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Transmissão religiosa e a midiatização

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1.3 TRANSMISSÃO RELIGIOSA NA MODERNIDADE RECENTE

1.3.1 Transmissão religiosa e a midiatização

Seja pela complexidade de construções e teóricos envolvidos, ou pela longa duração do seu processo de desenvolvimento, se faz quase impossível qualquer tentativa de se definir de maneira absoluta o conceito de modernidade. Contudo, é necessário realizar tal empreendimento à guisa de entender nosso tempo e realidade, os quais são percebidos através de alguns contornos, ora claros, ora mais difíceis de delimitar (BALANDIER, 1997). Como

vimos até aqui, é possível pensar a modernidade a partir de três características principais: 1) o ideal racionalizante; 2) a autonomia do indivíduo-sujeito, ao conseguir produzir, se não a totalidade, boa parte das bricolagens identitárias necessárias para sua existência; e 3) a perda da força totalizante das instituições, separando o que antes era uma coisa só, principalmente à relação entre política e religião (HERVIEU-LÉGER, 2008a).

Outro ponto que argumentamos é que não existe na definição de modernidade uma relação obrigatória acerca do fim da religião. Se em alguns teóricos a perda da importância da religião seria o marco regulatório central, aqui se opta por perceber esse evento relacionado a uma das três características centrais mencionadas. A mudança da religião estaria mais alocada como fruto da individualização, em um processo dialógico, e não com um fim em si mesma. É claro que existe uma mudança de paradigmas entre uma pré-modernidade mágica e um novo processo de desencantamento de mundo, mas não cremos que a modernidade trouxe o fim do sentimento ou fazer religioso, pelo contrário, o que ela conseguiu foi produzir um novo tipo de pensamento, uma nova concepção e sentir social, ligados ao processo de individualização e racionalidade. E, com isso, uma nova religião com características próprias da modernidade.

Se nas sociedades regidas pela tradição temos “um código geral de sentido” imposto de fora para dentro, na modernidade vivemos o ápice do ser humano como fundador da verdade, da história, da lei e do sentido dos seus atos. É claro que nas primeiras podemos perceber, muitas vezes, o ser humano negociando com as tradições externas. Nesse sentido, não é tanto o indivíduo que mudou, ao contrário, acreditamos que ele sempre tenha possuído a capacidade de articular esse tipo de negociação (HALL, 2009). A grande modificação ocorrida na modernidade teve início no desencantamento do mundo, processo bem antigo da humanidade, assim, o que vemos como o grande diferencial da contemporaneidade é a constante diminuição do papel da religião institucional como fundadora e legitimadora única da identidade dos indivíduos e não a superação da religião.

É comum a crítica de que esse processo não teria abarcado apenas as instituições religiosas, mas produziria o efeito colateral de ter destronado a quase totalidade das instituições tradicionais de seu lugar de primazia na construção de identidades. Teóricos se levantaram para mostrar as problemáticas associadas a essa relação, chegando a declarar o fim das instituições, as quais teriam sido dissolvidas em micropoderes (FOUCAULT, 1984; ver SANTAELLA, 1996). Muitos foram os que decretaram existir agora uma pós-modernidade, baseada não mais em narrativas únicas e solitárias, mas em muitas versões provindas de diferentes locais (LYOTARD, 2006; JAMESON, 2005). Essa não seria a melhor opção teórica, dado não existir uma negação dos marcos constituintes da modernidade, tais como a racionalização e a

individualização, o que parece ocorrer é uma expansão dos padrões estruturais da modernidade para todos os recantos da vida e do mundo (TOURAINE, 2002).

As modificações sociais ocorrem por diversas razões e, na modernidade recente, não se pode esquecer como os instrumentos comunicacionais possibilitaram uma maior autonomia do indivíduo dentro de seu contexto cultural, isso desde a expansão do escrutínio do dia a dia através do jornal imprenso, pela informalidade e abrangência do rádio e da televisão (MARTÍN- BARBERO, 1995; 1987; 2003; 1997; MARTINO, 2010), que democratizam o acesso a diversos tipos de conhecimento sem necessidade de requisitos excluidores como a alfabetização (ONG, 2001; ver CAMPOS, 2008), chegando ao auge com a popularização da internet, a qual permite a cada indivíduo, independente do seu conhecimento, dar sua opinião sobre qualquer dos assuntos em pauta (RUDIGER, 2013; SODRÉ, 2013; TRIVINHO, 2001).

