• Nenhum resultado encontrado

percussões nas condições de pobreza e segurança alimentar e nu tricional das famílias

SAN IA LEVE IA MODERADA IA GRAVE

3 As considerações fi nais referentes a este capítulo não incluem o modelo de análise, ainda em fase

4.6 Pobreza, direitos e programas complementares: a percepção dos(as) titulares do Programa

4.6.2. Signifi cados atribuídos ao Programa Bolsa Família

Conforme indicam os grupos focais, a palavra ajuda é a mais utilizada quando se referem ao programa, empregada normalmente com o sentido de complemen- to ao orçamento familiar. O Bolsa Família é visto como uma iniciativa que “ajuda, mas não resolve”, seja porque o recurso é insufi ciente para atender às necessida- des básicas da família ou por uma avaliação de que outras ações governamentais, principalmente no sentido de geração de trabalho e renda, seriam necessárias para reverter a situação de pobreza. Ainda assim, o programa é visto como uma assis- tência necessária e indispensável frente à falta de condições que os(as) responsá- veis pelos domicílios apresentam para garantir uma vida digna a suas famílias.

A maior parte dos(as) participantes dos grupos focais, porém, demonstrou a preferência por garantir a sobrevivência de suas famílias a partir do próprio tra- balho a depender do programa. Para aqueles(as) que se sentem no auge de sua capacidade produtiva, principalmente para os homens, ser benefi ciário chega, até mesmo, a ser algo que traz vergonha. Nesses casos, normalmente, as falas vão responsabilizar o Estado pela falta de oportunidades de trabalho.

Pra mim, não devia existir Bolsa Família, não devia existir Cheque Cida- dão, não devia existir Ticket de negócio de mês. Deveria existir trabalho pra todo mundo trabalhar e ganhar o seu dinheiro honestamente, sem depender de político e nem de ninguém. Meu modo de pensar é esse. Mas, como eles não fazem o país ter desenvolvimento pra ter trabalho pra gente, então, eles têm a obrigação de nos dar. Eu acho assim. Porque, às vezes, a gente se sente humilhado de chegar em certos lugares, as pes- soas olharem pra você porque você está dependendo de certo benefício. Mas ninguém passa o que a gente passa. Pô, mas essa mulher é tão nova pra estar pegando o Cheque Cidadão ou o Bolsa Família, mas ninguém sabe o que a gente passa (Grupo Focal, São João de Meriti – RJ).

Por outro lado, muitas vezes foi atribuído ao programa o sentido de “ajuda divi- na” ou milagre, assumindo um sentido de caridade, como se o governo não tivesse nenhuma responsabilidade pela garantia de direitos básicos da população mais pobre.

Eu acho que é uma ajuda. Porque o governo não tem nada a ver com isso. Ele apenas está fazendo uma caridade. Porque tem muita família pobre, não é só a minha, a dela. Crianças que não têm como se vestir pra ir ao colégio. Eu acho que é uma ajuda imensa que o governo está dando pra gente (Grupo Focal, São João de Meriti – RJ).

As falas nos grupos focais mostram que há desde de pessoas que vêem o programa como uma caridade do governo até aquelas que têm um entendimento que se acerca mais da concepção do programa como um direito que deve ser ga- rantido pelo Estado. Porém, a idéia do direito e da ajuda nem sempre aparecem como conceitos contraditórios.

Nós temos o direito de receber ajuda (Grupo Focal, Dourados – MS).

Nos grupos focais, apareceu, de forma marcante, a noção do programa como um dever do Estado perante cidadãos e cidadãs que vivem em situação de pobreza e exclusão social. Nesses casos, os(as) titulares consideram ter o direito de rece- ber o programa por razões como a incapacidade do Estado de gerar oportunidades de trabalho para todos, por pagarem impostos e como retribuição a seus votos.

Eu vejo pelo direito. Eu acho assim: o governo é rico, acho que ele tem condição, e é um direito do cidadão que tem necessidade de ser ajudado por quem tem bastante. [...] Se eles, né, se ofereceram pra fazer isso, é porque eles têm condição, né? Por isso, eu acho que é um direito (Grupo

Focal, Curitiba – PR).

