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1.3 Dominique Maingueneau e as unidades do discurso

1.3.2 Uma taxionomia das unidades de discurso

1.3.2.4 Unidades tópicas e unidades não-tópicas

Maingueneau (2006) apresenta uma reflexão crítica sobre o estatuto do conceito de formação discursiva (FD) que, para ele, apesar de ser uma noção ainda bastante produtiva no campo teórico da Análise de Discurso francófona (AD) “conheceu um claro declínio a partir dos anos oitenta” do século passado (p. 9). Esse declínio não levou necessariamente o conceito a um apagamento, mas seu estatuto ainda não é muito claro. Uma possível explicação para a lassidão do conceito de FD é o fato de a AD ser um campo de pesquisa relativamente recente e que agrupa – e se constitui de, portanto – correntes muito diversas. Para Maingueneau (2006) a AD ainda sofre um déficit de

legitimidade justamente pela heterogeneidade de seus conceitos e procedimentos. Faltam à AD tanto certa “indulgência” social, como a que atribuem às disciplinas aplicadas (técnico-científicas), quanto lhe faz falta um gesto fundador, como o de fundação da Sociologia e da Linguística (Durkhein e Saussure, respectivamente).

O conceito de FD abriga duas outras categorias que se privilegiam em AD, a noção de posicionamento, isto é, construção e gestão de uma identidade no interior de um campo discursivo, e a noção de gênero, de texto ou de discurso, a depender da tendência teórico-metodológica, que vem a ser um “dispositivo de comunicação verbal em uma dada sociedade” (MAINGUENEAU, 2006, p. 10).

Esse autor francês aponta uma dupla paternidade para a FD, a da Arqueologia do Saber, de Michel Foucault (1969/2005) e a reconfiguração feita daí por Michel Pêcheux (1975/1997).

Segundo Maingueneau, em Foucault o conceito de FD goza de certa fluidez ou ambivalência que, ao longo da obra, sofre uma contínua transformação que leva o leitor a interpretá-lo ora como um conjunto de “regras”, ora como “dispersão” (de discursos). Vista por esse ângulo, a FD se constitui de um verdadeiro oxímoro (um sistema de dispersão), o que, por certo, não permite uma interpretação definitiva.

Já em Pêcheux (1975/1997) a FD aparece associada à rede conceitual do althusserianismo (marxista) a que Pêcheux se filia, relacionado às noções de “formação social” e de “formação ideológica”. Em Pêcheux (1975/1997, p. 160) encontramos a seguinte definição de FD:

Chamamos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que

pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um

sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.).

Maingueneau (2006, p. 11-12) chama a atenção para o fato de nessa definição de FD apresentada por Pêcheux aparecer ao mesmo tempo a noção de “posição/posicionamento” e a noção de gênero de discurso, pelos exemplos apresentados dentro dos parênteses:

Os parênteses abertos no trecho extraído de Pêcheux (“articulados sob a forma de...”) podem, a priori, ser objeto de uma dupla leitura, segundo se dá ênfase “àquilo que pode e deve ser dito” ou “articulado sob a forma de uma arenga”. Na primeira leitura, a menção a diversos gêneros é acessória; na segunda, o discurso não pode ser “articulado”

senão por meio de um gênero de discurso. (MAINGUENEAU, 2006, p. 12).

Segundo ainda Maingueneau, o itálico que incide sobre “o que pode e deve ser dito” incita o leitor a optar pela primeira leitura, isto é, a que deixa em segundo plano a problemática do gênero de discurso. Essa interpretação de Maingueneau está coerente com os preceitos teóricos e procedimentos metodológicos da AD, que trabalham com a opacidade da língua(gem) e divisam o texto (não transparente, portanto) apenas como o lugar de manifestação do discurso.

