• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 Rhapsody: Performance e Ritual no Breaking

87 SCHECHNER, 2006 88 VAN GENNEP, 1979.

89

98 diretamente dos eventos, como jurados, organizadores e dançarinos que „batalharam‟. O site (www.cidadehiphop.com.br) com as informações do Cidade Hip Hop continua no ar e foi atualizado a fim de apresentar o que aconteceu durante o evento.

2.2. Entendendo o Ritual

O rito é mais importante para a sociedade do que as palavras para o pensamento. Pois sempre se pode saber alguma coisa e só depois encontrar palavras para expressar aquilo que se sabe. Mas não existem relações sociais sem atos simbólicos (DOUGLAS apud SEGALEN, 2002, p.29).

Diante da importância do ritual para a sociedade e para o presente trabalho, creio que seja fundamental apresentar a literatura que lida com o ritual e a performance, especificamente a íntima relação entre os dois e a maneira como usam atos simbólicos para comunicarem algo, a fim de compreender melhor como os rituais acontecem, o que os constitui e o que têm para dizer.

De acordo com Richard Schechner (2006) e Mariza Peirano (2003), performances consistem em gestos e sons ritualizados - a maioria do que fazemos já foi dito ou feito anteriormente, é o twice-restored behavior (SCHECHNER, 2006) visto no início desse capítulo. Uma definição de performance dada por Schechner é de um comportamento ritualizado que é condicionado e/ou permeado por play (jogo). A ideia de um ritual como uma performance é de longa data, inclusive Emile Durkheim indicou que rituais performados criam e sustentam „solidariedade social‟90

. Rituais não são ideias ou abstrações, mas performances expressando padrões de comportamento e textos conhecidos. Mais do que pensar ideias, eles as incorporam. Ainda, o processo ritual pode ser considerado como uma performance em si.

Do mesmo modo, Stanley Tambiah entende o ritual como um ato performático e comunicacional e o define como:

um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas sequências têm conteúdo e arranjo caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A ação ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como

90

99 “performativa” em três sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer é também fazer alguma coisa como um ato convencional [como quando se diz “sim” à pergunta do padre em um casamento]; 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente uma performance que utiliza vários meios de comunicação [um exemplo seria o nosso carnaval] e 3), finalmente, no sentido de valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance [por exemplo, quando identificamos como “Brasil” o time de futebol campeão do mundo]” (Apud PEIRANO, 2003, p.11, grifo nosso).

Ainda, Victor Turner (1982) ressalta que prefere pensar o ritual essencialmente como performance e não primariamente como regras e rubricas. As regras, para o autor, emolduram o processo ritual, mas o processo transcende sua moldura, já que o „fluxo‟ (flow) das ações e interações dentro desse enquadramento pode conduzir a insights até então escondidos e até gerar novos símbolos e significados que podem ser incorporados em performances subsequentes. Poucos rituais são tão estereotipados, que toda palavra, gesto, cena é autoritariamente prescrita. Em muitos casos a improvisação não é só permitida como requerida. O ritual ocorre para comunicar os valores mais profundos do grupo que o performa regularmente, assim tendo uma função paradigmática – uma vez que como „modelo para‟ o ritual pode antecipar e até gerar mudança e como „modelo de‟ pode inscrever ordem em mentes, corações e a vontade dos participantes. Ainda, o ritual não distingue entre audiência ou público e performers, uma vez que todos participam91, fato verificado durante a „batalha‟ do Cidade Hip Hop, na qual dançarinos e espectadores participam coletivamente da atividade. Um ritual leva uma pessoa a uma segunda realidade que está separada da vida cotidiana, e de certa maneira uma performance pode transformar o performer e o público. Assim, como verificado anteriormente, dançarinos e espectadores podem fazer coisas que não fariam cotidianamente, como xingar, humilhar, caçoar das crews adversárias92.

Como no „comportamento restaurado‟, rituais são „tiras de comportamento‟ que são repetidas independentemente de sua origem ou função original. Os movimentos, dizeres, posturas de rituais humanos são com frequência ações ordinárias que foram exageradas, simplificadas e depois repetidas93.

