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Secularização: o fim da supremacia da religião?

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1.2 MODERNIDADE RECENTE E A TRANSMISSÃO DA MEMÓRIA RELIGIOSA

1.2.2 Secularização: o fim da supremacia da religião?

Ao partirmos da premissa weberiana de que o desencantamento de mundo começou ainda nos profetas do antigo Israel, concluímos que foram longos os anos de maturação desse processo. Essa grande espera resultou naquilo que hoje chamamos “projeto de modernidade” e cremos ser importante pensar essa perspectiva em seu desenvolvimento histórico, o que nos ajudaria a não aceitar teorias que possam ser precipitadas na análise de outras mudanças, tal como as vividas pela religião.

Se dentro do processo de desencantamento de mundo foi preciso se adequar como o ser humano encara a natureza, passando de dominado a dominante dos meios naturais, isso só se fez possível devido, entre outras revoluções, a mudanças sociais, históricas, religiosas e também em detrimento à invenção de técnicas e instrumentos para tais feitos. Instrumentos criados pela razão humana e que servem para dar mais conforto e fazer viver mais e de maneira mais digna a qualquer um que tiver o conhecimento de tais instrumentalidades.

É possível ver o desenvolvimento massivo de processos de industrialização que, começando pela Inglaterra, se espalham rapidamente para várias regiões através do que Weber intitulou como capitalismo triunfante (PIERUCCI, 2005). O que começa muito antes ao desencantar o mundo, fazendo-o perder suas raízes mágicas, acaba passando por todos “os níveis da vida pessoal e social”, e pode ser visto na efervescência de movimentos tais como a “Revolução Francesa, a Revolução Industrial e o Iluminismo”. Sempre com a intenção de

universalizar “a razão, proclamar o primado do indivíduo e de sua liberdade” (ZILLES, 2008). E, se esse era o ponto principal, tal realidade poderia ser perpassada facilmente para todo o mundo, sendo preciso apenas um processo educativo eficiente (BAPTISTA, 2004). Se essa seria a única coisa que nos distanciaria do futuro tão almejado de glórias, é fácil perceber por qual razão aparece em cena o triunfalismo evolucionista do progresso humano. Como fruto disso, a educação ganha ares de ferramenta libertadora.

No pensamento dos pais do iluminismo, a promessa da ciência como possível forma de se curar o mundo de todos os males chegou a ser unanimidade (DOLL JR., 1997). A solução dos problemas e a emancipação humana passaria diretamente por ela (principalmente nas ciências duras, ou seja, a matemática, a física, a biologia etc.) (JAPIASSU, 1996). Esse processo parece ter alcançado seu ápice no século 19, produzindo aquilo que podemos chamar de a “pedagogização da sociedade”, que traz em sua esteira, “as palavras progresso, cidadania e democracia” (CAMBI, 1999, p. 372). As revoluções técnicas modificam o processo de ensino- aprendizagem, o que transforma a própria concepção histórica e cultural da sociedade. De maneira dialógica, essa pedagogização impulsiona ainda mais a produção técnico-científica, a qual ganha status de rainha da modernidade devido à importância da técnica para a emancipação humana (HACK, 2000).

Pois bem, se até anteriormente ao processo das grandes revoluções humanas quem detinha o poder educativo era a igreja, é de se pensar que seria ela que dominaria todas as demais estruturas. E aqui está a grande diferença encontrada na modernidade, não temos apenas a aceleração do processo de desencantamento de mundo, tal como já argumentamos. Mas vivemos o que Peter Berger chama de o “processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos” (BERGER, 2009, p. 119).9 A modernidade consegue, através da pregação racional de que ela seria capaz de solucionar os problemas humanos, subtrair as instituições religiosas como principais agentes promotores de sentido à vida humana. É nesse sentido que Rivera (2003, p. 91) argumenta que a secularização é o fator principal de escape da modernidade do “controle onipresente e asfixiante da igreja”. A modernidade, através da propagação do conhecimento e da técnica, gera um grande processo fragmentador. Se antes havia uma hegemonia determinante devido a centralização do poder da igreja, agora temos a centralidade dos indivíduos na formação de suas próprias identidades.

9 Aqui não cabe, devido a limitações de tempo e espaço, discutirmos o desenvolvimento do pensamento de Peter Berger sobre o processo de secularização, principalmente por sabermos que, em um estágio posterior, o autor acaba por relegar partes importantes de sua visão sobre o assunto, passando a crer em um tipo de “revanche divina”. Mesmo não entrando nessa discussão, se faz importante deixar claro que optamos por considerar apenas as primeiras construções teóricas do autor e não suas ideias mais recentes.

