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e Humanas, especialmente para a Sociologia. Ele representa um elemento central na vida em sociedade, pois estrutura a composição psicológica das pessoas e o ciclo de suas atividades diárias. Nele, estão ligados diversos aspectos da existência humana, como a história, as condições materiais da vida, as ideologias, a religião, as relações de gênero, as relações de poder e a divisão sexual do trabalho. Para o filósofo Bernard Charlot (2014, p.32), “A espécie humana não existiria, com toda a sua especificidade, se não trabalhasse e, graças a esse trabalho, humanizasse a natureza, construísse um mundo humano e mudasse a própria espécie e suas condições de sobrevivência.” Karl Marx foi um dos principais teóricos do trabalho, para ele o trabalho é,

[...] antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio. (MARX, 2013, p.517; acréscimo no original). Na sua teoria, o processo de trabalho ocupa um posto muito importante e tem um aspecto duplo: o de transformação material e o de valorização do capital. Marx chama de práxis esse processo pelo qual o homem transforma a natureza e, nessa ação, transforma-se a si mesmo. No pensamento econômico de Marx, o trabalho tem de ser tomado com referência a alguma coisa, desvinculando-se da sua utilidade prática imediata. Sua importância, nesse caso, refere-se à maneira como pode se encaixar em um sistema mais amplo, que é o processo de produção material da existência no capitalismo.

Em sua raiz etimológica, a palavra “trabalho” vem do latim tripalium e está associada a um antigo instrumento de tortura constituído de três madeiras bastante afiadas. Nesse sentido do termo, o conceito de trabalho esta relacionado à tortura e ao sofrimento diário necessário à sobrevivência da humanidade. O conceito inicial de “trabalho” está atrelado a “labor”. Em A condição humana, Hanna Arendt (2007) informa que “labor” e “trabalho” não querem dizer a mesma coisa quando são analisados linguística e historicamente. Segundo a autora, todas as línguas europeias tinham palavras distintas para se referirem ao labor e ao trabalho. O primeiro termo tem a conotação de dor e atribulação e está ligado às atividades desenvolvidas com o corpo para a subsistência da humanidade. Para Arendt (2007),

inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem sujeitos às necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade. [...] Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão de obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições da vida humana. Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano. (ARENDT, 2007, p. 94-95; suprimimos).

No mundo antigo, as ações do labor ficavam restritas ao mundo privado, doméstico, e, geralmente, eram desenvolvidas por escravos domésticos e serviçais encarados como animal laborans13. Essas ações eram consideradas parasíticas, improdutivas, não-qualificadas, uma vez que não enriqueciam o mundo com a produção de coisas duráveis que serviam para serem acumuladas e, portanto, para produção de riquezas. Exemplos disso são as atividades ligadas à sobrevivência do grupo: como a agricultura de subsistência, os cuidados com os animais, com a casa e com a prole. Já o trabalho, por sua vez, é desenvolvido pelo homo faber14, este trabalha sobre materiais duros e fabrica uma infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano. O trabalho, desde sempre, esteve ligado à esfera pública, às atividades produtivas e qualificadas desenvolvidas com as mãos, na fabricação de bens acumuláveis responsáveis pela produção de riquezas. Em resumo, Arendt (2007, p.98) afirma que

[...] a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo contém, embora eivada de preconceito, a distinção mais fundamental entre trabalho e labor. Realmente, é típico de todo labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido. Com o passar dos anos, as diferenças teóricas entre “trabalho” e “labor” foram sendo encobertas, e esses termos estão sendo utilizados, atualmente, como sinônimos. No entanto, é importante lembrar que várias línguas espalhadas pelo mundo continuam a afirmar e conservar suas diferenças, especialmente quando se levam em conta quem produz, a durabilidade, a finalidade e a localização da coisa produzida. As diferenças de uso dessas palavras dão pistas sobre a desvalorização das atividades ligadas ao cuidar e à manutenção da vida, ambos relativos à esfera privada, e que prevalecem até os dias atuais, especialmente

13 O labor corresponde ao processo biológico do corpo. São as atividades que asseguram a manutenção da espécie e apontam para a proximidade do ser humano com os outros animais, ação que Arendt vincula ao termo animal laborans.

14 Homo faber - conceito do ser humano como ser capaz de fabricar ou criar com ferramentas e inteligência. O trabalho em si não está contido no processo vital, mas diz respeito ao homo faber, aquele que cria coisas com base em elementos naturais que se colocarão entre ele e o mundo natural.

quando se trata do trabalho desenvolvido pela mulher. Isto faz entender um dos significados do que Simone de Beauvoir (1967) quis dizer em O segundo sexo sobre “a mulher é presa da espécie”, pois, na atual sociedade, em nome da liberdade do homem, a mulher fica presa às atividades de manutenção do lar, aos cuidados relativos às pessoas doentes da família, bem como à concepção, aos cuidados e à educação dos filhos.

