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Para Antonio Candido (2001), a fome é um fenômeno que envolve a vida or- gânica e a vida social. Ainda que os alimentos estejam ligados a um meio natural, só se tornam alimentos quando o homem os seleciona e os reconhece como alimentos. Transformações sociais podem, assim, rearticular as relações entre os indivíduos e o meio natural, ressignifi cando o que é básico e o que é acessório na alimentação.

Marshall Sahlins (2003) explora as condições em que é produzido o univer- so de alimentos apropriados como comestíveis e não-comestíveis ou a “lógica simbólica” que estrutura a demanda por alguns alimentos e a recusa de outros. A distinção entre interno e externo, por exemplo, ou a percepção do que é sujeito

e o que é objeto tende a orientar fortemente o consumo de alimentos. Como exemplo, o autor cita o consumo da carne de cachorro ou de macaco para os indivíduos na sociedade americana. Comer cachorro, animal que divide o espaço doméstico e que tem nome, ou o macaco, que parece muito conosco, em geral, são práticas alimentares interditadas. Já o boi, animal bem mais distante, que não recebe afeto ou ganha nome, tende a ser uma das opções mais valorizadas da dieta. Esse esquema de diferenciação pode avançar produzindo, também, “gradações” no valor dos alimentos sancionados socialmente. Como analisa Marshall Sahlins, até a carne de boi é subdividida em partes, mais e menos desejáveis e valorizadas. O fi lé tende a ser a parte mais nobre e as vísceras ou a língua a menos disputada. Tal classifi cação, como mostra o autor, não é regida pela “lógica do mercado” e pode-se dizer que ocorre uma subversão completa: há mais oferta de fi lé no boi que de língua, que é mais rara, porém, seu preço é bem menor.

O valor nutritivo não tende, também, a ser o único princípio para a escolha dos alimentos pelos indivíduos e grupos sociais. Diferentes códigos, status e registros sociais operam na seleção e valorização de alimentos. A análise dos processos de construção cotidiana dos alimentos “prioritários e convenientes” e do gosto entre as diferentes classes sociais constitui dimensão importante da pesquisa sobre consumo alimentar. Ao mesmo tempo, como mostra Pierre Bourdieu (2007), podemos compreender as diferenças de posição e espaço so- cial ao observarmos as escolhas dos gêneros, a maneira de servir e a utilização de utensílios na preparação e no consumo de alimentos.

Nessa direção, a fome e a insegurança alimentar integram faces biológica e fi siológica, mas também faces cultural, simbólica e política. É preciso entender tanto a estrutura de prerrogativas que permite o acesso aos alimentos como o perfi l da escolha, da distribuição dos alimentos no interior das famílias e do con- sumo alimentar em cada fase da vida.

O alimento envolve, portanto, diferentes signifi cados nos diversos contex- tos sociais, e serão esses signifi cados que irão direcionar o alimento como “ bem público” ou direito humano inalienável. O alimento não é algo que as pessoas de- sejem ou utilizem fora de suas relações sociais. Mesmo entre os pobres, pode-se perceber a existência de low class food, ou seja, alimentos que são socialmente pouco valorizados. Por outro lado, o afastamento da “lógica da necessidade” e a busca de alimentos que, no cotidiano, podem ser considerados como luxo ou desperdício marcam situações especiais, rituais, e mesmo rupturas no âmbi- to das famílias. Assim, como lembra Mary Douglas (2002), o alimento torna-se uma metáfora e espelha uma gradação social. Nesse aspecto, sociedades com profundas desigualdades sociais tendem a conviver com formas distintas e, por vezes, antagônicas de percepção sobre a importância e o papel dos alimentos na manutenção das condições de vida e de saúde.

Nessa perspectiva, as políticas públicas defrontam-se com desafi os impor- tantes, tanto no que se refere à construção de perfi s mais eqüitativos de acesso e consumo alimentar como na confi guração de práticas saudáveis. No contex- to brasileiro, onde os arranjos de seguridade social universais são frágeis, não sendo garantida a possibilidade do acesso a bens e serviços, independente de contribuição prévia ou da renda, as questões da fome e da insegurança alimentar tornam-se problemas permanentemente inscritos na agenda pública. Mas, ainda que a fome e a insegurança alimentar estejam ligadas a um baixo poder de com- pra, não podemos esgotar tal discussão analisando apenas o poder aquisitivo da população. Transformações profundas na produção e disponibilização de alimentos,

favorecendo mais a regulação e a fi scalização associadas à busca de níveis de informação menos desiguais sobre riscos, são extremamente importantes e ten- dem a alcançar novos patamares de efetividade. Ao mesmo tempo, como chama a atenção Rodolfo Hoffman (1995), a lógica dos direitos pode subverter a lógica do mercado e, dessa forma, garantir a alimentação da população em qualidade e quantidade sufi cientes. Quando pensamos nos escolares com direito universal à merenda produzida com alimentos frescos e vinculados aos hábitos de consumo locais, por exemplo, percebemos que podem ser garantidas e instituídas formas de acesso à alimentação para além dos mecanismos de mercado e coerentes com a perspectiva de promoção da segurança alimentar.

