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3 UM TEMA A SER EXPLORADO: DISCURSO, SUJEITO E

3.7 OS SENTIDOS SOBRE ESCOLA NOS DOCUMENTOS

Em 2006, a Secretaria Municipal de Educação de Curitiba lança um material intitulado “Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal de Curitiba”, que tem por objetivo “nortear a prática pedagógica em nossos Centros Municipais de Educação Infantil e Escolas” (CURITIBA, 2006, p. 2). Tendo o documento tal objetivo, julguei interessante fazer uma leitura dele.

As políticas públicas de uma cidade podem oferecer pistas importantes a respeito de como se estrutura o discurso acerca dos diversos temas relacionados à Educação e, de forma mais interessante para esta pesquisa, temas relacionados à linguagem escrita. Estes documentos merecem atenção não só pelo seu caráter “orientativo”, mas também pelas condições de produção nas quais se apresenta: redigido em nome de uma instituição e a partir de um lugar hierarquicamente superior, na esfera do funcionalismo público, aos professores. Produzir leituras e interpretações a partir dos vários discursos acerca do tema de pesquisa faz parte da construção do conjunto de informações que vão ajudar a compor e sustentar a análise dos dados.

O volume três do documento trata do Ensino Fundamental. O mesmo, disponibilizado no site da Secretaria Municipal de Educação de Curitiba, entende a educação como

o processo de formação continuada dos cidadãos, a partir de saberes historicamente situados e de práticas educacionais pautadas na cooperação, na colaboração, no respeito mútuo, no respeito à diversidade étnico-racial e cultural, na inclusão irrestrita, nos valores éticos e na preservação da vida (CURITIBA, 2006, não paginado).

O cidadão que passa por tal processo de formação seria capaz de alcançar o autoconhecimento e, como consequência, “conviver democraticamente”, com “consciência dos seus direitos e deveres”, fazendo “uso racional dos recursos naturais”, contribuindo para o “desenvolvimento sustentável” (Curitiba, 2006). Entendo, portanto, que o documento trata da educação enquanto algo que ultrapassa os conteúdos acadêmicos e atinge as pessoas de forma a afetar suas relações com os outros e com a natureza. O contrário de tudo isso seria o sujeito que está à margem da sociedade: aqueles que não exercem seus direitos e deveres, que não participam da inclusão irrestrita e nem possuem recursos para fazer ou não o uso racional dos mesmos. A escola funcionaria, portanto, como mecanismo que alça o sujeito a um lugar desejado, uniformizando os sujeitos, ou pelo menos, uniformizando suas condutas. Os trechos destacados entre aspas remetem a uma discussão já promovida, através de Gnerre

(1998), a respeito do papel da escola e da alfabetização: formar sujeitos alfabetizados significa modernizá-los de modo a torná-los facilitadores dos processos de perpetuação da lógica capitalista e de modo a torná-los conscientes de suas responsabilidades. Temos ainda que “contribuir para o desenvolvimento” evoca os sentidos do trabalho, da produção. Neste sentido, interpreta-se que a Escola teria um papel na formação de sujeitos inseridos no mundo social do trabalho, exercendo sua função elementar que, de acordo com Althusser, é a de Aparelho Ideológico de Estado.

Na sequência, o documento sinaliza que a educação não ocorre apenas dentro da escola, mas em todos os contextos sociais. A escolarização por si só não seria capaz de resolver todos os “problemas sociais”. Não há especificação do que sejam tais problemas, mas há um indicativo de como eles podem ser sanados: através do acesso ao conhecimento e à tecnologia (Curitiba, 2006).

A escola seria uma instância social, dentre outras não citadas no texto, responsável por proporcionar o acesso ao conhecimento e, através dele, desenvolver habilidades necessárias às ações individuais e coletivas. Para alcançar uma educação de qualidade, segundo o documento, é necessário que haja “esforço da comunidade, dos educadores e dos governantes”. Não se diz em que medida a comunidade, os educadores e os governantes podem se esforçar para que a educação seja de qualidade. No imaginário do leitor, parece fácil preencher esta lacuna atribuindo sentidos já estabilizados quando se trata dos educadores e dos governantes (educadores que exercem sua profissão com empenho, governantes que invistam em políticas educacionais), porém o papel da comunidade pode se tratar de um aspecto mais difuso, ficando submetido à afirmação anterior de que todas as esferas sociais são responsáveis pela educação, e não somente a escola.

