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CAPÍTULO I – SEMILIBERDADE: CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA

1.2 SEMILIBERDADE: UMA PROPOSTA MODERNA DE PRISÃO

A atual estrutura da semiliberdade tornou-se possível a partir da compreensão da prisão como um instrumento capaz de ir além da simples privação de liberdade, ou seja, capaz de não apenas vigiar e punir, mas sim monitorar e controlar, fazendo analogia ao que diz Passetti (2008) no texto sobre política e resistências na sociedade de controle. Como já apontava Foucault (2012f, p. 230), a prisão “tende a se tornar um instrumento de modulação da pena: um aparelho que, através da execução da sentença de que está encarregado, teria o direito de retomar, pelo menos em parte, seu princípio”. Assim, iniciada por via das liberações condicionais e das semiliberdades como etapas do sistema progressivo, a modulação da pena é associada, desde

muito cedo, à atividade dos administradores das penitenciárias como um princípio indispensável para o bom funcionamento destas instituições, principalmente em sua tarefa transformadora.

A modulação é substancial ao coerente desempenho dos fundamentos da pena, instrumento regulador do comportamento humano. Tal formato de regulação presente está no sistema prisional que faz refletir e indagar sobre seus princípios e a sua capacidade ou não de punir e educar ao mesmo tempo. Tal ambiguidade é debatida ao longo da história das prisões, como enfatiza Michel Foucault quando alerta que

[...] ao querer ser corretiva, ela perde sua força de punição, que a verdadeira técnica penitenciária é o rigor, e que a prisão é um duplo erro econômico: diretamente pelo custo intrínseco de sua organização e indiretamente pelo custo da delinquência que ela não reprime (FOUCAULT, 2012f, p. 254-255).

Como já descrevia Foucault há 40 anos na obra Vigiar e punir: nascimento da prisão, apesar da existência dessa crítica, as respostas sempre se concentraram na reorganização dos princípios da boa condição penitenciária. A narrativa histórica das instituições prisionais indica para o reordenamento das estratégias conforme ocorrem as mudanças históricas, sociais, econômicas e culturais. Entretanto, a base da proposta não muda substancialmente, talvez devido à base conceitual da sociedade atual, em que pese os princípios de liberdade, igualdade, individualidade e cientificidade. Assim, a lógica de funcionamento das prisões foi sendo impressa em consonância com a política instalada dentro do processo de organização dos Estados Nacionais em discussão e construção na Europa na época do surgimento dessas instituições, e influenciada pelos ideais iluministas posteriores à Revolução Francesa e aprimorada após a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria.

As novas configurações da sociedade, que conforme Foucault (2012f) acoplam na dinâmica da sociedade disciplinar15 a da sociedade de controle16, destacada inicialmente por Deleuze (2010) no texto “Controle e o devir”, exigiram readequações da proposta prisional. Pensa-se que as propostas inicialmente construídas e concretizadas e seus avanços com o sistema progressivo não eram suficientes para a manutenção do sistema capitalista, democrático e liberal

15 Sociedade disciplinar, compreendida como a sociedade que visa à institucionalização por via do enclausuramento e

da docilização dos corpos, que devem ser disciplinados por vários espaços sociais, como a escola, as fábricas, as prisões, os hospícios etc. (FOUCAULT, 2012f).

16 Sociedade de controle, nesta o poder é exercido por uma rede contínua de vigilância que exerce o controle de um

sobre o outro pelas relações pessoais e espaciais. E os dispositivos disciplinares se intensificam e se estendem para fora das instituições, por meio de um sistema de redes que abarca todo o corpo social (Deleuze, 2010).

com as mudanças históricas ao longo das duas guerras mundiais, não davam conta da realidade que se apresentava e se constituía. Tais aspectos são destacados nas discussões feitas por Passetti (2008) e por Augusto (2013), que discutem as penalizações e o controle contra adolescente autor de ato infracional.

Apesar dos fracassos ocorridos ao longo da história em se aplicar a função transformadora das prisões, as normas continuaram baseadas nas sete máximas da boa condição penitenciária, a saber, no princípio da correção, da classificação, da modulação das penas, do trabalho como obrigação e direito, da educação penitenciária, do controle técnico da detenção e das instituições anexas destinadas aos egressos.

