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CAPÍTULO I – SEMILIBERDADE: CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA

1.3 SEMILIBERDADE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO E SUA APLICABILIDADE

Diante das transformações do cenário político após a Segunda Guerra Mundial e em meio à Guerra Fria, houve mudanças no mundo em prol da efetivação dos direitos humanos. Nesse contexto, evidenciou-se a preocupação de organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU)17, em promover a paz e disseminar os princípios liberais de sociedade e democracia.

17 Entre as muitas reformas e projetos para imprimir um caráter transformador à instituição prisão, a ONU, após a Segunda Guerra Mundial, fomentou uma série de discussões que culminaram em orientações desta instituição internacional sobre a formação do sistema penal dos países que optaram pelas novas configurações da democracia com bases internacionais para a organização política, social e especialmente econômica.

A democracia pregada pelos Estados Unidos no período posterior à Guerra Fria saía vitoriosa e, concomitantemente, novos funcionamentos se engendravam para a substituição do controle intermitentes do modelo de sociedade disciplinar aos ininterruptos da sociedade de controle, conforme escreve Passetti (2008) ao discorrer sobre os estudos de Gilles Deleuze de 1968. Para Deleuze (2010, p. 222), “nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço”.

Nessa perspectiva, as atuais configurações da semiliberdade também foram se modificando, ancoradas nos programas defendidos pela ONU, e parecem atrelar-se ao fundamento da sociedade de controle, na qual se estabelecem, a cada instante, estratégias para monitorar o indivíduo e, assim, não necessitar mais dos muros e do poder disciplinador como métodos de controle e dominação, conforme se observa nas análises de Costa (2004) e Passetti (2008) acerca dos estudos de Gilles Deleuze.

Como interpreta Costa (2004, p. 161), abordando Deleuze,

A sociedade de controle seria marcada pela interpenetração dos espaços, por sua suposta ausência de limites definidos (a rede) e pela instauração de um tempo contínuo no qual os indivíduos nunca conseguiriam terminar coisa nenhuma, pois estariam sempre enredados numa espécie de formação permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo aberto. O que haveria aqui, segundo Deleuze, seria uma espécie de modulação constante e universal que atravessaria e regularia as malhas do tecido social.

Ou seja, a vigilância por meio do monitoramento continua sendo, tal como na sociedade disciplinar, “um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna do aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar” (FOUCAULT, 2012f, p. 169), agora, porém, podendo interpenetrar nos novos fluxos de relações dinâmicas das novas organizações das sociedades que visam a ter um modelo único de cidadão no globo terrestre.

Com as tecnologias de controle se expandindo e se fortalecendo, em seus novos formatos a semiliberdade tornava-se factível e condizente com as inovadoras maneiras de ser na sociedade de controle, com seus princípios democráticos e humanitários da declaração dos direitos humanos universais. Na área penal, os primeiros documentos publicados para a modernização das diretrizes penais partiram do Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção ao Crime

e Tratamento dos Infratores, realizado entre agosto e setembro de 1955 e cujo relatório foi publicado em 1956, época de transição entre o período de guerras no início do século XX e das revoluções comportamentais e tecnológicas da metade para o final deste século (SILVEIRA, 1981; MUAKAD, 1990).

Os documentos iniciados nesse primeiro encontro e os dos demais geraram as primeiras normativas internacionais sobre as quais os países signatários devem basear sua política associa- da ao sistema prisional, seja pelo viés da segurança e/ou do desenvolvimento social. Entre as prerrogativas dessas normativas, consta a garantia de direitos humanos dentro do sistema penal, como o direito à dignidade, à alimentação, à educação, ao trabalho, à profissionalização e à saú- de. Na área penal dos adultos, surgiram leis ligadas às execuções penais e, posteriormente, à área da infância e juventude, que continuaram afirmando a crença na concretização das máximas de uma apreciável penitenciária ao mesmo tempo em que promovem a diminuição das desigualda- des por meio da garantia de direitos.

Vários países como o Brasil assumiram o compromisso de seguir tais orientações como estratégia para inserção na política econômica mundial. Apesar de, em tese, vários países seguirem a mesma lógica, a realidade de cada continente e país envolvidos é diferente e, com isso, os contornos da questão penal se apresentam, cada um a seu modo, envoltos num contexto social, político e econômico específico.

