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Os argumentos produzidos nas quatro categorias de análise produzidas apresentadas nos tópicos anteriores e que sustentam a Tese sobre a recontextualização das políticas nas práticas dos professores partem, fundamentalmente, da compreensão vigotskiana, aprofunda- da por seus seguidores contemporâneos, de que os processos psicológicos superiores de constituição humana são mediados pela linguagem, capaz de instituir sistemas funcionais, dinâmicos e historicamente mutáveis. Talvez este tenha sido o ponto mais importante dos estudos de Vigotski, que serviu como um divisor de águas tanto para a Psicologia da época quanto para os filólogos, filósofos e linguistas. Desde este ponto de vista, distintas correntes se voltam para a Tese que Vigotski propõe para explicar a relação entre o pensamento e a lin- guagem, cuja incompreensão foram até então responsáveis pela visão cindida entre pensamen- to e linguagem e por outras cisões, como corpo e mente, psicologismo e cultura, aprendiza- gem e desenvolvimento, dentre outros. Ao introduzir na psicologia o método marxista de de- senvolvimento social, em boa medida superam-se as concepções extremistas do idealismo e materialismo e emerge um novo modo de interpretar o humano constituído nas relações soci- ais e também as recriando simultaneamente.

Nessa perspectiva, a defesa é de que as Funções Mentais Superiores (FMS), especifi- camente humanas, são instituídas e desenvolvidas pela internalização e apropriação das expe- riências culturais e históricas, do plano social para o individual, sempre mediado pela lingua- gem. A atenção voluntária, a memória ativa, o pensamento abstrato, a percepção, dentre ou- tras, são apropriações do intelecto humano mediadas pelo outro e os objetos culturais. “Todas as funções psíquicas superiores são processos mediados, e os signos constituem o meio básico para dominá-las e dirigi-las. O signo mediador é incorporado à sua estrutura como parte in- dispensável, na verdade a parte central do processo como um todo” (VIGOTSKI, 2001). As- sim, também podemos interpretar os conhecimentos de professores que constituem competên- cias que se manifestam nessa atividade.

Através da pesquisa, posso dizer que todo modo de apropriação desses conhecimentos e a formação de competências dá-se duplamente pelo outro no plano das relações sociais, por meio dos signos (palavras com significado) e objetos, como instrumentos ou ferramentas, ambos compondo o que se denominou “mediação semiótica” (VIGOTSKI, 2001; VIGOTSKI; LURIA; LEONTIV, 2012) ou “ação mediada” e “meios mediacionais” e “caixa de ferramen- tas” (WERTSCH, 1993). Desde essa perspectiva teórica, interpretei que os “processos de re- contextualização” incorporam modos de mediação, significação e apropriação de princípios e pressupostos oriundos das políticas públicas educacionais, tanto por meio dos signos (inter- disciplinaridade, contextualização, competência, etc.), que permeiam as propostas, quanto das relações de significação que, por intermédio deles, se estabelecem no contexto das práticas dos professores (SE, LD, Enem, documentos em geral). Por modos de mediação entendo o que emergiu dos mediadores externos e internos à escola: Seduc, CRE, CPERS, Gipec, coor- denação pedagógica, a própria cultura escolar, dentre outros.

O amplo contexto de produção e análise dos dados, empíricos e teóricos, desta invest i- gação, evidenciou os distintos modos de mediação e significação que constituíram a plurali- dade de ideias e ações dos professores, e esses modos têm estreita relação com as condições materiais e imateriais de mediação ou da ação mediada que permeou as reestruturações curri- culares mais recentes. Em virtude dessas condições de mediação, as marcas do processo de recontextualização/significação não se limitam ou se restringem às influências globais de polí- ticas nacionais e internacionais em um dos marcos histórico-sociais, políticos e ideológicos, muito menos se encerram na microabrangência do contexto sociocultural das escolas ou des- tas com ferramentas de mediação que penetraram o contexto de trabalho dos professores por meio de signos e objetos. Os argumentos que sustentam as categorias anteriormente apresen-

tadas pautam-se na Tese da significação e apropriação de princípios e pressupostos curricula- res e estes transcendem os limites geográficos e ideológicos de uma comunidade escolar, de um município e um país, ou não se orientam unicamente por uma ideologia de abrangência neoliberal do mundo globalizado. Para explicitar as marcas da recontextualização, foquei na pertinência dos conceitos/princípios curriculares aqui analisados e apresentados na sua polis- semia de sentidos e significados, agregando a eles uma dimensão a mais de análise: a das condições e formas de mediação e não apenas no significado em si das palavras como signos ideológicos.