Com base no estudo foucaultiano, o primeiro princípio, ou seja, o da correção, alicerça-se na transformação do comportamento do preso a partir de sua busca pela liberdade. A correção só é possível com a modulação das penas associadas ao seu tempo de duração, uma vez que se o prazo fosse curto demais não seria suficiente para corrigir e imprimir a ideia do trabalho; por outro lado, se fosse eterno a conduta do preso seria indiferente à correção, promovendo evasões, fugas e conflitos.

O princípio da classificação associa-se à questão da segurança e do afastamento do potencial de aprendizado da criminalidade. Assim, prevê o uso de técnicas corretivas para isolar e repartir os indivíduos de acordo com a pena e a idade. Tal princípio, em tese, visa a preservar as singularidades individuais e, com base em uma lógica da moralidade cristã, pressupõe um julgamento que diferencie crimes realizados pelas circunstâncias dos intencionais ou, mesmo, considere se quem o praticou foi educado ou não para responder adequadamente.

Já o terceiro princípio, a modulação das penas, almeja estimular no preso a mudança de comportamento e adesão da proposta corretiva do sistema para obter recompensa ligada à diminuição de sua pena até a obtenção da liberdade total, conforme os resultados de cada um. Nesse princípio, encontra-se a formulação dos sistemas progressivos originários das ideias de liberdade condicional e semiliberdade, pois o objetivo é modificar o “mal” e, à medida que isso ocorre, não há mais sentido de se manter o criminoso na prisão.

O princípio do trabalho como obrigação e como direito fundamenta-se no caráter antes intitulado regenerativo, e hoje ressocializador, tendo no trabalho penal uma ferramenta terapêutica para o desenvolvimento da moralidade em consonância com as regras sociais. Por outro lado, o trabalho surge como uma forma de castigo, uma vez que os trabalhos inicialmente

eram forçados e se davam em uma condição do encarceramento, só que em “uma prisão ao ar livre” (FOUCAULT, 2012f, p. 111).

Acerca do princípio da educação, o autor pontua que este visa a oportunizar condições de aprendizagem escolar e profissional aos detentos, tanto com caráter pedagógico como de recompensas, pautando-se em exercícios repetitivos e, ao mesmo tempo, diferentes, o que possibilita a disciplinarização dos corpos e a diferenciação entre os indivíduos conforme sua qualificação. Baseados também na busca pela perfeição, os exercícios cada vez mais complexos seriam capazes de marcar a aquisição do saber e o bom comportamento.

Ainda de acordo com Foucault (2012f), o princípio do controle técnico da detenção alicerça-se na avaliação de pessoas especializadas para a obtenção das progressões dos sistemas, incluindo a liberdade final, com uso de técnicas e moralidade próprias para fazer tais julgamentos. A partir desse princípio, os especialistas aparecem como ferramentas chaves do processo, como os que têm a técnica e a capacidade de realizar a avaliação dos aspectos inerentes à moralidade, à evolução educativa e ao efeito do trabalho nas individualidades singulares.

E, por fim, acerca do princípio das instituições anexas, o autor menciona que este se apoia no suporte e vigilância do detento após a saída do sistema como forma de garantir a mudança até então apresentada dentro do sistema. Trata-se de um princípio pautado na organização de instituições de acompanhamento do egresso no processo de readaptação à vida em liberdade.

A proposta de semiliberdade não só não fugiu a estas máximas como se tornou possível a partir delas. Com a ideia de quantificação das penas e possibilidade de graduá-las caso a caso, como mecanismos viabilizadores do ideal corretivo, o detento era motivado a aderir às propostas do sistema prisional e passar por suas fases, dentre elas a semiliberdade, inicialmente como forma de reconhecimento de seu esforço pessoal e responsável. Diante desses apontamentos, analisa-se que a semiliberdade aparece como uma fase do sistema prisional, parte constituinte da boa condição penitenciária. Por outro lado, de acordo com as discussões de Muakad (1990) e Leal (1998), ao longo de sua evolução, a semiliberdade irá se inovar e lançar vários outros formatos ao longo de sua evolução, sem abandonar os princípios fundamentais da boa penitenciária e intensificando as exigências de respostas por parte do indivíduo frente à tarefa de moldar seu “mau” comportamento.

As leituras também permitem aferir que o modelo prisional de semiliberdade na atualidade ainda segue em termos gerais a mesma lógica proposta no projeto de liberdade

condicional, cujo idealizador, Bonneville, em 1986, define como sendo uma estratégia a ser utilizada pela administração penitenciária para reconhecer as evoluções do condenado mediante certos critérios e um suficiente período de reclusão, que possibilite ao indivíduo sair em liberdade provisória com vistas a sua reintegração (BONNEVILLE, 1986 apud FOUCAULT, 2012f).