O documento enfatiza que “o domínio da língua portuguesa, falada e escrita” é fator condicionante para a “sobrevivência digna dos cidadãos em uma sociedade letrada e informatizada” (CURITIBA, 2006, p. 197, grifo meu). A palavra “domínio” merece uma reflexão. Citar o domínio da língua portuguesa falada abre para a possibilidade interpretativa de que não é o domínio de qualquer língua portuguesa falada que garantirá a sobrevivência digna, afinal a interpretação de que algum brasileiro não fale português é menos provável. Neste sentido, a língua falada a ser “dominada” é outra, diferente desta que todos falam. Acredito que a possibilidade interpretativa é a de que o documento esteja se referindo à norma padrão, o gramatiquês. Uma hipótese é a de que este tipo de construção permanece nos

discursos atuais por herança do papel que a escola desempenhou na instituição da língua nacional e a difusão desta língua no Brasil colônia. A escola era o lugar em que a língua nacional oral deveria ser aprendida. Trata-se daquilo que permanece latente na memória e mantém vivos certos dizeres (SILVA, 2015). Temos ainda que o verbo “dominar” remete a algo que se possa apreender e manter, algo que não escapará e não sofrerá alteração de seu estado. Dominar a língua, falada ou escrita, só seria possível a partir de um referencial de língua enquanto algo estanque. O “domínio” desta língua garantiria a “sobrevivência digna” dos cidadãos. A materialidade linguística deste trecho, e dos que foram destacados até aqui, faz intervir uma memória, um já dito anterior a esta formulação discursiva. Ao ler sobre a história da alfabetização do Brasil, na obra de Mariza Vieira da Silva (2015), vemos que este tipo de formulação a respeito da alfabetização e suas implicações na vida dos sujeitos está presente já em outra temporalidade histórica e emerge, ainda, na memória coletiva e individual, logo, constitui-se como domínio de memória discursiva. Esta outra temporalidade é o Brasil colonial, época em que a alfabetização e a escola tinham objetivos bem definidos, a saber: formar um novo homem à imagem e semelhança do europeu e, assim, formar uma sociedade digna e exemplar.

Nesse processo, “olham”, “registram”, “divulgam”, “pedagogizam” uma determinada realidade e “instituem”, imaginariamente, pelo saber, uma identidade e uma unidade para uma língua e para um povo, onde o ler e o escrever estão associados definitivamente, em nossa memória discursiva, a deixar de ser índio, a deixar de ser irracional, a deixar a barbárie... a ser civilizado (SILVA, 2015, p. 256).

A alfabetização e a escolarização tinham, portanto, finalidades sociais e políticas. O saber ler e escrever sempre esteve presente em nossa história como algo necessário à vida digna. Hoje, o sentido da alfabetização se atualiza e retorna como instrumento de formação e manutenção de uma sociedade “desejável”.

Há, no documento da Secretaria Municipal de Educação, a diferenciação, baseada em Magda Soares (1995), entre o alfabetismo individual e o social. O alfabetismo individual pressupõe um sujeito que possui habilidades de leitura e escrita, e o alfabetismo social pressupõe um sujeito que consegue aplicar essas habilidades em situações sociais. Já o analfabetismo seria a incapacidade de ler e de escrever. Aproximando-se da ideia de alfabetismo social está a ideia de alfabetismo funcional, que é quando o sujeito se utiliza da leitura e da escrita para continuar aprendendo e