Se dentro do pensamento medieval, para seguir a linha de exemplos fornecidos anteriormente, a religião seria algo definido pelo estado e aceita pelos indivíduos; não existiria muito espaço para decisões pessoais, as quais não apenas eram desencorajadas, mas nem sequer existiam como possibilidade em grande parte das realidades. A novidade da modernidade “não é o fato de os seres humanos ora se aterem ora abandonarem a religião, mas é o fato de que a pretensão que a religião tem de reger a sociedade inteira e governar toda a vida de cada indivíduo foi-se tornando ilegítimo” (HERVIEU-LÉGER, 2008a, p. 34). Mesmo os atuais fiéis mais convictos não teriam dificuldade de concordar que sua crença é essencialmente uma decisão pessoal, não tendo sido imposta, mesmo que seus pais ou amigos também a sigam, coube a cada indivíduo pessoalmente decidir se deveria crer ou não.

Peter Berger (2009, p. 146) argumenta ser a secularização uma das mais importantes consequências derivadas da modernidade. Isso devido a, primeiramente, termos um sujeito que primeiro se viu livre filosoficamente, o que começou dentro do processo de desencantamento de mundo e alcançou na modernidade seu maior desenvolvimento. Esse sujeito começa a se sentir liberto das amarras que a igreja institucional exercia sobre a sua vida. Se isso trouxe uma autonomia mais completa ao indivíduo, também temos algumas mudanças estruturais que se fazem mais frequentes, principalmente devido ao pluralismo social e cultural ganhar força, gerando grande pulverização nos quadros de memória (BELLOTTI, 2010a; SANCHEZ, 2010).

Devido em partes a essa pulverização, iniciou-se certa decepção com o que se passou na história da humanidade. Alguns teóricos afirmam que esse pensamento possibilita o surgimento de uma certa “crise” no modelo modernista, pois parece claro que existiu/existe uma desilusão com as promessas da era da razão e da ciência. Isso ocorre em casos reais tais como a “urbanização extremamente desumanizante, a monstruosa desigualdade social, a indústria de morte de armas e das drogas, a construção de campos de concentração, a confecção e explosão das bombas atômicas sobre o Japão” (LIBÂNIO, 1998, p. 62; 2002). A humanidade estaria desiludida com os instrumentos criados através da racionalização humana, a mesma que prometeu que a ciência tomaria o “lugar de nossas esperanças e de nossas angústias” (JAPIASSU, 1985, p. 93). Para aqueles que esperavam que a razão daria conta dos problemas humanos, resolvendo-os, restou à decepção das guerras.

Se seguirmos esse pensamento, é possível dizer que com a atual crise do modelo científico, as antigas angústias e esperanças voltam a estar sem um porto seguro. Se por um lado, a modernidade trouxe grandes avanços ao tentar melhorar a vida do ser humano; ela também pode ser acusada do surgimento de grupos de livre interpretações da Bíblia. Campos (2008) indica uma tensão entre “a letra que mata” e o “espírito que vivifica”, que teria marcado

o “surgimento do pietismo alemão, do avivalismo inglês e norte-americano e, no início do século 20, a explosão do pentecostalismo (FOERSTER, 2007; OLIVEIRA, 2009; 2004). Nesse sentido, Mendonça (2012, p. 78) nos lembra dos conflitos ligados entre a racionalidade e o misticismo emocional. Foi dentro dessa discussão que se ampliou enormemente o número dos grupos religiosos encontrados na modernidade recente, principalmente grupos emocionais, avessos a racionalização moderna. Feito esse que levou vários teóricos a decretar que a tese da secularização estaria morta, com o ressurgimento do divino-primitivo. Mas seria a frustação com a ciência à melhor explicação para o surgimento dessas novas religiões?

Pierucci (1997, p. 114) foi um dos primeiros brasileiros a se levantar contra a suposta volta do sagrado-primitivo. O autor defende que não temos, no crescimento dos grupos religiosos, uma volta da religião ou o fim da secularização. Muito pelo contrário, existe aqui uma aceleração de todo o processo secularizante. Um processo que Touraine (2002, p. 324) definiu como uma religião que se explodiu, no sentido de perder suas antigas premissas, mas que não por isso teve todos os seus componentes desaparecidos por completo. Existem pedaços e retalhos dessa explosão que sempre estiveram conosco. E outros que nunca voltaram a ativa. Estamos falando de um processo de separação entre igreja e estado, entre indivíduo e coletivo, e isso não parece que retrocedeu para a grande maioria da população que vive no Ocidente. Como não existe o fim da secularização, nunca existiu a perda completa e final do religioso. E talvez seja esta uma das grandes dificuldades encontradas no conceito de secularização na discussão de diversos teóricos: a associação de secularização com o extermínio do religioso.