Esse processo de modificação social através dos instrumentos técnicos comunicacionais pode ser chamado de midiatização. Esse termo é usado desde a década de 1970, porém não existe um único significado para ele. Entretanto, aceitaremos a definição de Sodré (2006, p. 21) de ser ela “uma virtualização das relações humanas, presente na articulação do múltiplo funcionamento institucional e de determinadas pautas individuais de conduta com as tecnologias da comunicação”. É uma tendência nos estudos comunicacionais latino-americanos se considerar que a sociedade se rearticula completamente devido à presença cada vez maior da mídia como aglutinadora das instâncias socioeconômicas (NETO, 2008).21 O conceito cultura de massa22 não permite mais explicar o contexto da sociedade moderna. Para se fazer compreensivas as modificações que ocorreram no contexto sócio-político-cultural da cultura de massa, surgiu um novo pensamento que é a cultura das mídias. Essa nova noção de cultura não deve ser entendida como uma atualização da cultura de massa, mas como um novo aspecto do diálogo coletivo, uma nova organização dos costumes sociais, que foi definida pelo surgimento dos meios. A midiatização da sociedade, é, assim, a reconfiguração social de significados e identidades criados, os quais agora se reproduzem e se transformam “a partir das novas tecnologias e meios de produção e transmissão de informação” (CUNHA, 2007, p. 19; 2004).

O conceito de cultura das mídias, segundo Kellner (2001), se qualifica como cultura de imagem e de alta tecnologia, já que ela é veiculada por meio de “imagens, sons, espetáculos,

21 Essa seção sobre midiatização teve a contribuição de Ana Paula Pirani, com quem discuti esses assuntos longamente. No mesmo momento em que escrevia esta tese, co-orientava seu TCC, o que me ajudou muito a desmembrar e discutir vários assuntos de maneira mais didática. Só tenho a agradecer a ela.

22 “A ideia de cultura de massa foi construída a partir da compreensão de que havia um conjunto de objetos produzidos para as massas e consumidos por ela. Ela tem embutida a ênfase numa sociedade em que as maiorias consomem de forma complexa e indiscriminada, subordinadas à indústria cultural, e, consequentemente, às classes dominantes que fabricariam produtos sob estratégias de poder econômico e ideológico” (CUNHA, 2007, p. 19).

informações, que medeiam a construção do tecido social, ocupando o tempo de lazer das pessoas, fornecendo opiniões políticas, oferecendo formas de comportamento social”. Tirando proveito da visão e da audição para desenvolver ideias e sensações, ela se tornou um dos ramos mais rentáveis na economia mundial. Conduzida pela necessidade de mercado, a cultura da mídia acaba, após sua consolidação, por mover esse mercado em um processo de retroalimentação. Dentro dessa lógica, a cultura das mídias “trabalha como uma indústria que precisa produzir em massa para servir ao mercado em expansão” (CUNHA, 2007, p. 19-20). Mas ela não é um sistema que prega ideias fixas ou uma cultura que condiz com o capitalismo e seus fomentadores, a cultura das mídias move-se com os “prazeres propiciados pela mídia e pelo consumo” (KELLNER, 2001, p. 11). Assim, como cria e recria esses mercados.

Podemos separar dois termos que são comumente usados como sinônimos, mas dentro dessa nova lógica da cultura da mídia, seriam melhores entendidos separados. O primeiro seria a mediação, termo entendido quando ocorre o uso de meios de comunicação por uma instituição para transmitir uma mensagem, sem que nenhuma prática seja alterada para isso. Essa relação era comum dentro da antiga lógica da sociedade de massa. Já midiatização “tem início no momento em que as mídias, tornam-se parte das atividades individuais e institucionais. Quando os processos sociais assumem novas configurações, ganhando outras formas e contornos” (FINNEMAN, 2011). E aqui temos a novidade trazida pela sociedade midiatizada. Abaixo observamos algumas semelhanças e diferenças desses termos, a partir de uma tabela criada por Martino (2016, p. 38) a partir de vários teóricos.

Mediação Midiatização

Nível de ocorrência Micro (indivíduos, comunidades,

instituições, organizações)

Macro ( Sociedades, estados, processos e práticas sociais)

Indica Uso da mídia por indivíduos,

comunidades e grupos

Articulação de práticas individuais e sociais com a mídia

Questão

Quais são as condições de construção dos sentidos, pelo receptor, das

mensagens da mídia?

Como pessoas e instituições articulam suas práticas cotidianas com o ambiente

das mídias?