Na Europa, para fomentar essa nova forma de encarceramento, foi criada a Confederação Europeia de Reinserção Social (CEP), com a finalidade de estimular o aumento da execução de medidas em meio aberto e semiaberto, como a liberdade condicional, segundo informações do site oficial da confederação de 2014 (EUROPE, 2014). Esta federação visa profissionalizar o trabalho na área para torná-lo mais eficaz e, com isso, mais aplicado. Tais experiências são fruto de um movimento histórico dos embates conceituais que alicerçam a atuação no sistema penal. Inicialmente, prevaleciam os conceitos da Escola Clássica do Direito, apoiada no ideário iluminista, a qual defendia a prisão como tratamento, considerando a ideia de um indivíduo infrator racional e capaz de, por meios adequados, ser corrigido. Posteriormente, devido às dificuldades de atingir tais objetivos dentro de prisões como a da Filadelfia e a de Auburn, surgiu a Escola Humanista de Lombroso, a qual buscava a regeneração do detento, que seria doente e precisaria ser tratado, também não se apresentando eficiente na sua tarefa de diminuir a reincidência, que crescia com o aumento populacional e o processo de urbanização e

industrialização. Então, surgiu a Escola da Nova Criminologia, a qual buscou conciliar as ideias das duas escolas anteriores, focando no controle social do delito e voltando-se não apenas ao indivíduo, mas também para as esferas da comunidade de modo a criar uma rede de fiscalização, intervenção, controle e domínio, conforme exposto na dissertação de mestrado de Santos (2011) sobre a política prisional em Portugal na contemporaneidade.

Com este viés das discussões da Nova Criminologia, seguiram os debates internacionais, enaltecendo a educação prisional como um meio para minimizar a reincidência, diminuir a criminalidade e prevenir o delito. Ou seja, para controlar a transgressão eram necessárias novas estruturas e o modelo de prisão aberta era um caminho. Com o discurso educativo e a defesa dos direitos humanos, visando a apaziguar os conflitos dentro do sistema prisional e, ao mesmo tempo, criar uma teia de monitoramento e controle, a Organização das Nações para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) também defende as orientações da ONU sobre o bom funcionamento do sistema penal, com a garantia dos direitos humanos. Tais direcionamentos foram seguidos pelo ECA (BRASIL, 1990), na época em que o Brasil retomava as ideias democráticas, após longo período de ditadura, e contribuíram para a formação da rede de proteção e das várias instituições necessárias a esta formação: conselhos tutelares, órgãos de execução de medidas socioeducativas, conselhos de direitos etc.

As propostas dos documentos internacionais sobre regras de prevenção e tratamento dos presos e o ECA preconizam a adoção de ações que favoreçam a ligação do condenado com a comunidade e, com isso, com os fluxos de controle da nova sociedade. Assim, a partir de uma rede de proteção, garante-se a prevenção, o apoio e o domínio social.

No cenário internacional, o foco das discussões em torno do direito penal e das escolas tradicionais está na autonomia do indivíduo, que é capaz de se organizar para passar pelas fases do sistema penal, como a semiliberdade ou a liberdade condicional, apoiado pelos agentes de liberdade condicional, como apontado pela CEP na Europa. Ilustra tal perspectiva o filme Atmen (2011)18, o qual narra a história de um jovem condenado que, mesmo dentro do sistema prisional em regime fechado, pode na fase de teste antes de sua audiência, como transição para a liberdade, sair para trabalhar, auxiliado pelo seu agente de liberdade condicional. O filme também demonstra a responsabilidade atribuída ao indivíduo em vistas ao seu processo, pois, além do

18 Atmen, ou seja, Respirar, é um filme austríaco lançado em 2011 pelo diretor Karl Markovics. Relata a experiência

de um jovem de 18 anos preso em um centro de detenção juvenil, tendo conseguido receber, após cumprir parte da pena, o benefício da liberdade condicional nos moldes da ideia de semiliberdade.

compromisso de acordar, organizar seus horários, fazer suas atividades, cabia ao jovem, conforme suas rotinas, avisar os guardas penitenciários para os procedimentos de revistas corporais minuciosas e abertura de portas e trancas.

No Brasil, os novos modelos de semiliberdade também surgiram dentro dos formatos e discussões europeus, bem como das orientações internacionais, estando tal modelo formalmente associado à proposta penal designada aos adultos, como sistema jurídico, e sendo denominado de regime semiaberto. Ele começou a ser delineado formalmente junto ao sistema adulto na Constituição de 1824, ainda no período do Império, com a determinação de as instituições carcerárias adaptarem-se a ofertar trabalho aos presos. Com o Código Penal de 1890, período em que o Brasil já passava para uma nova reestruturação política saindo do Império para a República, instituiu-se a progressão do regime fechado para o regime semiaberto em presídios agrícolas.

Nesse processo de construção e desenvolvimento da semiliberdade no Brasil, aos poucos foram sendo incorporadas as novas discussões do moderno tratamento penal, apresentadas nas diversas edições do Colóquio Internacional da Fundação Internacional Penal e Penitenciária, no qual se analisavam as novas práticas e métodos de restrição de liberdade. Em 1965, foi incorporada na legislação jurídica do Estado de São Paulo a possibilidade de implementação da semiliberdade por meio da modalidade de prisão albergue, como cita Alípio Silveira (1981). Contudo, só com a Lei de Execução Penal (LEP) de 1984, momento em que o cenário já possibilitava essa nova configuração, dentro do processo de reordenamento da política brasileira em torno da busca pela democracia, é que foram reconhecidos os direitos humanos dos presos, tornando-se proibida a violência por parte de funcionários, e postulou-se como principal objetivo a ressocialização dos detentos, garantindo a assistência educacional, o ensino profissionalizante, a assistência médica, jurídica, social, religiosa e material, bem como o trabalho remunerado do presidiário, conforme mencionam os estudos de Maia et al. (2009) sobre a história das prisões no Brasil.