O desencantamento da religião é um processo de longa data, ocorrido primariamente dentro do próprio pensar religioso, como no caso lembrado por Weber sobre os profetas judaicos. É verdade que a idade moderna consegue algo antes inédito na história recente do ocidente, a separação entre igreja e estado, na qual a primeira não mais dita as regras a serem seguidas no coletivo. Mas é preciso discutir se essa relação ocorre como causa ou como efeito. Foi a religião que perdeu seu lugar e permitiu o avanço dos demais sintomas da modernidade, tal como o individualismo? Ou seria a crescente onda de individualismo que provocou a derrocada do poder religioso hegemônico?

As diferentes respostas a essas perguntas nos conduzirá a diferentes propostas sobre a secularização. No caso de uma sociologia na qual a religião é vista com um fim decretado, temos o perigo de transformar o fim no ponto mais importante da discussão e, com isso, ignorar o objeto no momento em que ele se encontra ao enfatiza-lo em demais em sua perspectiva futura – e isso vale tanto para a religião como para a modernidade. Agindo assim, começaremos a pensar através de pressupostos consolidados, os quais são encaixados dentro do objeto a ser

esclarecido. Se tenho para mim que chegará um tempo no qual a religião precisará ser exterminada para dar ao mundo uma nova era de luz, notadamente terei uma posição de alguém que perceberá a religião como secundária no esforço para a individualização e emancipação do ser humano moderno. E isso me conduzirá a ver qualquer modificação na estrutura social religiosa como o fim desse instrumento. Agora, se vejo a religião com importância social e o ser humano como um ser intrinsicamente simbólico e antimaterialista, poderei julgar que tudo hoje se transforma em religião, tal como o culto as marcas publicitárias (ex: Apple). Essas marcas não teriam fãs, mas adoradores (SILVA, 2008). E esse discurso de uma volta a uma adoração mais primitiva, quase mágica, ganha adeptos (VILHENA; PASSOS, 2012; JAMESON, 1997; LYOTARD, 2006).

Para Hervieu-Leger (1997, p. 36), “o mito do religioso pleno das origens – mito fundador de muitas teorias da secularização” acaba por associar “dois postulados quanto ao “estado puro” do religioso”. Nesse caso, a autora coloca que no primeiro postulado temos a visão de que religião institucionalizada sempre foi apenas uma “forma empobrecida (“domesticada”) de uma experiência originária, de natureza extra-social”. Continuando em sua argumentação, ela diz que o segundo postulado pensa a religião nos primórdios da sociedade equivalendo ao social como um todo, não existindo diferença entre instituições naquele primeiro período histórico. Aqui temos um eco de pensamento evolucionista defendido por tantos teóricos, considerando que a religião nada mais é do que um dos estágios da construção e emancipação do ser humano e da sociedade. Dentro dessa visão, a televisão e o frenesi causado pelas celebridades lembrariam em muito a religiosidade primitiva. Assim também as enormes filas para se comprar um iPhone seriam vistas como a retomada de rituais religiosos através de instrumentos capitalistas, tal como os shoppings seriam vislumbrados como templos do consumo, em analogia com a religião.

Podemos dizer que essa maneira de analisar os renascimentos religiosos atuais como processo de “reinvestimento do universo simbólico moderno, esgotado pela invasão da racionalidade instrumental, fundamenta-se, como vimos, num conjunto de hipóteses (de origem durkeimiana) que dizem respeito ao processo de estabilização institucional das emoções originárias, situs, do ‘religioso pleno’” (HERVIEU-LEGER, 1977, p. 36). A religião é vista, dentro da realidade social, na lógica do encolhimento, na qual em algum momento ela chegaria ao fim, devido a constante racionalização da sociedade à sua volta. Quando isso não ocorre, acusa-se uma revanche da religião e uma volta ao primitivo.10

10 Percebemos, nessa argumentação, uma religião pensada em seu potencial como construtora de relações de poder. Ao unificar a coerência social, no pensamento durkeiminiano, à guisa de empoderar o líder religioso em detrimento

Não se deve encarar a religião dicotomicamente, seja como relação de poder, unificadora social ou através de uma vertente cultural/emocional primitiva. É muito simplista acreditar em um fim completo tanto como na uma volta de um estado primitivo (considerado perfeito) da religião. Também é simplista apregoar o fim completo do modelo modernista racionalista, mesmo com as crises vividas em detrimentos às guerras e outras questões. Pensamos ser mais coerente encarar todas essas opções simultaneamente. Qualquer teoria que privilegie um mundo perfeito/ideal parece se ancorar na nostalgia de um mundo irreal. No caso da religião, é coerente pensar que se nunca existiu uma sociedade estável e unificada, também nunca encontraremos o discurso religioso com tais características. Em outras palavras, a religião viverá tudo quanto a sociedade viver. Não existe espaço para acusar o fim completo de uma transmissão religiosa ou social para a retomada de outra, o que há, na grande maioria das vezes, são mudanças. Algo inerente à uma sociedade complexa e que precisa dessas mudanças para (re)produzir.