se desenvolvendo ao longo da vida. Já o analfabeto funcional é aquele que foi alfabetizado, mas não se utiliza da escrita em suas atividades diárias ao longo da vida. Este tipo de formulação a respeito do fazer/não fazer uso da leitura e da escrita em sociedade remete ao sentido da inclusão. É preciso estar incluído, e não à margem, para perpetuar ideologias. Era assim já no período do Brasil colonial, como venho destacando com base em Silva (2015) e com objetivo de demonstrar como os discursos são, na verdade, atualizados a partir de um discurso que outrora foi discurso fundador. Antes, a escolarização era o mecanismo que tornava possível a inscrição de índios e mestiços em um determinado funcionamento histórico-cultural. Hoje, é o que torna possível a inserção no mundo produtivo do trabalho. Antes, a escrita e a escola proporcionavam a saída do mundo da barbárie e a entrada no mundo civilizado. Hoje, figura como instrumento que possibilita um melhor posicionamento na estrutura socioeconômica, ou seja, possibilita o distanciamento da vida à margem na sociedade. A respeito dos avanços científicos na área da educação, o documento explicita que os últimos vinte anos foram de mudanças na prática escolar, especialmente no que diz respeito à alfabetização. Tais mudanças na prática teriam ocorrido como consequência das pesquisas em processos de aprendizagem, no entanto, os professores continuam relatando dificuldades no processo de alfabetização. O documento sugere que isso ocorre porque a questão da alfabetização é amplamente debatida, nos níveis acadêmico e político, com base em pesquisas científicas, porém, o discurso escolar ainda seria composto de “senso comum” e pouco afetado pelas pesquisas científicas (CURITIBA, 2006, p. 203). O texto aponta que isso acontece por falhas na formação dos educadores, em especial, dos alfabetizadores. Esta problematização, a meu ver, não promove um auto diagnóstico sobre o fracasso do sistema, mas sim direciona a problemática para o âmbito pessoal e acadêmico. A estruturação do texto em terceira pessoa possibilita um efeito de sentido de que o “eles”, os educadores e a academia, falham na busca de informação e formação de profissionais, respectivamente; mas o “nós”, que incluiria a própria Secretaria de Educação, não parece estar em jogo aí. Desta forma, percebe-se que o documento contribui para a manutenção do sentido de que o professor é um profissional com falhas em sua formação, sentido este já estabilizado em algumas esferas da sociedade, principalmente na esfera acadêmica.

O documento intitulado “Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal de Curitiba” faz parte de um conjunto de discursividades que se inscrevem na FD do DP.

No documento, os discursos acerca da escola, do sujeito aluno, do sujeito professor e do processo de ensino são institucionalizados. Tais discursos produzem efeitos de sentido não só em relação aos sujeitos envolvidos na prática escolar, mas também em relação aos sujeitos enquanto pertencentes a uma sociedade em que predomina o convívio “democrático” dos cidadãos que têm “consciência dos seus direitos e deveres” e que contribuem para o “desenvolvimento”. E é esse sujeito que deve ser “formado” na escola, o que produz o efeito de sentido de comprometimento da instância pública (secretaria de educação) com a formação de sujeitos inseridos no mundo social do trabalho e da ordem democrática e jurídica (ou a ilusão de ordem). Assim, vemos a materialização da ideologia em um discurso institucionalizado e a dissimulação dos sentidos de uma prática que reforça o funcionamento social vigente, o dominante, fazendo com que a escola cumpra seu papel como AIE.

Ao longo deste capítulo, vimos que as práticas escolares, tanto de forma geral como as voltadas para o ensino da escrita, seja a partir da não assunção à autoria ou a partir da lógica diagnóstica, proporcionam que o sujeito-aluno estabeleça certas representações acerca de suas condições reais de existência. Isso ocorre a partir do imaginário das relações do sujeito-aluno com o mundo real. A representação que eles fazem destas relações é resultado de uma prática relacionada à existência material da ideologia, que se realiza no interior do AIE escolar. Em outras palavras, o AIE escolar possibilita certas práticas que vão determinar a representação que os sujeitos-alunos estabelecem de suas relações com o mundo. Assim, o sujeito é interpelado constituindo a forma-sujeito escolar que é compatível com a forma-sujeito capitalista. Esta compatibilidade se dá, principalmente, pelo fato de que as relações estabelecidas entre o sujeito e a linguagem escrita, ou as relações entre o sujeito e seu próprio corpo patologizado, são relações que fazem parte de suas relações com o mundo.

A escola, enquanto AIE que materializa as práticas da formação social, realiza um conjunto de práticas que fortalecem a forma-sujeito capitalista. Tais práticas se realizam, como vimos neste capítulo, a partir da não legitimação do texto do aluno em situações que dissimulam o fato de a escola não alçar o aluno à posição de autor; a partir da prática de engavetamento dos textos escolares, constituindo-se como um verdadeiro veto à circulação de sentidos; a partir de uma noção de língua escrita enquanto transparente, e o foco constante no “erro” ortográfico que, por sua vez, está pautado pela noção de norma linguística; a partir da verticalização das relações escolares, pautadas na autoridade/autoritarismo e em que predomina o sentido de

“direitos e deveres”, a partir da individualização do sujeito-aluno e sua consequente patologização; a partir da institucionalização de certos efeitos de sentido nos documentos públicos norteadores do fazer escolar.