símbolo de maior significado onde tudo se condensa. Não posso deixar de citar um romance para dizer, enquanto metáfora, que me parece dizer melhor que tipo experiência é mediada pelos bordados do seu couro: A grande vantagem dos Zodíacos, Cartas de Baralhos, bandeiras,

Brasões, (...) era que, com eles, eu enchia o Buraco cego e vazio do Mundo e o Deserto- assírio da minha alma. Sentindo meu sangue pulsar com violência, não havia mais como duvidar de mim. Meu sangue me garantia a existência do meu corpo, e o corpo, a de minha Alma50. Como se vê nas fotografias reproduzidas abaixo

Fotos 23 e 24 – Laterais do couro do Boi da Maioba do ano de 200051.

E foi assim que este ritual me pareceu ao assisti-lo. No batismo do Maracanã, em 2002, estavam presentes o governador do estado do Maranhão, sua esposa, o presidente da

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Prado (1977:172) considera que o boi é um símbolo condensado, baseando-se a autora em Turner, e afirma que o boi impregna o bumba de uma polivalência de significados que nos alertam sobre os vários ângulos

através dos quais este ritual pode ser analisado: como um conflito econômico e político, como um rito messiânico, como um lugar de brincadeira e um contexto religioso para o cumprimento de promessas.

(p.172)

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Ariano Suassuna, Romance d’A Pedra do Reino (1970:436)

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Esta simbologia transparece ainda o boi como revista do ano posto que o ano de 2000 foi de comemoração dos 500 anos da nação. Porem este tipo de símbolo é recorrente independente de uma data nacional marcante, no couro de 2001, o boi da Maioba trouxe novamente bordado o próprio boi da maioba com as bandeiras do Brasil e do Maranhão reproduzidas.

FUNCMA, o presidente da AML. Em 2001, no batizado do boi da Maioba, estava a então governadora do estado do Maranhão, Roseana Sarney e seu esposo, segundo noticiaram os jornais locais52. Estas relações evidenciam um jogo político e de forças, no qual as partes envolvidas disputam legitimidade, prestígio e poder, simbolicamente postos no couro do boi. Por sua vez, as relações entre políticos e grupos de boi – assim como os símbolos reafirmados e concentrados no couro – são reforçadas com sua publicação nos jornais, como se vê na reprodução abaixo:

Foto 25 – Roseana no batismo do Boi da Maioba em 200153

Por conseguinte, considero que o bordado de uma bandeira do Maranhão, entrelaçada com a do Brasil, não é meramente figurativa, elas pretendem expressar que há uma relação entre região e nação54. Da mesma maneira, quando no couro do boi se vê três rostos representando o que é classificado de índios, negros e brancos, reafirma-se a

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Infelizmente não assisti ao ritual em 2001. Na ida para o bairro da Maioba, que fica no limite com o município de Paço do Lumiar, havia um grande engarrafamento provocado pelo fluxo de veículos indo para o batizado e o carro em que estava envolveu-se num acidente.

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Estado do Maranhão, 25/06/2001, 1ª pagina.

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Lembro que a história maranhense é marcada pelo esforço de recuperar para o estado uma posição de prestigio nacional, perdido com as sucessivas crises econômicas.

formação racial do povo e relações daí decorrentes. A beleza estética dos bordados parece se unir a estes sentidos, dando-lhes mais e maior relevância. A arte que o bordado contém, o tempo necessário da sua realização, o trabalho empregado, tudo reunido, parecem querer dizer que a própria identidade está ali contida no couro de veludo do boi, que encena as relações da sociedade que ele, em si, é convidado a re-apresentar (De Coppet)55. E, por isso, a relevância política que o batismo assume em São Luís, é o momento em que, o símbolo que assume centralidade nesta configuração cultural que exprime e afirma identidade, passa a ser encenada em toda a cidade, expressando suas relações e contradições e suas possibilidades de tradução e continuidade. Dessa forma ele se sacraliza na leitura que a assistência faz sobre o boi. Em certo sentido, no momento do batismo, são suspensas as disputas de significados que atribuíram ao boi sua importância atual, para fortalecer o símbolo boi como eterno e fundacional, do que vem a ser o Maranhão. A fase seguinte, das apresentações, recoloca o boi, denso de significações distintas, na cidade, estabelecendo-se diálogos conflitivos e consensuais, na afirmação de identidade.

2.2.2. A morte do boi

A festa do boi, de tão grandes proporções – em duração, em extensão pela cidade e pelo estado, em densidade de significados e de relações, em intensidade de sentimentos e emoções – encerra-se com um outro ritual, em torno do qual realiza-se outra grande festa, localmente referida como “a festa da morte do boi”. A morte do boi envolve o grupo de origem da brincadeira durante uma semana. Segundo Prado (1977) o ritual da morte, para o grupo que ela estudou, significava fazer, finalmente, “a festa do boi” para o dono da brincadeira.

No ritual da morte, o boi é do seu dono56, e enfatiza as relações internas entre os brincantes, sentido que é também atribuído pelos outros autores (especialmente, Carvalho,

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Nas duas estadas no campo assisti na retransmissora de TV local, mais de uma reportagem jornalística sobre a confecção do couro e das indumentárias, entrevistando os artesãos, homens e mulheres, durante o trabalho.