Esta análise fundamentada na perspectiva multicampo do conhecimento e com ênfase nos referenciais da abordagem histórico-cultural mostrou-se mais otimista e menos determi- nista que outras centradas apenas nos aspectos políticos, econômicos e ideológicos para a de- finição de “política” e princípios dela decorrentes. Tanto as políticas no âmbito das propostas de intervenção do Estado Republicano, quanto daquelas que resultam das forças neoliberais hegemônicas interventoras do processo de internacionalização da educação, são processos mediados e, portanto, modificam-se ao interagir com os sujeitos e contextos.

Tal como o método analítico vigotskiano que produziu uma teoria para o desenvolvi- mento intelectual humano com base na relação pensamento e linguagem, também esta análise centrou-se na “relação mediada” envolvendo políticas e práticas cujos significados apropria- dos resultaram em concepções e práticas. A grande contribuição de Vigotski foi dizer que a unidade do pensamento verbal encontra-se no significado das palavras, afirmando, assim, que “é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem em pensamento verbal” (2001, p. 5). Para isso, o conceito de Mediação Semiótica foi essencial, permitindo-lhe afir- mar que toda função mental foi antes uma relação entre duas pessoas. Assim também posso afirmar que tais significados emergentes nessa análise somente se explicitam quando a relação entre políticas e práticas não forem consideradas algo dado, mas que se estabelecem na reci- procidade.

Com esse aporte, julgo pertinente ter estudado os mecanismos da recontextualização de políticas perseguindo as marcas de sua relação, tanto acerca do que emerge das propostas quanto o que emerge das práticas significadas e apropriadas em contexto de “ação mediada”. Do contrário, seríamos também forçados “a ver a relação como uma mera condição mecânica e externa entre dois processos distintos” (VIGOTSKI, 2001, p. 3). Por essa razão, centrei-me na análise documental em perspectiva nacional e internacional, explícita no segundo Capítulo,

para confrontá-la com a análise das práticas de ensino dos professores no contexto das escolas brasileiras.

Ao estudar a relação propostas e práticas, identifiquei que as marcas da recontextuali- zação dizem respeito ao significado atribuído pelos professores às suas experiências de apro- priação de pressupostos e princípios como signos indutores das mudanças sugeridas, bem co- mo das relações que mediaram essas mudanças. Wertsch (1993) argumenta em favor da “ação mediada” que, segundo ele, se estabelece nas relações entre processos mentais humanos e contexto cultural, histórico e institucional, como no caso das Secretarias de Educação, gestão escolar e grupos de pesquisa envolvendo as universidades, como mostrou a análise. O binô- mio políticas públicas agrega as propostas e as práticas, cuja relação se manifesta no signifi- cado atribuído às experiências vividas pelos sujeitos nessas duas dimensões: de lidar com os novos signos que foram inseridos na escola, com a própria ideia de política como ferramenta cultural indutora das reestruturações e de mudanças nos documentos e nas práticas dos profes- sores e, ainda, todas as condições materiais e imateriais para tal.

Segundo Pino (1991), o conceito de mediação semiótica em Vigotski permite explicar os processos de internalização e objetivação, as relações entre pensamento e linguagem e a interação entre sujeito e objeto de conhecimento, compondo, assim, uma teoria para explicar o desenvolvimento intelectual. Esses três pontos não apenas contribuíram para confirmar o mé- todo analítico da tese da recontextualização, como também ajudaram a interpretar os conhe- cimentos dos professores mobilizados para mediar a aprendizagem e o desenvolvimento de competências nos estudantes. Os sentidos e significados para os princípios de contextualiza- ção, interdisciplinaridade, competências e habilidades, bem como, de suas implicações no desenvolvimento de um tipo específico de currículo proposto como abordagem temática na área de CNT têm estreita relação com esses conhecimentos e competências dos professores. Ou seja, a significação e apropriação de signos e relações, convertidas em competências, é o que pauta as narrativas que explicam o desenvolvimento do currículo, do professor incumbido dessa atividade e dos seus estudantes em processo de ensino-aprendizagem.

Por fim, no Capítulo que segue, proponho-me à reconstrução teórica da Tese, por meio da articulação da trajetória de estudos realizados, das evidências encontradas com base nos aportes conceituais da abordagem histórico-cultural de Vigotski, Bakhtin e seus seguidores contemporâneos, bem como nas projeções que este estudo me permitiu enunciar.

4 RELAÇÃO ENTRE POLÍTICAS PÚBLICAS E PRÁTICAS ESCOLARES DE