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2.5 GÊNERO

2.5.1 O Sistema Sexo/Gênero

O conceito tradicional de gênero o compreende como características psicológicas e culturais que marcam a diferença entre homens e mulheres, conforme o sexo biológico e reprodutivo. A dimensão cultural do gênero, em oposição ao seu aprisionamento à Biologia, foi enunciada em 1949, por Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo, obra na qual a autora afirmou que o ‘segundo sexo’ é uma metáfora da alteridade, da diferença representada pelo outro, ou seja, a ‘mulher’ é construída como ‘o outro’ do ‘Um’, o masculino Depois desse ensaio Beauvoir desnaturalizou o ser mulher, ao afirmar que “não se nasce mulher, torna-se”, diferenciando a construção do “gênero” de o “sexo dado” e, mostrando que não seria possível atribuir às mulheres certos valores e comportamentos sociais como biologicamente determinados, pois segundo ela:

Isso é admitir que a mulher de hoje é uma criação da natureza; cumpre repetir mais uma vez que nada é natural na coletividade humana e que, entre outras coisas, a mulher é um produto elaborado pela civilização; a intervenção de outrem em seu destino é original; se essa ação fosse dirigida de outro modo, levaria a outro resultado. A mulher não se define nem por seus hormônios nem por misteriosos instintos e sim pela maneira por que reassume, através de consciências estranhas, o seu corpo e sua relação com o mundo. (BEAUVOIR, 1967, p.494).

O trecho transcrito da obra de Beauvoir mostra que ela é a precursora do conceito de gênero, pois, apesar de não ter criado a palavra, ela estabeleceu os fundamentos do conceito como uma construção social o diferenciando de sexo como algo natural, biológico. O formulador da palavra e do conceito de gender foi Robert Stoller, em 1968. Contudo, seu conceito só prosperou depois de 1975, após o artigo, O tráfico de mulheres notas sobre a Economia politica do sexo, de Gayle Rubin (1975). No Brasil, o conceito de gênero expandiu- se a partir da tradução do artigo de Joan Scott intitulado: Gênero uma categoria útil de análise, publicado no início da década de 1990.

Segundo Miguel (2015, p.25), Beauvoir “[...] abriu caminho para a discussão a respeito de uma epistemologia feminista distinta de uma epistemologia dominante, masculina.” A divisão sexo/gênero funcionou como uma espécie de base fundante da política feminista partindo da ideia de que o sexo é natural e o gênero é socialmente construído como algo que se impõe à mulher assumindo assim um aspecto de opressão.

Gênero passou a ser concebido como efeito da linguagem, como produção discursiva inscrita em uma rede complexa de relações de poder, segundo Scott (1995). As relações de poder impõem-se aos sujeitos de forma sutil, através de uma complexa e difusa rede de tecnologias e de sistemas disciplinares, constituindo-se o que Foucault (1996) chamou poder disciplinar: poder e saber – entrelaçados – estabelecem normas para a constituição dos sujeitos, sustentando determinados modos de dominação. Essa rede opera através de discursos e de práticas, destacando-se aqui os discursos e as práticas que normalizam e normatizam não somente os modos possíveis de existência singular quanto os modos possíveis de existência social para homens e para mulheres.

No entendimento de Scott (1995), gênero é uma categoria de análise que excede, portanto, a relação masculino/feminino, homens/mulheres, servindo para dar visibilidade a complexos processos culturais e redes de relações de poder que demarcam a articulação (e não a simples justaposição) entre diferentes vetores de opressão, tais como raça/etnia, classe, nacionalidade, religiosidade e sexualidade. Segundo essa perspectiva teórica, gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos; é uma forma primária de dar significado às relações de poder; um campo primitivo dentro do qual, ou por meio do qual, se articula o poder. O gênero fornece um meio de decodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre várias formas de interação humana. Ao enfatizar a dimensão relacional entre as diversas formas de interação humana, a definição de Scott (1995) trouxe para o campo dos estudos acadêmicos e científicos uma importante ferramenta para questionar relações de poder. O termo gênero possibilita identificar “construções culturais”, ou seja, a criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres, bem como às origens sociais das suas respectivas identidades subjetivas (SCOTT, 1995, p. 75).