O modelo do regime de semiliberdade manteve a expiação, punindo com o retorno ao confinamento quem não seguisse suas regras e visando com a educação e o trabalho manter os corpos disciplinados a ponto de corrigir os comportamentos não favoráveis à vida numa sociedade igualitária e pacífica, pois se o homem não é bom nem mal, a questão era ofertar condições para que aquele pudesse expressar apenas o bem.

A concepção do modelo de semiliberdade, como parte do sistema de privação de liberdade, também continuou se baseando na arte de punir o comportamento por meio do método disciplinar e acopla a compreensão moderna da sociedade de controle com métodos de monitoramento e controle. A evolução do formato para sua execução mudou, mas tornou-se uma expressão de novo que não é nada mais que o velho reformado. Atualmente, defende-se o trabalho em pequenos grupos, que devem ser hierarquizados e organizados a partir de modelos referenciais, como na colônia de Mettray, em 1840. Na área juvenil, no Brasil, o que se diferencia no trabalho em semiliberdade do modelo de Mettray, por exemplo, é que a estrutura não é mais de colônias penais, e sim de casas de modelos residenciais, com pequenos grupos conectados à vida comunitária daquele indivíduo, a ideia não é o isolamento da sociedade e sim sua conexão direta com esta, um controle por meio da vigilância na rede, na comunidade, na família, na escola, na saúde.

No que se refere à área da infância e juventude, um dos aspectos relevantes desse movimento histórico da construção da semiliberdade é que a convicção do princípio da correção e o caráter transformador da pena fizeram olhar para os mais jovens como potencialmente capazes de beneficiar o sistema. A colônia de Mettray, por exemplo, é citada por Foucault (2012f) como um modelo prisional que usava todas as ferramentas disciplinadoras em sua proposta como forma de poder e, na época, era aplicado a pessoas na faixa etária que hoje se designa como crianças e adolescentes. A partir desses dados históricos, pode-se aferir que a semiliberdade nasce junto com ações políticas pensadas na época para o público infanto-juvenil, capaz de ser transformado, regenerado, socializado, moldado com mais facilidade, devido ser uma pessoa em fase de desenvolvimento. Na época, a escolha desse público para tal

empreendimento não era neutra, como até hoje tampouco é. Os mais jovens, dada a sua condição física e intelectual, tornam-se indivíduos em potencial para a transformação e fixação de novos modelos: um instrumento de subjetivação e construção de novos paradigmas de uma nova interpretação e condução da ideia de sociedade.

De igual forma, a possibilidade de reordenamento do modelo de semiliberdade na concepção moderna da sociedade de controle se apresentou na Inglaterra, em 1902, com experiência na área da juventude. Criava-se uma instituição sem grades, nem muros, para abrigar jovens de 16 a 21 anos, com atividades de instrução moral e profissional: era, pois, o chamado sistema Borstal, oficialmente instituído em 1930 (MUAKAD, 1990). Tal modelo foi se adequando e constituindo o que hoje é denominado prisão albergue, um modelo de prisão aberta, que se assemelha pelo formato, concepção e estrutura com a matriz de semiliberdade das medidas socioeducativas aplicáveis aos adolescentes brasileiros, conforme orientações do SINASE (BRASIL, 2012b). Dentro do rol de várias configurações do sistema de semiliberdade, aparecem as chamadas prisões abertas, intituladas em suas variantes como work release ou work furlough (licença para trabalho, mas vivendo em uma residência provisória estatal ou federal), hostels de semiliberdade (prisão albergue, podendo ser executada tanto dentro de uma residência provisória como a partir de um estabelecimento penal fechado), prisão albergue, parole ou probation (liberdade condicional com a supervisão de agentes de condicional), prisão noturna (o indivíduo retorna ao estabelecimento prisional fechado à noite), confinamento de final de semana (o indivíduo é recluso somente aos fins de semana) e prisão domiciliar.

Conforme Comissão Penitenciária de Benelux, a definição de semiliberdade foi descrita “[...] como modalidade do regime penitenciário que consiste em autorizar o recluso a sair do estabelecimento, segundo determinadas condições, durante certas horas do dia, para trabalhar ou para dedicar-se a atividades suscetíveis de favorecer sua reabilitação social [...]” (SILVEIRA, 1971, p. 13). Assim, as formas de execução e aplicação da semiliberdade podem ser as mais variadas possíveis, como exposto acima, cada qual estando disposta em um formato, mas dentro da lógica descrita, conforme conceito definido em Benelux.