Acho que é um direito nosso ganhar este dinheiro do governo, não é uma aju- da, é um direito nosso. Porque, muitas vezes, a gente ajuda, contribui daqui, paga imposto de lá, e não ganha nada. E a gente tem que ter nosso direito também, somos humanos e temos nosso direito (Grupo Focal, Soure – PA). A gente ajuda eles também, nesse termo, votando neles, né? Quantos eles não ganham com um voto da gente, né? Quanto eles não ganham? Enquan- to a gente dá os voto pra eles, a gente ganha quanto? Não ganha nada... Eles não foram ajudados? Agora têm que ajudar... Têm que pensar nos po- bres também.

Eles só tão lá em cima por causa da gente. Se não fosse o voto da gente, ele [Lula] era o que é hoje? Não era (Grupo Focal, Catende – PE).

Alguns participantes dos grupos focais demonstraram receio com relação à continuidade do programa, acham que o Bolsa Família pode ser interrompido com uma mudança de governo.

Agora, eu tenho muito medo disso ser cortado, eu peço tanto a Deus nas minhas orações, entrego tanto ele na mão de Deus, que é uma ajuda mui- to grande. Eu vou até adoecer, vou entrar em depressão, minha pressão vai subir, é por que..Sei lá, [...] foi Deus que abriu essa porta, realmente

(Grupo Focal, Catende – PE).

Eu tenho pra mim que se ele (Lula) perder, o outro que entrar vai cortar. Se entrar outro, você pode pedir pra Deus, pode rezar muito viu? [risos]

(Grupo Focal, Recife – PE).

O receio da perda do benefício em função da mudança de governo1 é bas-

tante coerente com a própria trajetória das políticas brasileiras marcadas por descontinuidade, competição, baixa/débil articulação e frágil sustentabilidade. No Brasil, tradicionalmente, as políticas sociais, em sua maioria, foram pauta- das por um formato segmentado e clientelista, que apresenta difi culdades em produzir políticas de Estado garantidoras de direitos e acaba produzindo políticas descontínuas que atendem à população de forma arbitrária, pelas próprias redes de interesses que se formam em torno dos recursos públicos. Portanto, caberia considerar em que medida o governo federal pretende assumir o Bolsa Família como política de Estado e torná-la permanente, desvinculando-o de uma ação as- sociada apenas à atual gestão. Nesse sentido, vale mencionar que, em 2005, foi estabelecida a Lei 10.835, que institui, em etapas, a renda básica de cidadania a partir da priorização dos segmentos mais pobres. Portanto, o Programa Bolsa Fa- mília é parte do processo de concretização progressiva desse direito universal.

Cabe, ainda, pensar em iniciativas que visem a reforçar, tanto na opinião pública quanto entre as próprias famílias benefi ciadas a noção do Bolsa Família como direito, com o intuito de garantir as condições políticas para a continuidade do programa.

Apesar do sentimento de incerteza quanto à continuidade do programa, há exemplos ricos nos relatos dos grupos focais de como a existência de uma fonte estável e regular de renda para as famílias pobres pode signifi car maior possibili- dade de planejamento dos gastos e, conseqüentemente, maior segurança com relação à capacidade de garantir a alimentação da família. A certeza do acesso mensal ao recurso traz a segurança – principalmente para famílias que não con- tam com uma renda regular – de que, ao menos, a base da alimentação, como o arroz e o feijão, estará garantida.

Faça chuva ou faça sol, o dinheiro está lá. Eu pego faz uns cinco anos, nun- ca faltou nem um dia, nem atrasou, nem adiantou. É um dinheiro que eu sempre pude contar no dia certo (Grupo Focal, Campo Grande – MS).

1 Os grupos focais foram realizados entre os meses de junho e agosto de 2006, pouco antes das

A impressão que eu tenho é que vai ser aquele salário todo mês, como se eu estivesse de carteira assinada. Eu acho que é menos uma preocupa- ção. Esse é o certo, como se fosse um salário com carteira assinada. [...] Então, quando vem, você pensa logo: vou garantir o alimento, pelo menos o básico, porque se amanhã o meu marido não chegar com o dinheiro, ele é desempregado, pelo menos o que eu recebi hoje já garante o de ama- nhã. Acho que a maioria do pessoal é isso, eles tentam garantir o básico, pensando que, de repente, outro dinheiro não vai chegar (Grupo Focal, São

João de Meiriti – RJ).