Historicizando as abordagens das analises de gênero, Scott (1995, p.8) cita três posições teóricas que nortearam os/as historiadores/as. A primeira abordagem explica as origens do patriarcado, concentrando sua atenção na subordinação das mulheres e na explicação da “necessidade” de o macho dominar as mulheres. A segunda situa-se no seio de uma tradição marxista e procura um compromisso com as críticas feministas buscando a origem da dominação masculina através da história. E, finalmente, a terceira, dividida entre o pós-estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas das relações de objeto, inspira-se nas várias escolas de psicanálise para explicar a produção e a reprodução da identidade de gênero do sujeito.

patriarcado e sobre as teorias marxistas. Para ela, as primeiras chegaram a respostas essencialistas e biologizantes sobre a opressão das mulheres, uma vez que se limitaram a explicar a opressão como consequência da reprodução e da sexualidade, além de essas teorias não explicarem o que a desigualdade de gênero tem a ver com as outras formas de desigualdades. De acordo com Cruz (2007, p.137), Scott critica as feministas marxistas porque elas estão presas à causalidade econômica e não explicam como o patriarcado se desenvolve fora do capitalismo, além de haver, por parte do marxismo, uma tendência a considerar o gênero um subproduto das estruturas econômicas cambiantes. Cruz acrescenta que ambientes acadêmicos dominados por essas teorias não aceitam uma história da mulher que fosse concebida como um estudo das lutas femininas pela igualdade de direitos políticos, sociais ou econômicos, pois não a consideram como uma verdadeira classe social.

Corroborando com Scott (1995), Machado (2000, p.5) entende gênero como uma categoria engendrada e classificatória. Engendrada porque se refere ao caráter fundante da construção cultural das diferenças sexuais, e classificatória porque, em princípio, pode metodologicamente ser o ponto de partida para desvendar as mais diferentes e diversas formas de as sociedades estabelecerem as relações sociais entre os sexos, e circunscreverem cosmologicamente a pertinência da classificação de gênero.

O conceito de gênero como culturalmente construído, distinto de sexo, como naturalmente adquirido, formaram o par sobre o qual as teorias feministas inicialmente se basearam para defender perspectivas “desnaturalizadoras” sob as quais ocorria, no senso comum, a associação do feminino com fragilidade ou submissão, e que até hoje serve para justificar preconceitos. O par sexo/gênero serviu às teorias feministas até meados da década de 1980, quando começou a ser questionado. Butler (2015) critica as dicotomias que a divisão sexo/gênero produz contribuindo para o desmonte da ideia de que sexo é natural e gênero é construído. A autora afirma que, “[...] nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino [...]” (BUTLER, 2015, p. 29), e enfatiza que o sexo e o corpo também são construídos socialmente assim como o gênero. Nesse caso, aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como um dado construído, determinado culturalmente, seria aceitar também que o gênero expressaria uma essência do sujeito. Para Butler, “Beauvoir diz claramente que alguém se torna mulher, mas sempre sob uma compulsão cultural a fazê-lo. E tal compulsão não vem do ‘sexo’. Não há nada em sua explicação que garanta que o “ser” que se torna mulher seja necessariamente uma fêmea.” (BUTLER, 2015, p.29).

A identidade é colocada na berlinda por Butler que advoga não existir uma identidade de gênero por trás das expressões de gênero, e que a identidade é performativamente

constituída. Trata-se de uma problemática ontológica e epistemológica, que exige imperativamente outra abordagem para que se possam enfatizar, devidamente, as abordagens politica e estão envolvidas. Para refletir sobre os efeitos dessa desconstrução, é fundamental entender desconstrução não como desmonte ou destruição.

Atualmente, as discussões sobre o conceito de gênero e suas interfaces com as diferentes esferas da vida social vêm se tornando uma temática cada vez mais frequente tanto no âmbito acadêmico-científico quanto na pauta dos movimentos sociais organizados, não sendo indiferentes a isso os estudos sobre sindicalismo docente. Longe de tratar-se de um campo estanque e consensual, os estudos sobre gênero configuram-se como um cenário em que se revelam a complexidade e a polissemia que permeia a discussão.

Conforme destaca Louro (2003), diversas perspectivas teóricas e epistemológicas podem ser encontradas na literatura científica sobre gênero, bem como diferentes leituras e versões do seu processo histórico de construção e consolidação. Observar a realidade alicerçada na categoria de gênero implica prestar atenção às relações de poder que se desenvolvem na sociedade e estão presentes nas construções históricas, culturais e sociais presentes na determinação do masculino e do feminino. Trata-se das representações simbólicas das diferenças sexuais, que determinam os papéis social e econômico desempenhados por homens e mulheres que designam seu espaço na sociedade. São essas relações de gênero que impõem as relações de poder.