Dentro disso, a sociologia da transmissão (religiosa ou não) “deve orientar-se em direção ao estudo da construção das identidades”, sempre partindo da experiência dos próprios indivíduos. Para exemplificar, o pensar a religião parte das relações “sociorreligiosas, de tal modo que ela seja feita a partir da experiência dos sujeitos religiosos” (HERVIEU-LEGER, 2000, p. 42). Se o indivíduo é um ser complexo, assim devemos encarar a sociedade. O que nos conduz a uma resposta híbrida a pergunta feita anteriormente: é verdade que a religião perdeu seu lugar hegemônico, principalmente devido ao crescimento do individualismo. Mas também é verdadeiro que o individualismo consegue produzir um novo tipo de poder religioso. Antes de acusar a retomada de um determinado passado, é mais coerente pensar a vida religiosa como parte das transformações que sempre ocorreram na sociedade.

Dito isso, é possível argumentar que há, sim, um processo aparentemente paradoxal em jogo na modernidade, principalmente no período do final século 20 para cá.11 Existe um

ao mero crente, é fácil entender a demanda sociológica de estudar a religiosidade nessa perspectiva. A institucionalização do religioso através das diversas denominações acabam por ser um “prato cheio” para o pesquisador que dá conta de que tal realidade influência a vida política e social do grupo do estudo em questão. 11 Essa relação pode ser percebida através de quatro preposições que temos construído ao longo do presente capítulo, a qual pode ser resumida a seguir: a primeira seria a constatação de que a modernidade se ancorou, para existir tal como é, no pensamento judaico-cristão (como argumentamos via Max Weber). Na segunda temos a afirmação da existência de que ainda vivemos um processo escatológico na atualidade (como lembramos a partir de uma rápida passada em vários teóricos modernos, os quais sempre colocam o fim da história como o alvo a ser alcançado pela humanidade). Já a terceira é que, apesar das crises da modernidade, ainda temos na racionalização a maior fonte de desenvolvimento social (acabamos de argumentar que, apesar da crise que possa pairar em cima da ciência racionalista, sendo ela colocada em xeque, em nenhum momento ela foi substituída como parte fundamental de nossa sociedade: e a nossa dependência cada vez maior, a medicina está aí para deixar isso bem claro). Por final, a quarta proposição se relaciona intimamente com a segunda, indicando a necessidade, ainda presenciada na atualidade, quanto a busca pelo fim da história, mas agora reconfigurado não mais para o porvir (um céu), e sim pelo “eterno agora” (queremos viver o Paraíso aqui na Terra, o quanto antes e com a maior intensidade possível) (HERVIEU-LÉGER, 2008a).

“movimento pelo qual a modernidade continua a minar a credibilidade de todos os sistemas religiosos”, fazendo com que as religiões tradicionais percam seu espaço, tal como argumentamos a partir dos pressupostos da secularização e do desencantamento de mundo, mas, ao mesmo tempo em que isso acontece, também existe um processo aparentemente paradoxal em curso, a mesma modernidade parece criar “novas formas de crenças” (HERVIEU-LÉGER, 2008a, p. 41).12 Mas por qual motivo isso ocorreria? A modernidade traz consigo um novo espaço-tempo, o qual se ancora na conhecida dinâmica da utopia escatológica. O avanço da modernidade, através de novos instrumentos técnicos e de modificações filosóficas, traz uma forma de ser e estar no mundo; o que, não é de se espantar, produz crises tanto em grupos como em indivíduos que precisam se adaptar a uma época de rápidas mudanças (HERVIEU-LEGER, 2008a, p. 40). Dessa maneira, podemos entender a secularização de uma maneira mais híbrida e não como o fim (ou não) do sentimento religioso (HERVIEU-LÉGER, 1987). A melhor definição é vê-la como um processo no qual existe uma “reorganização permanente do trabalho da religião numa sociedade estruturalmente impotente para preencher as expectativas que ela deve suscitar para existir como tal” (HERVIEU-LEGER, 2008a, p. 228).

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