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de participar na reconstrução do seu país, em igualdade de con- dições relativamente aos homens. A seu favor foi modificado o có- digo civil e foi-lhes dado o direito de votar, de serem eleitas; hoje, são poucos os empregos que lhes estão interditos. Então, parece que na França a velha disputa entre feministas e antifeministas está resolvida, e não há razão para retroceder. Mas eu pergunto- me se, pelo contrário, não é hoje que a questão se levanta com maior intensidade. O mundo dos homens está aberto às mulheres; é agora que elas o devem provar a si próprias. Os homens reco- nheceram-nas como suas iguais, mas, exatamente, qual vai ser o lugar das mulheres? Gozarão elas das mesmas oportunidades que os homens?

Sei que a simples afirmação destas questões irritará mais do que uma mulher. Os homens, em França, como na América, pen- sam que de uma vez por todas as mulheres são iguais aos homens e que se deve falar de outra coisa. Mas se é verdade que todos os seres humanos conscientes e livres possuem o mesmo valor, a mesma dignidade, também é verdade que a posição e as oportu- nidades determinam os problemas que se colocam a cada um.

Eu própria penso que não há mito mais irritante nem mais falso do que aquele (o) do eterno feminino que foi inventado, com a ajuda das mulheres, pelos homens, e que as descrevem como in- tuitivas, encantadoras, sensíveis. Os homens têm a capacidade de dar a estas palavras uma ressonância lisonjeira, de tal modo que muitas mulheres se deixam enganar por esta imagem. Elas expressam os mistérios do seu coração, o segredo das suas emo- ções íntimas; humildemente, elas oferecem ao homem o reflexo dos seus próprios desejos e confortam-no no seu sentimento de superioridade. Mas o que o homem realmente quer dizer quando fala da sensibilidade da mulher é a sua falta de inteligência, a sua irresponsabilidade quando diz encanto, a sua traição quando diz capricho. Não nos deixemos enganar. É evidente que é apenas em documentos legais e em registos civis que os dois sexos apa- recem como iguais. Até a palavra homem, em muitos países, sig- nifica ao mesmo tempo o homem e a raça humana.

Eu ficava frequentemente irritada quando um homem me dizia: “Pensa isso porque é uma mulher.” Eu só conseguia respon-

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der: “Acho que é a verdade”. É tido como certo que ele está no seu direito de ser homem e que sou eu quem deve estar errada. É ele quem representa o tipo humano ideal. E tudo o que diferencia a mulher, ou culpamo-la ou consideramo-la errada. Supomos que ela pensa com as suas glândulas; o homem esquece-se orgulhosa- mente de que também tem glândulas e hormonas. Ele pensa em si mesmo como puramente mental e objetivo.

Os homens tentam justificar racionalmente este conceito, apoiando-se fortemente sobre o que eles chamam “a natureza”. É verdade que a mulher é fisicamente mais fraca que o homem. Que ela é escrava das duras funções da gravidez. As mulheres lidam com dificuldade ou com falta de habilidade num mundo de ho- mens porque é apenas como convidadas que são admitidas neste mundo. Elas ainda não estão na sua casa; é um mundo que não foi criado por elas e ainda não o conquistaram.

Originalmente, o mundo foi construído na base da força física. Hoje, muitas vezes, não é preciso mais do que o apoio de um dedo para poder, com a ajuda de máquinas, comandar forças imensas; é pelo pensamento e não pelo exercício muscular que o mundo é agora conquistado. É por isso que a desigualdade física perdeu quase por completo a sua importância. O impulso do presente para o futuro, que verdadeiramente define a humanidade, foi pri- meiro realizado apenas pelos homens. A mulher era dona de casa e mãe e, como tal, nenhum princípio do seu progresso delas podia emanar. Como guardiãs do lar, elas voltaram-se para a tradição, para o passado morto. Só os homens inventavam o futuro. O papel da dona de casa não consiste em construção positiva, mas em lutar contra a destruição.

É uma das tarefas mais exaustivas, porque não é diretamente produtiva. Todo o mundo conhece a história do criado que, quando foi censurado por não ter polido as botas de seu mestre, respon- deu, cansado: “Qual é a utilidade? De qualquer forma, elas fica- rão de novo sujas amanhã.” Neste sentido, cada dona de casa é Penélope. Em cada noite desfaz o seu trabalho do dia. Nesta si- tuação de radical dependência é inútil perguntar à mulher se po- deria ou conseguiria encontrar a felicidade. É como perguntar ao homem, se era mais feliz e melhor no tempo em que não existiam

máquinas. O facto é que hoje existem máquinas. O facto é que, por muitas razões, as mulheres hoje devem e querem trabalhar, o que é outra maneira de dizer que querem independência em comparação aos homens.