Na área da infância, a ONU discutia os direitos das crianças e a maioridade penal, referendando em 1989 o documento sobre o direito das crianças. No Brasil, já havia pessoas envolvidas com tais discussões, criando um movimento que originou o ECA (BRASIL, 1990), um norteador para a nova concepção de sociedade e sua forma de organização burguesa. Na França, modelo para o Brasil em semiliberdade juvenil, os adolescentes entre 13 e 15 anos gozam

de uma presunção relativa à não responsabilidade penal, tendo a pena fixada obrigatoriamente diminuída. No caso dos adolescentes entre 16 e 18 anos, a diminuição fica a critério do juiz, conforme dados apresentados pelo Ministério Público do Paraná em 2011. Este país também prevê um sistema de semiaberto juvenil, com várias medidas de restrição de liberdade passíveis de revisão judicial, como o modelo de residência, o centro educacional fechado ou a detenção. O primeiro consiste numa prisão domiciliar com monitoramento eletrônico; o segundo, uma alternativa ao encarceramento caso o adolescente venha a cumprir as obrigações a que está sujeito, por um período de seis meses com três fases, renovável uma vez, com o objetivo de construir um plano educacional adequado àquela pessoa e com a tarefa de manter laços com a família; e, por fim, o terceiro modelo é aplicado quando o juiz decide pela guarda do adolescente, conforme divulgado em notícia no site oficial no Ministério da Justiça francês, em 2013.

No Brasil, o desenvolvimento específico de semiliberdade para adolescentes, formalmente descrita, em legislação conecta-se com a história das políticas públicas voltadas à infância e juventude, instituída como estratégia de intervenção específica já no Código de Menores de 1979, preservada posteriormente pelo ECA e atualmente pelo SINASE, de 2012; contudo, com concepções e possibilidades diferentes de execução. No Código de Menores, o sistema se associava à semiliberdade, como um regime prisional progressivo, em que o adolescente antes deveria passa pela privação total da liberdade e se merecesse conquistaria a progressão para o regime de semiliberdade. O ECA (BRASIL, 1990), apesar da mudança no entendimento do adolescente como sujeito de direito, e não mais objeto de intervenção, fez poucas alterações sobre o que seria ou como deveria ser a semiliberdade, dando a esta o atributo de medida e a possibilidade de ser aplicável sem o adolescente passar necessariamente pela internação. O SINASE (BRASIL, 2006, 2012b), ainda faz pouco aprofundamento, mas referenda o modelo sinalizado no Código de Menores de 1970 de “casa de semiliberdade”, como novo formato de responsabilização de adolescente, semelhante à ideia apresentada por Silveira (1981) sobre prisão aberta. Nestes últimos documentos legislativos, também é enfatizada a necessidade de preservar os direitos a saúde, educação, alimentação, profissionalização, assim como os pressupostos da LEP, isto é, um sistema penal juvenil, apesar de defesas contrárias.

Mesmo com a alusão de ser uma forma de evitar o confinamento desnecessário do adolescente ou dos adultos, ou de ter sido implantada com sucessos no Estado de São Paulo, como aponta Silveira (1981), e de ser bastante difundida pelos órgãos internacionais, a aplicação

da semiliberdade ainda é restrita, prevalecendo a privação de liberdade em estabelecimentos de reclusão total. Os entraves de sua expansão podem estar alicerçados na dificuldade de abrir mão da lógica do vigiar e punir para monitorar e controlar como forma de tratamento, e não de pura expiação, haja vista nem sempre este modelo afastar o que é designado pelas leis sociais e jurídicas de perigo iminente. A possibilidade de evasão é eminente, o controle se dá por meio da palavra e a normatização de um modelo disciplinar rígido nem sempre é suportada pelos internos, mas justificada pela literatura em virtude da conduta dos condenados, hábeis transgressores.

A análise permite compreender que a valorização desse novo formato de semiliberdade é funcional para a sociedade de controle. Questiona-se, desse modo, se seus objetivos são realmente a inserção do indivíduo ou, como já dito, o controle social independente da regeneração, que se torna um discurso para se continuar com a defesa do encarceramento, mas, agora, a céu aberto, conforme salienta Passetti (2011). Trata-se de uma inserção que perpassa várias faces das ações políticas ao longo da história das ações públicas, como é o caso brasileiro, que tenta reproduzir as ideias modernas e organizar sua estrutura em prol do destaque internacional, das novas modalidades de interações democráticas nas esferas políticas, econômicas e sociais. Tais interações estão alicerçadas na construção de política pública, dentre elas a de Socioeducação interligada às ações da assistência, incluindo as destinadas à infância.