Sem dúvida, existem interfaces entre pobreza, fome e insegurança alimen- tar. Na própria defi nição de pobreza, com base em critérios de renda ligados à satisfação de necessidades nutricionais mínimas, chegamos à caracterização da pobreza extrema, da indigência e da população em risco alimentar. O que não podemos concluir é que aqueles que vivem em pobreza extrema sejam desnu- tridos, portem problemas nutricionais ou que seja a falta de renda a única causa da insegurança alimentar. Somente estudos antropométricos, clínicos e bioquí- micos, associados aos estudos que delimitam o perfi l de prerrogativas para o acesso aos alimentos instituído na sociedade, podem contribuir efetivamente para a defi nição dos grupos mais vulneráveis à insegurança alimentar. A análise do alcance das políticas de acesso à terra, à educação, à saúde, ao saneamento e ao trabalho também se mostra crucial. O estudo da estrutura de salários, dos níveis de indigência ou da disponibilidade de alimentos não é sufi ciente para entender as experiências locais de segurança alimentar e nutricional. Em outras palavras, aspectos legais, políticos, sociais e culturais em torno da alimentação são fundamentais para explicar por que alguns grupos vivem experiências de insegurança alimentar e outros não.

As relações entre Estado, mercado e sociedade confi guram determinados perfi s de acesso e consumo alimentar, e, por isso, é importante compreendê-las para o desenho de políticas públicas efetivas. A própria idéia de segurança alimen- tar e nutricional (SAN) como bem público envolve o reconhecimento de uma teia de relações entre os indivíduos, a comunidade, o mercado e o Estado que irá, na prática, conformar o verdadeiro signifi cado que a SAN assume em diferentes sociedades. Mesmo que, legalmente, a SAN possa ser reconhecida como direito e bem público, na prática, muitas vezes, o alimento é tratado como mercadoria, e os interesses privados podem ser superpostos aos interesses públicos.

Amartya Sen (1981), investigando as relações entre pobreza, fome e prer- rogativas, aborda o contraste entre os alimentos entendidos como mercadorias e as múltiplas relações que podem ser estabelecidas entre tais mercadorias e os indivíduos. Assim, para o autor, discutir os processos e as experiências da fome e da insegurança alimentar impõe entender não apenas os aspectos mais claramente ligados à oferta e demanda de alimentos, mas também a concepção de direitos que opera em cada contexto social. O que, em última análise, garante ou ameaça o acesso à alimentação.

Em uma economia capitalista, geralmente, existem várias fontes de acesso ao alimento para além da compra direta no mercado, como a produção priva- da para o próprio consumo e, também, outros circuitos de troca que garantem o acesso ao alimento, como transferências por meio de doações ou subsídios governamentais. São múltiplas, portanto, as infl uências e os fatores que deter- minam a capacidade dos indivíduos alcançarem ou não a segurança alimentar e nutricional. Ainda que, na sociedade moderna, o mercado tenha emergido como

a principal fonte de satisfação das necessidades humanas, dentre elas a alimen- tação, na verdade, tal concepção individualista foi, paradoxalmente, acompanha- da pela expansão de uma “linguagem dos direitos”. Tal linguagem faz com que não só o mercado assuma novo lugar e novas atribuições nas sociedades con- temporâneas, mas também o próprio Estado.

Na perspectiva liberal, o Estado deve interferir o mínimo possível no funcio- namento do mercado para garantir o gradativo aumento da riqueza e o alcance de resultados com base nas habilidades e na capacidade empreendedora dos indivíduos. Esse pensamento é revisto diante das conquistas obtidas pelos di- reitos de cidadania, incluindo o direito à alimentação. De fato, a emergência do Estado social em vários países, após a Segunda Guerra Mundial, vai representar uma reversão nas expectativas otimistas acerca da capacidade do mercado de se auto-regular e, assim, garantir o bem-estar da população.

Dessa forma, o Estado deixa de atuar apenas onde persistem as chama- das “falhas de mercado” e passa a assumir um papel-chave nos processos que envolvem a geração de demandas e a oferta de bens (Bobbio, 1992). Ainda que contradições, resistências e novas tensões surjam continuamente nos cenários político e social – e que, muitas vezes, possam ser traduzidas numa “onda neoli- beral” ou em mudanças nos papéis do Estado, do mercado e da sociedade –, o surgimento dos direitos levando à construção e conquista de novas alternativas de bem-estar, aos poucos é incorporado pela população e torna-se pauta de mo- vimentos e lutas coletivas.