A segurança propiciada pelo aporte regular do recurso assume um papel destacado para as mulheres, principalmente para aquelas que não contam com o apoio de um cônjuge, já que é sobre as mulheres que normalmente recaem os cuidados com a casa e a família e a responsabilidade de garantir diariamente as refeições.2

Eu não tenho marido, sou sozinha e mais Deus com a garotada. Então, eu me sinto mais segura, conto com aquele dinheiro todo mês. Então, eu fi - quei mais segura das minhas coisas, da minha alimentação e da dos meus fi lhos com o Bolsa Família (Grupo Focal, Rio de Janeiro – RJ).

Foi possível perceber, nos grupos focais, situações em que o Programa Bol- sa Família se apresenta como alternativa frente a situações de privação grave e de erosão de direitos básicos. Uma mulher revelou a experiência dramática de perder o marido, vítima de um acidente de trabalho em uma fazenda no Acre, e se deparar, em companhia de seus fi lhos, com uma situação total de impotência frente ao não-cumprimento das leis trabalhistas pelo dono da fazenda, além da ameaça de não poder retornar para seu local de origem. Ainda que o dono da fazenda tenha conseguido burlar seus direitos fazendo-a assinar diversos docu- mentos, os quais ela “não sabia do que tratavam”, o benefício do Bolsa Família garantiu sua saída da fazenda. No Rio de Janeiro, se destaca a fala de uma das participantes do Grupo Focal formado por moradores de favela.

Uns três meses eu me virei só com os R$ 45,00 do Bolsa Família, porque eu e o meu marido, a gente brigava muito e ele me espancava demais. Então, eu decidi me separar e saí de casa com os meus três fi lhos. Para botar comida em casa eu só tinha os R$ 45,00, e foi isso que me deu mais força. O dinheiro do aluguel eu tenho, então, o Bolsa Família vem e eu tenho comida pra botar em casa. Já vai fazer 3 anos que eu tô separada e tá dando (Grupo Focal, Rio de Janeiro – RJ).

Ainda que o programa represente para muitos uma forma de aquisição de direitos, ainda é percebido como um privilégio, já que muitas famílias em situação de pobreza estão fora do programa. Na fase quantitativa da pesquisa, foi possível identifi car o percentual de titulares que relataram conhecer famílias que precisam do Bolsa Família e não o recebem, o que pode ser observado na fi gura abaixo.

60,0 CENTRO-OESTE NORDESTE NORTE SUDESTE SUL TOTAL BRASIL 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% Sim 40,0 Não

Figura 94 – Conhecimento dos(as) titulares sobre famílias que precisam do PBF, fi zeram cadastro e nunca receberam o benefício por grandes regiões

43,2 56,8

51,4 48,6

73,3 26,7

65,7 34,3

53,5 46,5

A incapacidade do programa de atender a todas as famílias que, de acordo com a percepção dos(as) titulares, deveriam estar recebendo, somada à falta de conhecimento quanto aos critérios do programa, acaba reforçando a noção de que uns têm mais direitos do que outros e de que o programa é injusto.

Pra mim, que ganho só R$15,00, não tá adiantando nada, porque se eu fosse esperar este negócio de direito, eu e minha fi lha estava morrendo de fome. Você vê por aí gente na pior do que eu, e que não tá recebendo nada. Se a gente fosse esperar por isso aí, alguns de nós já estava morto de fome (Grupo Focal, Curitiba –PR).

Os(As) titulares sabem que recebem o benefício por serem considerados(as) pobres, mas não conhecem, ao certo, os critérios de elegibilidade que vão deter- minar a inclusão e o valor da transferência. Ocorreram, nos grupos focais, vários questionamentos relativos ao programa, como o fato de uns receberem e outros não, suspensões e mudanças inesperadas no valor do benefício e incompreen- são quanto a variações nos valores que cada um recebe. O baixo nível de conhe- cimento sobre o programa será explorado mais adiante, no capítulo referente ao funcionamento do programa. Ainda assim, vale reconhecer sua infl uência na percepção do Bolsa Família como injusto.