91 TURNER, 1982.

92 SCHECHNER, 2006. 93

100 Enquanto conjuntos fortemente institucionalizados ou efervescentes – quer regulem situações de adesão comum a valores, quer funcionem como reguladores de conflitos interpessoais -, os ritos devem ser considerados sempre como um conjunto de condutas individuais ou coletivas relativamente codificadas, com suporte corporal (verbal, gestual e de postura), caráter repetitivo e forte carga simbólica para atores e testemunhas (DOUGLAS apud SEGALEN, 2002, p.32). Devido ao fato de que rituais acontecem em lugares especiais, por vezes isolados, o próprio ato de entrar no „espaço sagrado‟ tem um impacto nos participantes. Em tais lugares, comportamento especial é requerido – há um ritual de entrada (que cria communitas), como foi presenciado na „batalha‟ do Cidade Hip Hop, no qual o ato de entrar no palco, ou pisar em cena, requer uma roupa especial, requer um momento de concentração e de encorajamento. Lugares seculares podem se tornar temporariamente lugares especiais por meio de ação ritual. De acordo com Turner (apud SCHECHNER, 2006), os rituais são mais do que função e estrutura; eles estão também entre as experiências mais poderosas que a vida tem a oferecer. Ainda, segundo Peirano (2006), rituais são tipos especiais de eventos, que são mais formalizados e estereotipados. Os rituais não se separam de outros comportamentos da vida social de forma absoluta, eles se relocam, repetem, enfatizam, acentuam algo que já é usual. “Rituais e “performances” privilegiam o fazer e o agir, reforçam o contexto, admitem o imponderável e a mudança, veem a linguagem em ação, a sociedade em ato e prometem alcançar cosmovisões” (PEIRANO, 2006, p.4, grifo nosso). Importante destacar que, na visão de Peirano, rituais e performance oferecem a linguagem em ação; se pensarmos a dança desse modo, como uma linguagem não verbal em ação (algo que será explorado mais adiante), é possível reforçar ainda mais o caráter ritualizado de uma „batalha‟ de breaking.

Aprofundando na performance como live art (ou arte ao vivo) de Renato Cohen (2009), é possível entender melhor a relação íntima de uma performance com o ritual. A live art busca uma aproximação direta com a vida, a extirpando de seu caráter apenas estético e resgatando sua característica ritual. Por haver uma acentuação muito maior do instante, do presente, do momento da ação (o tempo „real‟), cria-se a característica do rito, tornando o público não só em mero espectador, mas fazendo com que ele participe também de uma espécie de „comunhão‟94

, podendo aqui ser entendida também como

94

101 communitas, ou uma “modalidade de relação social de uma área de vida em comum” (TURNER, 1974, p.119). A compreensão de communitas para Turner (1974) tem uma certa característica de „fluxo‟, mesmo que muitas vezes surja de maneira espontânea e sem antecipação. O „fluxo‟ (ou flow) é uma “sensação holística presente quando atuamos com total envolvimento” (CSIKSZENTMIHALYI e MACALOON apud TURNER, 1982, p.55). O flow se apresenta em indivíduos - é um sentimento de controle das ações, uma corrente em fluxo que unifica um momento ao outro, o passado, o presente e o futuro95. É interessante notar que a palavra flow é muito utilizada no breaking no sentido de uma fluidez de um movimento para o outro. O dançarino que tem flow tem harmonia em sua dança – seus movimentos dialogam, não há ruptura ente um movimento e outro. O flow é a experiência de juntar a ação com a consciência – o ator está ciente do que está fazendo. A consciência está focada, o aqui é que importa. O ator em flow está em controle de suas ações e do ambiente96. Isso condiz muito com os relatos de b-boys e b-girls no momento em que estão na roda, principalmente na roda de „batalha‟, na qual seus movimentos são cuidadosamente calculados. Na „batalha‟ conseguem também manter um controle de suas emoções, bem como focar sua atenção no ambiente – na música, principalmente, nos jurados e em seu oponente.

A communitas é uma antiestrutura (no sentido de libertação das restrições da vida ordinária) – um vínculo que une pessoas acima de qualquer laço social formal. Martin Buber utiliza o conceito de comunidade para communitas: “a comunidade consiste em uma multidão de pessoas que não estão mais lado a lado, mas uma com as outras” (BUBER apud TURNER, 1974, p.154). Esta multidão se movimenta em torno de um objetivo, no entanto experimenta um fluxo do Eu para o Tu. A communitas transgrede ou anula as normas que governam as relações estruturadas e institucionalizadas e é acompanhada por experiência de poder sem precedentes. Turner (1974) ressalta que existem vários tipos de communitas, incluindo „normativo‟ e „espontâneo‟. Communitas normativa é o que acontece durante a comunhão num serviço católico – a communitas é oficial, ordenada, imposta. Communitas espontânea pode ser considerada como sendo secular, é um evento que move todos aqueles que dele participam. É quando as pessoas se veem cara a cara, quando o status é abolido, assim resultando em um encontro íntimo. Quase nunca acontece por acaso – é gerada pelo

95 SCHECHNER, 2006; TURNER, 1982.