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Etapa III – Analisar as implicações da atual fase

3. CAPÍTULO I – O PROCESSO DE MORFOGÊNESE DOS AGROECOSSISTEMAS

3.2. O SISTEMA AGRÁRIO COLONIAL (1773-1839)

A pesquisa não identificou ocupação humana na Ilha do Capim antes do período colonial, porém a presença de índios nesta localidade antes da colonização é uma hipótese que não pode ser descartada em função da proximidade desta ilha com aldeias indígenas daquela época. Havia três localidades confinantes que tinham estas populações como o atual Rio

Xingu (onde moravam os índios Xinguara), a atual Vila de Beja e os municípios de Muaná e Ponta de Pedras. Desta forma, os sistemas agrários são descritos a partir do período colonial levando em consideração aspectos de origem, formação da população, categorias sociais, modo de acesso fundiário, assim como os aspectos ecológico-produtivos como o modo de artificialização do meio, as trocas, os instrumentos e equipamentos de produção, finalizando com os fatores de crise e transição para o sistema agrário seguinte.

3.2.1. Origem, aspectos sociais e fundiários do sistema agrário colonial

O sistema agrário colonial teve início, na Ilha do Capim, na segunda metade do século XVIII. A carta de data e sesmaria que legitimou a posse dos colonos é datada de 29 de Setembro de 1773. Embora a legitimação da posse da terra tenha ocorrido nesta data, existe possibilidade de o povoamento ter ocorrido alguns anos antes, visto que neste período havia ocorrência de colonos que se estabeleciam em determinado local antes de receberem a posse da terra. A sesmaria, segundo Chambouleyron (2011a), constitui um incentivo à ocupação para depois se conseguir a legitimação dessa apropriação indevida”. Portanto, o ano de 1773 refere-se à legitimação da posse sem dar exatidão do ano de instalação das famílias.

Segundo os moradores mais antigos o povoamento começou quando Antônia Pereira de Lima Azevedo recebeu a ilha de presente de casamento de seu pai, um fazendeiro que morava no rio Nabiju na Ilha Grande de Joanes (atual Ilha do Marajó). Além da ilha, Antônia recebeu de presente uma centena de escravos. A herdeira da ilha e dos escravos casou-se com Antônio de Souza de Azevedo.

O sistema agrário era formado por duas categorias sociais: os colonos e os escravos. A família de colonos era formada pelos pais (Antônio Azevedo e Antônia Azevedo) e por oito filhos sendo seis homens (Luiz Azevedo, Armínio Azevedo, Raimundo Azevedo, Ananias Azevedo, Antônio Azevedo23 e Nabor Azevedo) e duas mulheres (Zulmira Azevedo e Cecília

Azevedo). Os colonos moravam na casa grande em um local chamado de fazenda nas margens do Furo do Capim. A localização da fazenda era estratégica para a realização da navegação já que no furo do capim o mar é calmo.

Os colonos possuíam também uma casa em Belém que, segundo Meira Filho (1969) apud Oliveira (2011), era “considerado uma das mais notáveis construções residenciais de Belém” e era conhecido como palacinho. Os escravos eram africanos e moravam em casas distribuídas pelas margens do Furo do Capim, formando um padrão de ocupação disperso.

A relação entre estas categorias sociais implicou na formação de uma figuração social (ELIAS, 2001) constituída por estabelecidos (establishment) e forasteiros (outsiders). Para Elias (2000) os estabelecidos24 são um grupo que se vê e é visto por outros grupos como a

“boa sociedade” (p. 7), incorporando socialmente a ideia de que são melhores e dotados de mais prestígio e poder. Os estabelecidos possuem a autoimagem de um grupo social mais importante em relação a outros grupos. Já os forasteiros são aqueles identificados como externos a esta “boa sociedade” (p.7), são grupos mais heterogêneos e possuem laços sociais com menor coesão. No período colonial, os estabelecidos eram os colonos e os outsiders eram os escravos.