O que, aqui, estamos a tentar definir é como a novidade deste esforço é vivido pelas mulheres. Nas mitologias, nos contos de fadas lidos às crianças, atribuem-se sempre os mesmos papéis à mulher. Elas são Ariane abandonada, Penélope e o seu tear, Andrómeda. Elas são Cinderela ou a Bela Adormecida. Ela é a que espera, que não pode encontrar o seu lugar no mundo a não ser pelo amor de um homem. Imagine-se o que teria acontecido se Shakespeare ti- vesse uma irmã tão talentosa como ele. Sem cultura, sem indepen- dência, ela não poderia expressar-se senão por meio de aventuras tolas que, sem dúvida, teriam terminado tragicamente.

O passado não prova nada contra o futuro da mulher, princi- palmente porque ela nunca teve a sua oportunidade: mas aclara o presente. Uma menina aprende cedo a endereçar a sua admira- ção aos homens: os heróis tradicionais. Muitas vezes, ela não sente senão dó e desprezo pela desgastada vida da dona-de-casa de sua mãe, das suas doenças, das suas lágrimas, da sua frivoli- dade, das suas preocupações. Em oposição, a personalidade de seu pai é exaltada; é ele quem representa força, poder, uma janela para o mundo, a vida e o futuro. No seu desejo de se identificar com ele, a menina reconhece e admite a superioridade do homem sobre a mulher que ela está destinada a ser. O gosto por agradar é profundo em todas as crianças. As crianças gostam de se sentir vivas. Ao jogar elas adquirem um sentido de independência da vida, mas para elas é igualmente importante sentir que por cima das suas cabeças está o teto tranquilizador da aprovação de adul- tos. O menino aprende cedo que, para obter essa estima adulta, não precisa de, diretamente, tentar agradar-lhes. Ele deve ser forte, independente, aventureiro. Mas a menina é encorajada pelos pais, professores e amigos, por toda a gente, a desenvolver os seus poderes de sedução, a ser gentil, bem vestida, amável. Estas exigências impedem-na de usufruir espontaneamente, como o rapaz, o gosto pelos prazeres do jogo, do desporto, da ca- maradagem.

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Um círculo vicioso começa a apertar (a ficar num nó). Quanto mais docilmente ela se conforma com esse ideal que lhe é imposto, menos ela desenvolve as suas possibilidades pessoais, menos ela encontra recursos em si mesma. Constantemente é impelida a virar-se para os homens, a procurar ajuda no exterior. Cresce o seu sentido de dependência e fraqueza. Quando eu era estudante na Sorbonne, fiquei chocada ao ouvir jovens mulheres dizerem- me com humildade: “É um livro para homens. Nós, nós não o po- demos ler”. O facto de acreditarem nisso tornava real a sua inferioridade.

Desta forma, pode-se explicar por que as mulheres até ao mo- mento raramente atingiram aquilo a que se chama de génio. Os génios são os seres excecionais que ousaram, em circunstâncias específicas, o que ninguém ousou antes deles. Isso, por si só, pres- supõe solidão e orgulho. Pressupõe que eles não estão a procurar ansiosamente o olhar dos outros para aí descobrir aprovação ou culpa, mas que olham corajosamente para horizontes ainda in- suspeitados. A educação — o mundo inteiro, de facto — ensina às mulheres a timidez. É por isso que elas não têm geralmente esse grão de loucura, a mistura de ironia e lirismo que se encontra em certos homens, célebres por se elevarem acima dos homens co- muns para julgar e dominar a humanidade.

Frívolas ou graves, as mulheres permanecem sempre sérias. Por outras palavras, elas aceitam o mundo: o seu esforço consiste apenas em procurar o seu próprio lugar neste mundo. As mulhe- res temem que, se perderem esse sentimento de inferioridade, também perdem o que as valoriza aos olhos dos homens — a fe- minilidade. A mulher que se sente feminina não se atreve a en- volver-se em atividades políticas ou intelectuais próprias dos homens, ou a considerar-se como seu igual. Inversamente, se uma mulher se liberta do seu complexo de inferioridade em relação aos homens, se ela tem sucesso nos negócios, na vida social, na sua profissão, ela sofre frequentemente um complexo de inferioridade em comparação com outras mulheres. Ela sente-se menos char- mosa, menos amável, menos agradável porque é privada da sua feminilidade.

