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1.2 Língua, enunciado e gêneros do discurso: a concepção dialógica de Bakhtin

1.2.1 A situação do enunciado em Bakhtin

Bakhtin (2003) apresenta o enunciado e seus tipos relativamente estáveis, que ele chamou de gêneros do discurso, como correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem. Mesmo considerando a possibilidade de se fazer estudos linguísticos com base apenas no sistema da língua (análise das estruturas gramaticais, por exemplo), Bakhtin concebe a língua como um fenômeno puramente social, sendo o enunciado, isto é, o texto, uma “unidade real do fenômeno da língua” ou ainda “uma unidade real da comunicação discursiva” (2003, p. 269) sendo que, segundo ele, todo enunciado se manifesta por meio de um gênero.

Os gêneros do discurso surgem da necessidade que os falantes/escreventes, isto é, produtores de textos, têm de interagir com os outros para atender aos propósitos da comunicação discursiva. Para Bakhtin, diferentes gêneros do discurso pressupõem diferentes objetivos e projetos dos falantes ou escreventes. Contudo, os gêneros não se apresentam sozinhos, individualizados na cena discursiva, ao contrário, no processo de comunicação, os gêneros aparecem amalgamados porque “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (2003, p. 272). Para Bakhtin, os limites de cada enunciado são definidos pela alternância dos sujeitos do discurso no ato de interação. Nessa perspectiva, Bakhtin assevera que o discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e garante que

Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva do outro ou, por último, uma ação responsiva nessa compreensão). (2003, p. 275).

Nesse sentido, Bakhtin aponta três elementos ou fatores que garantem a inteireza e dissociabilidade do enunciado no processo discursivo: 1) exauribilidade do objeto e do sentido – aspectos semânticos relativos ao tema, que se diferem em cada gênero de acordo com o campo a que pertence; 2) projeto de discurso ou vontade de discurso do falante – intenção discursiva do falante ou escrevente, que determina o todo do enunciado, o seu volume e as suas fronteiras. Essa intenção determina tanto a própria

escolha do objeto quanto seus limites e a sua exauribilidade semântico–objetal, quanto a própria forma de manifestação do gênero. E, por fim, 3) formas típicas composicionais e de gênero do acabamento - a vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero do discurso. Todos nós adquirimos, junto com a língua, um inesgotável repertório de gêneros do discurso que dominamos de forma habilidosa, mas que, por serem mais padronizados, alguns, e mais plásticos e flexíveis, outros, dependem da disposição do falante/escrevente para adequá-los à esfera da comunicação, às restrições do campo, pela escolha de um estilo:

A diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes em função da situação, da posição social e das relações pessoais de reciprocidade entre os participantes da comunicação: há formas elevadas, rigorosamente oficiais e respeitosas desses gêneros, paralelamente a formas familiares, e além disso de diversos graus de familiaridade, e formas íntimas (estas são diferentes das familiares). Esses gêneros requerem ainda um certo tom, isto é, incluem em sua estrutura uma determinada entonação expressiva (2003, p. 283-4).

Ainda a despeito dos problemas que se relacionam ao emprego do enunciado por meio de um gênero do discurso, Bakhtin chama a atenção para o fato de não existir ainda (e possivelmente nunca existirá) uma nomenclatura segura e definitiva para os diversos gêneros do discurso, orais ou escritos, conforme discutimos acima, dada a sua natureza plástica e às múltiplas formas de interação humana, de uso da língua, nas diversas esferas de produção e circulação de sentidos. Por isso mesmo, há, igualmente, limites para o emprego dos gêneros, assim como possibilidades de aprendizagem dos gêneros em qualquer fase da vida de um indivíduo. A esse respeito, Bakhtin assim se expressa: “Muitas pessoas que dominam magnificamente uma língua sentem amiúde total impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não dominam na prática as formas de gênero de dadas esferas” (2003, p. 284). E, complementa: “Quanto melhor dominamos um gênero tanto mais livremente o empregamos” (idem ibidem)4.

Por fim, lembremos ainda que para Bakhtin o enunciado, os gêneros do discurso, tal qual sua representação sobre o signo linguístico, presta-se como uma “arena onde se desenvolve a luta” (2004, p. 46) pela prevalência dos valores ideológicos de cada

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Nos próximos capítulos veremos o quanto as APT presentes nos LDEM se distanciam dessas afirmações de Bakhtin, o que nos leva a concluir que a produção de textos nas salas de aula do EM não fornecem as condições necessárias e suficientes para que o aluno do EM se torne um produtor de textos autênticos.

produtor de textos. E, que o processo de produção de textos se dá por relações de intertextualidade e interdiscursividade, já que, nas palavras do autor (2003, p. 297) “cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo”, afinal, “cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva” (idem ibidem).

Na próxima seção apresentamos, como contraponto aos trabalhos de Marcuschi e de Bakhtin, uma taxionomia das unidades do discurso, por Dominique Maingueneau, com o sentido apenas de implementar a compreensão sobre o nosso objeto de estudo.

1.3 Dominique Maingueneau e as unidades do discurso.

O conjunto dos trabalhos de Maingueneau leva-nos a uma reflexão sobre o lugar dos gêneros do discurso entre as outras unidades de discurso por ele delineadas. Desta forma, nesta seção procuramos compreender os gêneros de discurso abordados pela noção de competência por ele descrita e traçar uma taxionomia das unidades de discurso, a partir dos trabalhos Análise de textos de comunicação (2005) e Cenas da enunciação (2006).

1.3.1 Uma competência genérica.

Maingueneau (2005) apresenta o conceito de competência não numa perspectiva cognitivista como o fez Chomsky, mas como “leis do discurso” que regem a comunicação verbal. Para ele as leis do discurso se aplicam a toda atividade verbal e são as especificidades de cada gênero do discurso. Muda-se o tom de uma conversa sobre um mesmo tema na troca de interlocutores, pelas imagens recíprocas que se criam das posições sociais e ideológicas dos interlocutores. Um conferencista deve saber o exato momento em que se pode fazer uma pausa para contar um chiste, mudando igualmente o tom com que vinha proferindo a sua palestra. Ofender o público nesta situação pode ameaçar a face positiva sua e do público, ao passo que se tem uma maior liberdade para isso se se tratar de uma peça em um teatro, por exemplo.

Para Maingueneau, todos os falantes têm uma competência comunicativa, que se constitui pelo domínio das leis do discurso e pela capacidade de lidar adequadamente com os gêneros do discurso: produzir e interpretar enunciados de maneira adequada às