Conceito de mídia Canal / Linguagem Ambiente

Foco

A recepção da mensagem da mídia e as articulação com indivíduos, grupos e

comunicadores

O processo a partir do qual algumas práticas sociais são pautadas na lógica

das mídias

Características

Uso da mídia, por indivíduos e comunidades, para compartilhar a

mensagem

Práticas individuais e sociais adotam a “lógica da mídia”

Não é complicado afirmar que o consumo precisa dos meios de comunicação para sua constante expansão, mas os teóricos da midiatização acreditam que não apenas o consumo, mas a política, a educação, a religião, os laços familiares e mesmo a memória estariam vivendo uma rearticulação em sua existência e forma de ser, agora vivendo em função da própria estrutura midiática, não existindo mais à parte desse repositório. “Afinal, ‘emissores’ e ‘receptores’, estão presente no mesmo ambiente cultural, dividem várias referências, tem pontos comuns em suas histórias e vivências” (HALL, 2009 p. 368). A importância dessa discussão está relacionada aquilo que muitos teóricos, tal como Bauman (2000), afirmam ocorrer, por exemplo, com a ágora política (poderíamos aqui usar a religião, a educação ou outro exemplo). Para o autor, cada vez mais ela se desloca dos parlamentos e encontra seu novo lugar na televisão e na internet. Ou seja, é possível a política usar os meios comunicacionais (mediação) ou se formular e existir socialmente a partir da lógica desses meios (midiatização). E seria essa segunda a encontrada em uma sociedade regida pela cultura da mídia.

Podemos questionar se a sociedade já estaria completamente midiatizada. Por um lado, parecem claras as evidências de que muito do que vivemos agora é articulado via meios de comunicação. Por outro, os mesmos exemplos usados para justificar a existência do processo de midiatização acabam por ser também a prova contrária. Por exemplo, usar cultos religiosos onlines e que seguem uma abordagem influenciada pela mídia pode ajudar a entender como a midiatização é frequente. Mas também é possível notar ainda velhos ritos e práticas religiosas que pouco parecem se importar com a passagem do tempo e com os meios comunicacionais. Sendo assim, podemos afirmar que existe, sim, tal modificação social. Mas ela ainda não é totalizante e determinante socialmente, embora tenha alta relevância.

Na sociedade moderna e midiatizada vemos um processo cada vez maior de individualização, seja devido a mudanças sociais ou tecnológicas. No final, o efeito é uma nova constituição identitária do sujeito contemporâneo (MARTINO, 2011; 2014). Quando pensarmos a questão da transmissão religiosa, precisamos ter em mente que a dificuldade encontrada na modernidade (midiatizada) recente não é apenas o grupo transmitir bem ou correr o risco de perder o poder de transmissão, conclamando-se uma crise no poder transmissor. Cremos que o processo de transmissão nunca se fez perfeito ou mesmo completo, sempre existindo momentos de rupturas e de incompletude, seja a época que for. Ao fugirmos de uma visão perfeita de sociedade, poderemos nos deparar com um processo de transmissão da memória religiosa adaptada aos novos contextos sociais. Se o mundo está em mudanças na atualidade, introduzido devido aos novos meios técnicos e as novas formas de se pensar a

realidade, seria de se esperar uma nova rearticulação religiosa, com novas religiões produzindo para uma nova época.

Essa relação foi auxiliada devido a acusada perda da relação entre tempo e espaço na comunicação (instrumentos da modernidade recente). Primeiro, a mídia acaba por eliminar o tempo ao tornar fácil receber notícias no momento em que elas acontecem. O segundo passo foi a eliminação do espaço, através da mídia vemos o que não víamos e temos condições de “estar” em vários locais quase que simultaneamente, tal como conseguir falar com alguém distante de maneira como se ela estivesse ao nosso lado. Associada a perda da antiga predominância, os instrumentos comunicacionais ajudaram a trazer um novo desafio para as instituições sociais e para os quadros da memória, ao tornar o processo de transmissão cada vez mais fragmentário e superficial, o que já havia sido iniciado na modernidade, é continuado aqui.

Mesmo com essas dificuldades, não se vive uma crise, ou mesmo o fim, do processo de transmissão, pois, ao aceitarmos o pensamento defendido por Halbwachs quanto a importância dos grupos sociais e de suas transmissões para a existência do social, entendemos que os grupos, importantes agentes identitários, se multiplicam e se mantém apenas se a transmissão continuar a existir. E, como eles ainda existem, não poderemos colocar a transmissão como o foco do problema. Por outro lado, parece ser coerente afirmar que existem, sim, novas adaptações em curso. Uma sociedade em mudança exige novos padrões. Mesmo que tenhamos obtidos coisas boas com o avanço dos meios de comunicação eletrônicos, também é possível argumentar que a atualidade midiática, como local preponderante de manutenção da memória, causa certa efemeridade na estrutura produzida para a ancoragem dos quadros sociais da memória. Produzindo-se quadros identitários cada vez mais fragmentários. E isso pode ser algo com o que as instituições religiosas deveriam se preocupar.

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