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O jogo simbólico da criança cega

O jogo simbólico é uma polissemia de nomes, conhecidos por: brinca- deira de faz de conta, jogo de representação, jogo de imitação, imaginati- vo, fantástico e “de mentirinha”. Pesquisas sugerem que o jogo simbólico parece ser universal e também uma atividade essencialmente humana. (BICHARA, 1994)

O jogo simbólico é uma brincadeira típica da idade de 2 a 7 anos. Essa é uma fase denominada por Piaget de Estágio Pré-Operacional e que tem como uma importante característica o início da linguagem e da represen- tação. Nessa faixa etária, a criança deixa de simplesmente manipular o brinquedo para assimilar a realidade externa ao seu universo interior, pra- ticando distorções e/ou transposições. Inicialmente, o processo é individual e idiossincrático, partindo a seguir para a socialização e transformando-se em jogo com regras.

Apesar de existirem várias definições para o jogo simbólico, a maioria dos autores (BROUGÈRE, 2003, 2004a, 2004b; BRUNER, 1976; ELKONIN, 1998; KISHIMOTO, 1998, 2003, 2004, 2005; PIAGET, 1990; VIGOTSKY, 1991) concorda com o fato de que o jogo simbólico é a representação e faz uso de objetos e materiais de maneira diversa do normal, dando-lhes outras funções, distanciando o significado do significante.

No que se refere à brincadeira das crianças cegas, Tait (1972, 1973) e Will (1972 apud SILVEIRA; LOGUERCIO; SPERB, 2000) afirmam que as crianças cegas não parecem se interessar por jogos dramáticos, preferindo brincadeiras manipulativas, no entanto não são inábeis para a brincadeira simbólica, como alguns autores sugerem.

Sandler e Wills (1965 apud SILVEIRA; LOGUERCIO; SPERB, 2000) observaram divergências no brincar das crianças cegas com as videntes. Tais discrepâncias são: as crianças cegas apresentam um atraso na exploração do ambiente e dos objetos; não se engajam em rotinas de brincadeiras ela- boradas com outros significantes; a imitação e os jogos de papéis aparecem tardiamente, quando aparecem.

Para Ochaita e Rosa (1995), as crianças cegas apresentam um atraso sig- nificativo no desenvolvimento do jogo simbólico, se comparadas às videntes. Esse fato é explicado pelas autoras a partir de duas perspectivas. A primeira remonta à dificuldade encontrada para a construção de uma imagem de si mesma e dos outros. A outra perspectiva baseia-se na ausência da visão, motivo pelo qual a criança não tem acesso a experiências que lhe permitam imitar as ações diárias da vida, o que se constitui o argumento inicial dos jogos simbólicos. Além disso, as autoras afirmam que os brinquedos que constituem o elemento da representação simbólica para as crianças videntes podem não ter nenhum significado para a criança cega.

Em um estudo espanhol desenvolvido pelo grupo de educadores da Organização Nacional dos Cegos Espanhóis (ONCE), Lucerga Revuelta e outros autores (1992) pesquisaram 14 crianças com baixa visão e cegueira. A pesquisa se propunha a observar a hora do jogo dessas crianças, a partir de um protocolo onde foi observado que o jogo simbólico da criança cega tem qualidades específicas condicionadas à deficiência visual. Porém essa forma não deve impedir as funções intrínsecas do jogo, pois este lhe pro- porcionará situar-se entre o mundo real e imaginário, expressando o seu mundo interno, elaborando os seus próprios conflitos.

As autoras afirmam ser difícil acontecer o jogo em situação espontânea, pois a deficiência visual é uma barreira intransponível para poder jogar, tanto do ponto de vista cognitivo como emocional. Em suas conclusões, reforça a importância do apoio e da intervenção do adulto para a imple- mentação do jogo simbólico, assim como da necessidade que a criança dessa idade tem de ser ajudada a jogar simbolicamente.