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A autora mostra que as fases da brincadeira têm distintos objetivos, e, portanto, diferentes relações são estabelecidas entre o organizador e a brincadeira e entre os brincantes e a sua comunidade. Dessa forma, os ensaios são para agregar e preparar os participantes; o batismo, testa a aceitação pela assistência; as apresentações são para arrecadar recursos – o retorno do empreendimento, posto que o boi tem também o objetivo de se apresentar como um espetáculo; e finalmente, a morte, quando o dono da brincadeira é o dono

1995; Canjão, 2001; Marques, 1999)57. Marca o retorno do boi para brincar no seu terreiro, após a peregrinação da fase de apresentações. É também o momento de retribuir aos brincantes, e àqueles que organizaram a brincadeira, com comida, bebida e festa a sua lealdade ao grupo.

O ritual da morte dura dois dias, durante os quais se encena a fuga do boi, que se esconde numa casa da comunidade, seguido da sua perseguição e captura, quando é trazido para o terreiro, dança-se pela última vez e depois se encena a morte (Carvalho, 1995; Canjão, 2001). O boi é sangrado e seu sangue, simbolizado por vinho tinto, é distribuído entre os presentes como sinal de boa sorte e proteção58. Como no batizado, o boi tem padrinhos para o ritual da morte, com obrigações de propiciar recursos para festa, como comida para os brincantes, prendas para o mourão59 e os bolos que são distribuídos após a morte ritual. O apadrinhamento serve para reforçar posições sociais dentro do grupo onde o boi se origina. A relação com os de fora diminui de intensidade, mesmo que já existam iniciativas de políticos e autoridades, que buscam conseguir legitimidade para ocupar cargos no estado ou na cidade de São Luís60. Entretanto, permanece intenso o sentido de retorno e agradecimento ao boi por sua polissemia, e por ter sido mediador para interpretar,

da festa, simultaneamente encerra o ritual e as relações que se criaram entre os brincantes, recolocando-as na dimensão da estrutura das relações cotidianas. As obrigações de apresentações são na sua comunidade de origem nos dias 24 e 29 (São Pedro). Se no dia 24 a brincadeira consegue agradar então poderá ser convidada ou se oferecer para dançar nas festas de santos diversos de outras localidades. A partir daí as apresentações se davam por contrato, com pagamento em dinheiro. Com estes recursos o dono do boi preparava o ritual da morte do boi. Prado considera que a fase em que o boi dança em outras localidades mediante contrato, confere à brincadeira o caráter de uma empresa (1977:95). A autora critica as analises que classificam as manifestações da cultura popular como espontâneas e que excluem, ou não conseguem identificar a possibilidade de uma estrutura cujo objetivo é também ganhar dinheiro. Ela ironiza e coloca que algumas concepções consideram que por ser do “povo” tem que ser ingênuo. Entretanto, considero que a autora ao analisar assim para dar relevo aos contratos e o sentido econômico que também perpassam as festas, parece desconsiderar a dimensão de reciprocidade também nestas relações contratuais.

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Nos autores destacados a descrição da morte salienta os significados internos do ritual para a brincadeira e o grupo social em que se insere. A dança do boi que foge e se recusa a morrer é elaborada como um drama que representa o que o grupo sente naquele momento: o distanciamento entre eles, causado pelo retorno ao tempo comum das atividades práticas da vida, encerrando o tempo incomum do boi.

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A densidade de significados e das representações das relações sociais é enfatizada nas obras dos autores maranhenses sobre o boi. A descrição evidencia a emoção dos participantes da festa. Emoções que oscilam entre a tristeza da despedida, e a alegria pelo sucesso do ano e pela esperança do retorno no ano seguinte. Assisti apenas ao ritual da morte do Boi da Maioba em 2001, um dos primeiros bois a realizar a morte no final do mês de junho. Os outros grupos fazem o ritual a partir de agosto, depois que retornei do campo.

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Uma árvore que é derrubada para este fim, e fincada no terreiro do boi e enfeitada com pequenos presentes, que são prendas a serem distribuídas após a morte do boi.

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Canjão (2001:176) afirma que a festa vem ganhando cada vez mais significado para toda a cidade de São Luís, sendo uma das festas mais importantes para os maranhenses segundo esta autora.

traduzir e dar significados a uma identidade que abrange o Maranhão. Mesmo assim, o ritual da morte também é um espaço para encenações políticas, posto que quanto maiores forem as festas do ritual da morte, maior e mais importante é o prestígio e o lugar do boi na cidade, e entre os demais grupos do seu sotaque. Portanto, entre os conteúdos internos da encenação da morte, está o fortalecimento da brincadeira e do grupo social em que se origina. Dessa forma encerra-se o ciclo da festa do boi onde os significados que dão sentido à formação de identidade maranhense atual são avaliados, mas são também vividos e experienciados. A seguir, como enfatizei antes volto-me para analisar a fase das apresentações, que se situa entre estes dois rituais, onde o que eles exprimem de forma mais contida e localizada passa a ser vivenciada por toda a cidade.

2.3. Circulações da assistência: os bois e seus sotaques na fase de apresentações