Assim, a possibilidade de um indivíduo evitar a insegurança alimentar, por exemplo, irá depender não só de sua condição de proprietário, comerciante, em- pregado ou herdeiro, como também de membro de um conjunto mais amplo de trocas que garantem direitos. Isso é o que Amartya Sen chama de entitlement

map, ou seja, uma ferramenta teórica e metodológica que permite analisar o con-

junto de fl uxos e canais que garantem, de forma legítima, o acesso aos alimentos de acordo com os princípios da segurança alimentar e nutricional.

No Brasil e em vários países do mundo, após a década de 1990, as agen- das das políticas públicas de proteção social, combate à pobreza e promoção da saúde e da segurança alimentar e nutricional têm incorporado o debate sobre os programas de transferência condicionada de renda. Frente às transformações nas condições de vida ligadas ao aumento do desemprego, à precarização das re- lações de trabalho e à crise de laços e vínculos sociais, tais programas emergem como alternativas às ações tradicionais no campo da assistência social e, além do alívio da miséria e da fome, visam a garantir impactos positivos no desenvol- vimento de capital humano por meio da transferência de benefícios monetários não-contributivos associados a contrapartidas sociais. As contrapartidas ou con- dicionalidades exigidas às famílias ou aos indivíduos podem incluir a manuten- ção dos(as) fi lhos(as) na escola, o uso dos serviços básicos de saúde ou, ainda, a inserção em ações complementares de capacitação profi ssional, educação e geração de emprego e renda favorecendo, portanto, efeitos em longo prazo no perfi l de desigualdades sociais.

A implementação de múltiplas experiências na Europa, na América Latina e na África tem despertado o interesse no acompanhamento das ações e na avaliação de resultados. Ainda que a maioria dos estudos reitere os pontos de contato entre as distintas iniciativas, existem também fortes evidências de que o desenho operacional e os processos de cadastramento, seleção e monitoramen- to variam de acordo com as respectivas dinâmicas político-institucionais locais. Na França e na Espanha, o desemprego prolongado e a erosão das formas de

solidariedade familiar e comunitária têm impacto na identidade social de cate- gorias da população antes fortemente protegidas. Assim, no contexto europeu, as políticas de transferência de renda tendem a buscar corrigir a estigmatização e a discriminação, reintegrando os indivíduos ao mercado de trabalho. A análise de Laura Rawlings e Gloria Rubio (2003) sobre os programas desenvolvidos na segunda metade dos anos 1990, em lugares como México, Colômbia, Honduras, Jamaica, Nicarágua e Turquia, mostra que, nesses países, os auxílios monetários são combinados à freqüência escolar e ao acesso aos serviços de saúde visando a contribuir, de um lado, para romper o ciclo de transmissão intergeracional da pobreza – na medida em que aumentam o capital humano de jovens e crianças – e, por outro lado, amenizar as carências mais imediatas das famílias. As expe- riências também revelam que a transferência de recursos é, em geral, realizada diretamente aos pobres, e a titularidade dos benefícios é preferencialmente con- cedida às mulheres, na perspectiva de reduzir custos administrativos e explorar o pressuposto de que as mulheres tendem a maximizar as estratégias familiares de sobrevivência e de melhoria do bem-estar.

No entanto, existem também diferenças signifi cativas no desenho opera- cional dos programas de transferência condicionada de renda ligadas à natureza e abrangência dos fenômenos da pobreza e da exclusão em cada realidade local. No México e na Colômbia, por exemplo, o valor do benefício monetário cresce à medida que os jovens avançam nos níveis de escolaridade, sendo, portanto, maior no ensino médio que no ensino fundamental. Frente às barreiras sociais e culturais para a elevação do nível educacional, especialmente as vividas pelas mulheres, o programa mexicano chamado Oportunidades inclui, ainda, um incen- tivo fi nanceiro para que as meninas consigam concluir o ciclo escolar. Como res- saltam as autoras Laura Rawlings e Gloria Rubio (2003), os programas de transfe- rência condicionada de renda diferem, ainda, no que se refere à incorporação de incentivos para facilitar o acesso aos serviços de saúde ou o maior envolvimento de professores. Na Nicarágua, para cada criança participando do programa o pro- fessor recebe um bônus com o objetivo de infl uenciar tanto o padrão de acom- panhamento do desempenho escolar como a relação de compromisso entre as escolas e as famílias benefi ciadas. Ainda no que tange às diferenças na estrutura de incentivos vinculada aos programas, recursos humanos e materiais podem ser disponibilizados para a rede pública de saúde, educação, transporte e sanea- mento a fi m de viabilizar a convergência de ações públicas para a população-alvo. A análise pormenorizada dessas iniciativas públicas e, especialmente, das pos- síveis repercussões dos programas de transferência condicionada de renda nos perfi s de pobreza e segurança alimentar será realizada a seguir.

3.2. Programas de transferência condicionada de renda: possíveis re-

percussões nas condições de pobreza e segurança alimentar e nu-