A terra foi acessada pelos colonos de forma individual através da concessão da carta de data e sesmaria. Segundo Chambouleyron (2006) a sesmaria representou um elemento fundamental no processo de colonização já que “constituíam uma possibilidade de ocupar e povoar terras vazias e incultas (ao menos pelos europeus)” (p. 3). A justificativa para a concessão deste documento aos colonos da Ilha do Capim foi “porque o beneficiário queria edificar um engenho e precisava de terras de vargens para lavrar canaviais e, também, arrozais e ela era própria para esses tipos de cultura” (ANGELO-MENEZES, 2000a p. 70). O interesse nas áreas de várzea da ilha mostra que os colonos já conheciam os solos desta localidade e suas aptidões.

A carta de data e sesmaria assumiu o papel de legitimação da posse até meados do século XIX, mais precisamente em julho de 1822, quando ocorreu a extinção desse regime (FILHO; FONTES, 2009). Este modo de acesso fundiário tem implicações até os dias atuais visto que é o fenômeno responsável pela existência de desigualdades entre os camponeses agroextrativistas em relação ao acesso a terra. Desta forma, este sistema agrário sofreu rupturas ao longo do seu processo de diferenciação, porém manteve elementos de continuidade.

3.2.2. Aspectos ecológico-produtivos do sistema agrário colonial

A área utilizada pelos colonos com a mão de obra escrava envolvia a terra firme, a várzea, rio, igarapés e o furo. O primeiro espaço construído através do trabalho dos escravos foi a fazenda, que recebe este nome até hoje. A principal atividade produtiva realizada na fazenda era o plantio de cana-de-açucar (Saccharum officinarum) e o arroz (Oryza sativa). Este sistema de plantation era realizado na área de várzea nas margens do furo do capim. Essa

localização era estratégica por estar próxima de um rio (Canavial) e de quatro igarapés (Bacuri, Aningal, Defuntinho e Marintuba) que facilitavam o escoamento da produção por embarcações. O rio Canavial recebe este nome até os dias atuais por ter sido a principal via de escoamento da cana de açúcar.

Havia um engenho para o processamento da produção de cana caiana25 onde eram

produzidos cachaça e açúcar. Os escravos realizavam neste engenho atividade de processamento com uso de vários equipamentos. Os colonos dispunham de uma moenda para a trituração e extração da “garapa” (líquido esverdeado e doce da cana-de açúcar), um paiol que servia de depósito no momento imediatamente posterior a trituração na moenda; um alambique para o processo de destilação; as dornas que também serviam para fermentação e os garrafões para a venda da aguardente.

O extrativismo de madeira era outra atividade relevante realizada para a construção de barcos. Estes últimos eram utilizados para o transporte e comercialização dos excedentes da produção. A construção dos barcos ocorria no igarapé do barco, que mantém o nome até os dias atuais e foi assim alcunhado em função de ter sido o local das construções. Este igarapé foi construído de forma artificial pelos escravos por meio de escavação para permitir a descida dos barcos após a obra ser finalizada. Além do extrativismo da madeira, os escravos caçavam na terra firme e na várzea e pescavam nos igarapés e no rio Canavial. Os escravos utilizavam mundé laço26 e mundé cabeça27 para caçar, assim como o cambão28 para pescar.

Os colonos contratavam mestres de outras localidades para o ensino do ofício na fazenda. Os mestres eram carpinteiros e calafates que ensinavam os escravos a construírem barcos. Havia também mestres que ensinavam o trabalho no engenho. Fonseca (1962, p. 71) observa que “os que trabalhavam nas profissões manuais foram, entretanto, pouco a pouco, cedendo o lugar para os escravos. O exercício de qualquer ofício passou a ser privilégio do negro”. Essa era também o objetivo dos colonos: qualificar a mão de obra escrava e substituir gradativamente os mestres. Na fazenda os escravos criavam gado vacum e cavalos na área de terra firme em frente ao furo do capim. A criação do gado tinha o objetivo de garantir as necessidades alimentares dos escravos e colonos. Já a criação de cavalos era realizada para permitir a vigilância da ilha.

25 Um dos setores da ilha é denominado “Caiana” devido o cultivo desta variedade de cana no período colonial. 26 Armadilha feita com corda para capturar animais.