Segundo Arendt (2007), as atividades ligadas ao “labor” são desvalorizadas porque prendem o ser humano à natureza, o escraviza à necessidade, pois se trata de atividades essenciais à sobrevivência da espécie, e é por este motivo que filósofos como Platão e Aristóteles acreditavam que os seres humanos que trabalhavam nas lavouras, mesmo livres, equiparavam-se aos escravos. Para esses filósofos, os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade. Ou seja, a liberdade consistia em se livrar dos trabalhos sujeitos às necessidades da vida. No caso da vida privada, doméstica, os homens se livram dos trabalhos domésticos e “outorga” esse papel social à mulher.

Nas discussões sobre “trabalho” e “labor” ficou claro a relação direta que estes têm com o trabalho produtivo e o improdutivo. O primeiro está ligado à esfera pública e o segundo à esfera privada, doméstica. E não é coincidência que na divisão sexual do trabalho os homens desempenham as atividades ligadas à produção de bens e riquezas relacionadas ao público e as mulheres fiquem presas a atividades inerentes ao lar e ao cuidar, relativas ao espaço doméstico, privado.

Segundo Kergoat (2003), as relações sociais estabelecem tarefas e atribuem papéis sociais baseados no sexo biológico para homens e mulheres. A distribuição e a atribuição de tarefas são denominadas de divisão sexual do trabalho, pois a atribuição de papéis sociais é historicamente determinada e diferente nas várias sociedades. A divisão sexual do trabalho garante aos homens prioridade nas atividades produtivas relacionadas às ocupações de forte valor social agregado (como comércio, indústria, empreendimentos e política) e às mulheres na esfera reprodutiva (atividades relacionadas a cuidados e afazeres domésticos). Essa divisão repercute nos cargos e funções ocupados pelas mulheres e em seus rendimentos, já que a elas são destinadas principalmente tarefas que remetem a cuidado e serviços que são menos valorizados socialmente. Apesar de a sociedade continuar afirmando que homens e mulheres são iguais, observa-se que no trabalho essa suposta igualdade é descartada.

Para Giddens (2005, p.317-321), as três principais formas de desigualdade em relação ao papel das mulheres no trabalho são: a segregação ocupacional (horizontal e vertical), a disparidade salarial e a concentração nos empregos de meio turno. A segregação ocupacional

é baseada nas diferenças construídas socialmente entre os sexos que aprisionam homens e mulheres em um tipo específico de trabalho; nessa concepção existem trabalhos para homens e trabalhos para mulheres. A segregação ocupacional horizontal confina a grande maioria das mulheres em guetos mal remunerados, desqualificados ou semiqualificados, as mulheres são as mais afetadas pela informatização do setor terciário, conforme afirma Hirata (2002, p.202), sem contar que, na maioria das vezes, esses trabalhos permitem à mulher conciliar as funções de dona de casa com as de trabalhadora. Esses postos de trabalho são considerados trabalhos de mulher, porque são relacionados aos atributos femininos, geralmente ligadas “às qualidades intrínsecas e naturais da mulher” ao cuidar. A segregação ocupacional vertical confina as mulheres em cargos menos privilegiados com um pequeno grau de autoridade e poucas oportunidades de progresso, enquanto os homens ocupam postos de maior poder e influência.

Uma das consequências da segregação ocupacional é a disparidade salarial. Várias/os pesquisadoras/es, entre eles/as Saffioti e Souza-Lobo, provaram por meio de suas pesquisas que, mesmo desenvolvendo atividades idênticas, homens e mulheres recebem salários diferentes. O Observatório Brasil da Igualdade de Gênero tem em sua página na internet um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) sobre as desigualdades e as diferenças salariais relacionadas a gênero e etnia, o qual mostra que, apesar do recente crescimento econômico e das políticas destinadas a reduzir as desigualdades, as diferenças salariais relacionadas a gênero e etnia continuam sendo significativas nos países latino- americanos. Segundo essa pesquisa, no Brasil, os homens recebem 30% a mais que as mulheres de mesma idade e nível de instrução (HOMENS..., 2009).

Muito mais procurado pelas mulheres do que pelos homens, o trabalho de meio turno tem a finalidade de ajudar a mulher a conciliar as tarefas domésticas do lar com o trabalho. Entretanto, a aparente positividade da flexibilização do trabalho apresenta como desvantagens os baixos salários, a insegurança no emprego, o maior número de informatizações e oportunidades limitadas de ascensão na carreira. Esse tipo de trabalho deixa evidente que a grande maioria dos homens não ajudam suas companheiras nos afazeres de casa e nos cuidados com os filhos, sacrificando, em muitos casos, a vida profissional das mulheres que se veem como meras ajudadoras dos homens.

Conforme Helena Hirata (2002, p.218), “[...] o que realmente está em jogo na divisão sexual do trabalho são as relações de poder e de autoridade entre homens e mulheres que parece, aqui, desvendar o discurso dominante sobre tarefas femininas”. Complementando esse pensamento, Souza-Lobo (1996) afirma que a divisão sexual do trabalho traz embutida uma

hierarquia construída socialmente entre o sexo masculino e o feminino e que esta se apresenta como natural. Entretanto, a hierarquia de gêneros na sociedade não funda a divisão sexual do trabalho, esta se constrói como estratégia de gestão da força de trabalho, através de representações de linguagem do capital, tanto quanto como estratégias de resistência das mulheres e dos homens nas relações com o trabalho e em suas práticas sociais.