Preisler e Palmer (1989 apud SILVEIRA; LOGUERCIO; SPERB, 2000) fizeram observações sobre crianças cegas de 2 a 3 anos em uma escola, juntamente com crianças videntes da mesma idade, e verificaram que as crianças cegas manipulavam inicialmente os brinquedos com a boca;

depois, com as mãos, pés e outras partes do corpo, e só quando se fami- liarizavam com os brinquedos não os colocavam mais na boca. A maior interação dessas crianças era com as pessoas adultas, em detrimento das outras crianças. Para os pesquisadores, esse comportamento deve-se ao fato de as crianças acharem nos adultos maior condição de lhes ensinar e orientar sobre o mundo.

Também foi observado por Preisler e Palmer (1989 apud SILVEIRA; LOGUERCIO; SPERB, 2000) que as crianças cegas se engajavam mais em brincadeiras estruturadas, ao contrário das brincadeiras livres. Enquanto que as videntes movimentavam-se por todo o espaço e imitavam as ações dos outros. As crianças cegas tinham dificuldade de compreender o signi- ficado da brincadeira.

Fraiberg (1977) constatou que as crianças cegas não imitam, ou rara- mente imitam as atividades da vida diária realizadas por seus cuidadores; isto contribuiria para dificultar o desenvolvimento da função simbólica.

Ainda segundo Lucerga Revuelta e outros autores (1992), se comparadas às crianças videntes, crianças cegas possuem uma defasagem de diferença média de 15 meses entre idade cronológica e idade de desenvolvimento da atividade do jogo simbólico.

Bruno (1993) adverte para a dificuldade que as crianças cegas encon- tram para iniciar a imitação e o jogo simbólico e enfatiza a importância desse jogo para o desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança deficiente visual, pois é através dele que a criança exercita o pensamento pré-lógico. Para alcançar essa representação, as atividades devem ter vivências signi- ficativas e outras crianças para brincar, pois assim ela passa a conhecer e aprende sobre o mundo:

A formação do símbolo alicerça-se na construção do real. Brin- cando, a criança representa suas vivências, evoca as experiências significativas, organiza e estrutura sua realidade externa e interna e toma consciência de si como ser atuante. Este é o caminho para conhecer o mundo [...] (BRUNO, 1993, p. 49)

Ramiro (1997) considera que as crianças cegas avaliadas no seu estudo, faixa etária de 8 anos e estudando em escola especial, apresentavam ati- vidade lúdica espontânea, comum às crianças videntes da mesma idade,

porém com certas peculiaridades quanto à forma de expressão, que se apresentavam como próprias da deficiência visual.

Em outro estudo brasileiro, Silveira, Loguercio e Sperb (2000), após a observação das brincadeiras das crianças cegas em dois contextos diferentes, na brincadeira espontânea e a partir da proposta do observador, identi- ficaram que a brincadeira espontânea só acontecia quando havia alguém para propor a atividade. Quanto às atividades de manipular os brinquedos com a boca, foram observadas em várias crianças, assim como o uso de objetos sonoros: telefone, microfone, etc. As crianças interagiam muito mais com o adulto do que com os seus coetâneos, e chamou a atenção o fato de as famílias estarem pouco orientadas e preparadas para lidar com seus filhos cegos.

Obviamente, essa é uma situação que ocorre em todo país e isso se deve, certamente, às poucas pesquisas que existem sobre o brincar da criança deficiente visual. Segundo Batista (1997 apud SILVEIRA; LOGUERCIO; SPERB, 2000), a literatura especializada, em geral, é mais voltada para as características visuais e a avaliação das relações entre habilidades adapta- tivas. Portanto essa pesquisa tenta suprir tal lacuna a respeito da criança deficiente visual e o papel do seu jogo simbólico no processo de desenvol- vimento, e da construção do conhecimento da criança cega na etapa de 2 a 4 anos.