27 Armadilha feita com varas da capoeira para abater caças.

De acordo com os moradores mais antigos o sistema agrário colonial gerou a simplificação do ecossistema em uma extensão de ¼ (um quarto) da extensão continental da ilha, que equivale a aproximadamente 313.34 hectares. A criação do gado, o plantio da cana de açúcar e arroz e a retirada de madeira para a construção de barcos exigiam a derruba da mata e implicaram na simplificação da paisagem das margens do furo. No seu conjunto, o modo de artificialização e de exploração do meio era constituído por um sistema misto com a criação de animais, plantações e extrativismo. Menezes (2000b) afirma que esse tipo de sistema era comum entre os colonos.

As relações de produção e troca eram estabelecidas através de viagens de Antônio Azevedo nos barcos construídos na fazenda para comercializar a produção em Belém. Ele vendia aguardente, açúcar, e outros produtos extrativos da ilha (animal e vegetal). Comercializava também o tabaco que era comprado por Antonia Azevedo de outros produtores do Marajó e vendido por Antônio durante suas viagens a Belém. Antônio também viajava para Portugal para fins comerciais. A energia utilizada para a navegação era a endossomática, ou seja, o trabalho dos escravos que remavam nas embarcações que transportava os produtos. Outra energia importante era a eólica, através do uso da vela dos barcos. Neste período, os produtos eram vendidos para a Companhia de Comércio do Grão- Pará e Maranhão que, segundo Chambouleyron, (2011b) tinha a função de “estimular o comércio por meio do incentivo ao plantio e exploração dos produtos que, àquela altura, julgavam-se mais lucrativos no comércio com o Estado do Maranhão e Pará” (p. 95).

3.2.3. Fatores de crise e transição para o sistema agrário seguinte

O sistema agrário entrou em crise devido a uma epidemia de varíola. Esta doença levou Antônio Azevedo ao falecimento em uma de suas viagens para Belém. A doença chegou à ilha através de suas roupas que foram enviadas a então viúva Antonia Azevedo que contraiu a doença e também morreu29. Após a morte de Antônio e Antonia, os escravos

migraram para outras ilhas de Abaetetuba30.

Os colonos e escravos demoraram a perceber a varíola como uma doença grave isso levou muitos deles ao falecimento. Segundo um morador:

Começou a morrer e eles não sabiam o que era. Aí adoecia uma [pessoa] e dava febre. Antes tinha uma doença, a malária, que chamavam de empaludismo. [...] então, quando bateu a varíola eles pensavam que poderia ser assim, malária né e o

29 Antónia Azevedo foi sepultada na própria ilha em um cemitério construído por seu filho (Armínio Azevedo).

Neste cemitério foram também sepultados escravos e outras pessoas que moraram com Armínio Azevedo.

povo não ia se tratar. Então, o máximo que durava era um mês, 10 dias, morria logo o cara. Aí com isso, morreu muita gente. Quando o pessoal percebeu que era outra coisa pior, aí sim que o povo rasgou [saiu para outro lugar]. (Agroextrativista, 63 anos, 2017).

Os filhos dos colonos saíram da ilha com medo de contrair a doença31, com exceção de

Armínio Azevedo que passou a morar sozinho na casa grande. Os descendentes de Armínio Azevedo dizem que ele não saiu da ilha motivado por seu apego ao lugar. Ele se alimentava de caças, peixe e de rabo de vacas. Este colono morou sozinho durante um período de aproximadamente 10 anos. Durante esse tempo procurou levar pessoas conhecidas da ilha Grande de Joanes para morar com ele, porém todas as pessoas que iam para a ilha morriam de varíola com poucas semanas depois. Isso aconteceu com um total de três pessoas. Durante esse período a notícia se espalhou e viajantes mudaram sua rota de navegação. Antes passavam pelo furo do capim e depois passaram a viajar por áreas do mar distante da ilha.

O controle do território era a principal atividade realizada por Armínio durante o período que ficou sozinho na ilha. Foi construída uma estrada ao redor de toda a ilha que permitia a circulação com cavalo, através da qual Armínio não permitia que outra pessoa se instalasse facilmente. Aqueles que ele deixava permanecer tinha que seguir um conjunto de regras de acesso aos recursos, para poder permanecer na terra. Após esse período, surgiu na ilha um processo de recampenização quantitativa através da entrada de pessoas vindas de outros lugares e da mudança de lógica do uso dos recursos naturais pelos antigos colonos.