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Parece-nos de todo pertinente, tornar explicita a diferença entre o conceito de risco e o conceito de perigo. Deste modo, entendemos o conceito de risco como a vulnerabilidade de condições que se encontram inerentes ao processo de desenvolvimento, impedindo o sistema familiar de responder às necessidades físicas, afectivas e sociais dos seus membros (Rodrigo, Máiquez, Correa, Martín & Rodríguez, 2006) A lei de promoção e Protecção de crianças e jovens em perigo2

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define, segundo o nº 2 do Art. 3, que a criança se encontra em perigo quando designadamente, se encontra numa das seguintes situações: a) Está abandonada ou vive entregue a si própria; b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; d) É obrigada a actividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; e) Está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; f) Assume comportamentos ou se entrega a actividades ou consumos que afectem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação. Assim sendo, consideramos que ambos os conceitos se encontram relacionados, uma vez que comprometem a integridade e o desenvolvimento da criança, e o risco engloba toda e qualquer forma de perigo. Para as discussões do conceito de perigo com os participantes desta investigação, desenvolvemos com elas a seguinte dinâmica: mostramos duas imagens de crianças em situação de risco, por se encontrarem em situação de pobreza extrema, abandono, exclusão social e por serem negligenciadas (ver anexo 4). Da visualização das imagens resultou a reflexão feita pelas crianças em relação ao conceito que nos propomos a abordar.

Quando questionadas em relação à noção de perigo, os protagonistas apelam, inicialmente à descrição das imagens, como nos é possível verificar: “O menino tem fome!” (Kevin, 8 anos), “Comem no lixo!” (Barbie, 7 anos), “É uma menina ao pé do caixote do lixo!” (Kevin, 8 anos), “Não! É uma casa! Toda suja! Toda desarrumada...” (Princesa, 8 anos).

Através da descrição que fazem das imagens, as crianças vão tornando cada vez mais claro o que significa, verdadeiramente estar em perigo. Assim, a falta de cuidados de higiene, bem como a privação dos direitos básicos de provisão, iniciam a lista de factores de perigo, na perspectiva dos protagonistas, demonstradoras de muitos contextos familiares.

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A situação de pobreza faz com que as crianças se encontrem mais vulneráveis, apresentando baixos índices de saúde, condições de habitabilidade precárias, falta de informação, dificuldade no acesso aos serviços a que têm direito e, tal devido muitas vezes, à falta de conhecimento dos seus próprios direitos.

Talvez por sugestão das imagens, o perigo na perspectiva dos mais pequenos, parece estar aliado à pobreza e, por sua vez à falta de alimento e precariedade nos cuidados de higiene, como nos mostram os seus discursos: “Os meninos que vivem assim estão mal, muito mal! Porque vivem no meio no meio do lixo” (Princesa, 8 anos), Perigo é, por exemplo ter uma casa suja!” (Kevin, 8 anos), “Porque vivem numa casa desarrumada!” (Barbie, 7 anos). Esta realidade retrata também os contextos onde estas crianças se inserem, advindo o reconhecimento e identificação.

“O bairro da Estrada Militar encontra-se bastante degradado e totalmente desprovido de cuidados de higiene. As ruas fedem e, à medida que o vamos explorando, deparamo-nos com toneladas de lixo aglomerado nas ruas. Não existem condições mínimas de salubridade nas habitações e as epidemias de ratos já são uma constante, como se tratassem de meros habitantes e vizinhos”. (Nota de Campo nº 1, Bairro da Estrada Militar, Maio de 2008)

Interessante perceber que, no dia-a-dia destas crianças a falta de condições de higiene parece não ser um factor constrangedor nem indicador de perigo, mas quando apresentado noutra perspectiva assume especial enfoque. O contacto diário com este tipo de realidade faz com que esta se transforme, passando a ser assumida como padrão de normalidade e não como factor indicador de risco. Esta constatação parece ser assustadora, pelo que apenas através da visualização e fazendo referência a outros contextos, as crianças identificam esta realidade, mas não a assumem como sua. As imagens começam a ganhar voz, como nos sugere o Kevin no seu discurso: “A primeira estava a dizer que os meninos não deveriam ter fome!” (Kevin, 8 anos),

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aparecendo desta forma as primeiras noções de perigo. A Princesa e Barbie também nos dão o seu contributo: “Estarem sozinhas e abandonadas” (Princesa, 8 anos), “Pois morrem porque não querem saber deles” (Barbie, 7 anos).

Importa fazer referência à necessidade de protecção que descodificamos da análise destes discursos, pelo que nos sugere que a condição de perigo esta intimamente aliada a responsabilidades parentais que garantam a segurança da criança. Para as crianças, os adultos possuem a capacidade de criar situações de perigo, de não salvaguardar os direitos de provisão e, sem dúvida que as perspectivas delas não se encontram muito longe da realidade.

Importa referir que os mais pequenos apenas conseguiram identificar o conceito de perigo e não de risco, que nos pareceu, segundo a perspectiva deles, assumirem o mesmo papel: O Anderson é uma criança em perigo! (kevin, 8 anos).

À semelhança dos mais pequenos, os mais crescidos associam o conceito de perigo ao conceito de risco: “ (risco) É como estivessem em perigo” (Lili, 14 anos).

O grupo dos mais crescidos, traduz em linguagem verbal o que lhes é perceptível aos olhos referindo que encontrar-se em perigo/risco implica estar:

“Mal. Porque não devem ter conforto, nem dinheiro para as coisas que precisam, nem alimento” (Lili, 14 anos),

“Podem não ter comida e casa...” (Carla, 13 anos),

“Menino estava com fome e sem abrigo, ou seja sem casa.” (Lili, 14 anos). Estar em perigo significa, também, para eles:

“Uma coisa má!” (Carla, 13 anos),

“Quando uma pessoa nos quer fazer mal e não temos ninguém que nos possa ajudar.” (Lili, 14 anos),

“ Porque não tem protecção.” (Carla, 13 anos).

Estes testemunhos sugerem-nos que associam o conceito de perigo à falta de protecção.

De acordo com George e Solomon (1999), (cit. in Rabouam & Moralès-Huet, 2004, p.71-72), a prestação de cuidados parentais (sistema de caregiving) “é constituído por comportamentos coordenados que têm objectivos específicos e uma função

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adaptativa, o sistema de caregiving é recíproco do sistema de vinculação e a sua função adaptativa é a protecção das crianças”.

Sem dúvida que temos vindo a constatar que, para as crianças a protecção é um factor importante, para garantir um desenvolvimento físico e psíquico saudável. Daí, surge-nos a questão de entender este constante reforço, por parte das crianças, como uma ambiguidade, na qual, por um lado encontramos expressos os apelos, escondidos entre os relatos, à protecção, e por outro, o de se sentirem responsáveis pelos seus próprios desígnios e entregues a si próprios. ~

Das conversas à saída dos encontros, tão inocentemente, as crianças deixam escapar que apesar de os seus olhos procurarem em cada recanto do bairro, ninguém estava a espera delas. Este facto repete-se vezes sem conta, à saída da escola, à saída do atl, à saída da catequese...

Um abraço e um beijo são a forma como me despeço à porta de casa, apelando para que este gesto seja notado pela mãe!!!

(Nota de campo nº 12, Bairro da Estrada Militar, Julho 2009)