Ela sabe que, aos olhos dos homens, o seu sucesso não cons- titui um trunfo e que, pelo contrário, ela corre o risco de os afastar. Um homem, no entanto, não tem que lutar senão a um só nível. Há uma perfeita unidade na maneira como ele tenta atingir a sua personalidade. Se ele adquire o poder no mundo, o prestígio aos olhos de outros homens, e um orgulho, uma segurança interiores, adquire ao mesmo tempo mais masculinidade nos campos senti- mentais e sensuais, porque é precisamente a independência e a força que as mulheres procuram num homem. É essa contradição que aflige muitas mulheres hoje em dia. Ou elas renunciam em parte à realização da sua personalidade ou abandonam em parte o seu poder de sedução sobre os homens. É um mundo masculino; os homens, pelos seus desejos, pelas suas esperanças, os seus medos, criam as condições que as mulheres tentam combater no caminho para atingirem a superfície.

Se nos interrogarmos sobre o futuro das mulheres, tem-se a consciência de que os homens são os primeiros que têm de ser en- doutrinados; fora de todas as razões económicas e sociais, são eles quem lamentam a evolução das mulheres. Todo o homem espera que fiquem provadas a sua superioridade e o seu poder, e não pode encontrar essa prova senão através de alguém que lhe seja infe- rior. Ele não tem poder nenhum, exceto se existirem objetos que lhe obedeçam. Existem plantas e animais que ele pode dominar, mas que permanecem silenciosos e inertes e não o tiram da sua solidão. A mulher é ao mesmo tempo natureza e consciência: ela é flor, fruta, pássaro, pedra preciosa; ela é humana, capaz de amar e querer. É necessário, portanto, que ela pareça “naturalmente inferior” para que seja possível dominá-la sem que isso se torne injusto.

Os homens gostam de se apresentar, em relação à mulher, no papel de generosos cavalheiros prontos a lutar para a defender. Mas, para merecer essa generosidade, ela deve ser frágil ou estar presa. Não é possível libertar Andrómeda a não ser que não tenha liberdade; despertar a Bela Adormecida se ela não estiver a dor- mir. O homem considera a mulher como a projeção dos seus dese- jos, a realização da sua vontade de poder. Se a mulher tivesse conquistado totalmente a sua independência, de tal forma que a

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sua associação com o homem fosse de uma igualdade perfeita, para o homem seria perdida uma certa doçura. Ele está cons- ciente disso, e é a sua resistência — admitida ou negada — que levanta o maior obstáculo que a mulher tem de superar, no mundo e no seu próprio coração.

Irigaray, Luce. (1974). “Ce sexe qui n’en est pas un” in Les Cahiers du GRIF, Nº5: “Les femmes font la fête font la grève”, pp.54-58.1Disponível

em: https://www.persee.fr/doc/grif_0770-6081_1974_num_5_1_964

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sexualidade feminina sempre foi pensada a partir de pa- râmetros masculinos. Assim, a oposição da atividade viril clitoridiana / passividade vaginal feminina, da qual fala Freud — e muitos outros... — como estágios, ou alternativas, do tornar-se uma mulher sexualmente "normal", parece exigida em demasia pela prática da sexualidade masculina. Na verdade, o clitóris é concebido como um pénis pequeno e agradável para se masturbar, conquanto a ansiedade da castração não exista (para o menino), e a vagina adquira o seu valor como "abrigo" do sexo masculino, quando a mão interdita deva encontrar um substituto para o prazer. As zonas erógenas da mulher não seriam nunca senão um sexo-clitóris que sucumbe à comparação com o órgão fá- lico valoroso, ou um buraco-envelope que faz de invólucro e fric- ciona em volta do pénis no coito: um não-sexo, ou sexo masculino virado sobre si próprio para se auto-afetar.

1Traduzido a partir do francês por Maria Manuel Baptista (mbaptista@ua.pt), Pro-

fessora Catedrática do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. investigadora e membro do Grupo de Estudos Género e Performance (GECE) do Centro de Línguas Literaturas e Culturas (CLLC) da Universidade de Aveiro.

No documento Género e performance: textos essenciais 1 (páginas 53-61)