Apesar de as novas roupagens terem sido agrupadas ao longo da formulação do modelo da semiliberdade, as leituras e reflexões apontam para a manutenção das ideias concretizadas em Mettray, as quais almejavam manter a privação de liberdade sem muros, sem ferrolhos, mas conforme os modelos referenciais, visando à adequação do indivíduo através do rigor disciplinar.

Somente aquele capaz de resistir à rígida normatização pode ser inserido neste modelo prisional de semiliberdade, como expressam Silveira (1981) e Muakad (1990).

Entre os tipos de prisão semiaberta e aberta, e para fins desta pesquisa, destaca-se a prisão albergue, por ser o modelo que se assemelha ao utilizado para executar as semiliberdades na área infanto-juvenil no campo a ser pesquisado – com um diferencial na área infanto-juvenil no Brasil, que não é considerada pena e sim medida, podendo ser aplicada como primeira opção, sem necessariamente passar pelo regime fechado. O modelo de semiliberdade como prisão albergue – assim intitulada pelo direito penal – é ainda hoje também muito difundido nessa área como alternativa ao meio de reclusão total, por preservar a relação do condenado com o ambiente social e familiar, possibilitando-lhe trabalhar como um cidadão comum e desenvolver o senso de responsabilidade. Para Muakad (1990) e Silveira (1981), tal modalidade permite diminuir as superlotações dos presídios e penitenciárias, combate a ociosidade e é economicamente menos onerosa, além de em tese focar na ideia de tratamento, desviando o foco da expiação.

No Brasil, a modalidade prisão albergue foi defendida por Silveira (1981) e captada pelas legislações brasileiras, seja na área da infância e juventude, seja para o modelo que atende aos adultos. A semiliberdade é considerada um direito do condenado com condições de se beneficiar dessa modalidade, tendo por base conceitual o estabelecimento de uma relação de confiança e a capacidade de o condenado cumprir o regime disciplinar focando em responsabilidade pessoal.

Nessa modalidade, o modelo de execução da semiliberdade necessita do consentimento da disciplina, do monitoramento e do controle da reprodução de todas as variáveis do ambiente social, regulados por trabalho, intelectualidade e moralidade, conforme aponta Muakad (1990). Tal modelo só pode ser implementado dentro das formas de organização social calcadas no controle, sendo necessário o desenvolvimento e a ampliação das práticas de controle a céu aberto, com o consentimento de quem é controlado, de modo que se passe da lógica do vigiar e punir para a lógica do monitorar e controlar, sem, no entanto, abandonar a primeira por inteiro, como apontam Passetti (2008) e Augusto (2013). Ou seja, a semiliberdade se modernizou, adotando um novo formato para a preservação da lógica prisional baseada na razão e humanização da pena.

Diante da análise da prevalência dos princípios e da lógica de funcionamento do sistema prisional, incluindo a semiliberdade, apesar das inúmeras reformas, questiona-se em que o sistema se alterou e como poderia ter se tornado capaz de atingir seu duplo objetivo. A análise do funcionamento da semiliberdade com vistas a atingir tanto o objetivo de punir quanto o de educar

é parte da investigação desta pesquisa. Tal análise está pautada no que depreende Foucault (2012f), segundo o qual a indagação a ser feita não é por que o sistema se mantém fracassando, e sim a que serve seu fracasso. Para Michel Foucault,

[...] sem dúvida, os castigos, não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distingui-las, distribuí-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não “reprimiria” pura e simplesmente as ilegalidades; ela as “diferenciaria”, faria sua “economia” geral. E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de aplicá-la servem aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação (FOUCAULT, 2012f, p. 258).

Dentro da nova lógica da sociedade de controle, a semiliberdade e suas atualizações se fortalecem e se propagam, num processo que se intercala com os mecanismos da sociedade disciplinar. As práticas contemporâneas não suspendem o regime fechado de reclusão, mas, aos poucos, reivindicam a ampliação das penas alternativas na área do adulto ou seu correlato, e, na adolescência brasileira, reivindicam a ampliação das medidas socioeducativas semiabertas e abertas. Trata-se, pois, de um formato que propaga uma nova lógica de funcionamento, concretizável na sociedade de controle. Assim, na contemporaneidade, os países buscam aplicar as execuções das penas alternativas, dentre elas a semiliberdade como uma prisão aberta.