Vemos, assim, que a noção de FD é afetada desde a origem por uma ambivalência que gira em torno das noções de posicionamento e de gênero de discurso, e tem por herança o soldo de ser inscrita no interior desses dois campos teóricos, de Foucault, primeiramente, e de Pêcheux, em seguida. Ambivalência pela dupla paternidade: na primeira, de Foucault, sustentando corpora de estudos da história das ciências sociais, e na segunda, de Pêcheux, na luta política, travada materialmente através da utilização dos gêneros discursivos de um determinado campo (panfleto, programa etc.).

Para Maingueneau não há um estatuto claro no emprego do termo formação discursiva nos trabalhos que atualmente se filiam ao campo teórico da AD. “Confiando em minha experiência de leitor, na maioria das vezes emprega-se ‘formação discursiva’ ‘na falta de uma expressão melhor’, nas situações em que o analista encontra um conjunto de textos que não corresponde a uma categoria clara” (2006, p. 13).

Para desfazer essa ambiguidade do termo, em torno das noções de posicionamento e de gênero de discurso, Maingueneau distingue dois grandes tipos de unidades de discurso, as unidades tópicas e as unidades não tópicas.

1.3.2.4.1 As unidades tópicas.

Dentre as unidades tópicas destacam-se as unidades territoriais e as unidades transversas.

As unidades territoriais caracterizam-se como espaços discursivos já pré- delineados pelas práticas verbais (que são, primeiramente, sociais). Nelas distinguem-se claramente os tipos de discurso e os gêneros de discurso. Segundo Maingueneau (2006) os tipos de discurso se relacionam a certos setores de atividades da sociedade e se constituem por e englobam os gêneros de discurso. Os tipos são uma noção

heterogênea, basicamente um agrupamento de gêneros regido por duas lógicas: “a do copertencimento a um mesmo aparelho institucional e a da dependência a um mesmo posicionamento” (p. 15). Maingueneau exemplifica dizendo que “não é a mesma coisa falar de ‘discurso hospitalar’ e de ‘discurso comunista’” (idem). Segundo ele, o discurso hospitalar existe em função do agrupamento de gêneros de discurso que se originam, circulam e funcionam em um hospital (receitas médicas, consultas, prescrições etc.); já unidades como “discurso comunista”, “discurso racista”, “discurso feminista” etc. identificam posicionamentos ideológicos, ora revelando a identidade de sujeitos que se filiam a um partido político, ora identificando os sujeitos por posições que assumem na luta ideológica que travam na vida em sociedade.

Os gêneros de discurso se inscrevem na lógica do funcionamento do aparelho, enquanto que os tipos de discurso demarcam posições em territórios simbólicos contra outros posicionamentos. Contudo, mesmo essas fronteiras não são fixas, já que o discurso (ideológico) de um partido político, por exemplo, pode funcionar como um aparelho constituído por gêneros de discurso, materializados no formato de programas, panfletos, anúncios publicitários etc.

Já as unidades transversas se caracterizam por “atravessarem” múltiplos gêneros de discurso, são registros que se definem por três critérios: os registros linguísticos (tipologias que se baseiam nos traços enunciativos e/ou estruturais dos gêneros); os registros funcionais, que são as tipologias que insistem em classificar os gêneros em função da predominância de certa função da linguagem, como a clássica tipologia de Jakobson, dentre outras; e, por fim, os registros comunicacionais, unidades definidas por uma combinação de traços, de acordo com a situação de comunicação (traços linguísticos e enunciativos). Por esse critério, costumam classificar os gêneros como pertencentes a um discurso de divulgação científica, discurso pedagógico, discurso de humor (cômico), dentre outros.

1.3.2.4.2 As unidades não tópicas.

As unidades não tópicas, por sua vez, não existem independentes, isto é, não são materializadas no formato de gêneros discursivos, não circulam socialmente por práticas verbais em uso na sociedade: são constructos teóricos. Constituem-se por procedimentos metodológicos dos pesquisadores e agrupam enunciados inscritos na história, o que as distingue das unidades transversas, por sua relativa imobilidade em

uma “sincronia”.As unidades não tópicas podem ser compreendidas pelas formações discursivas e pelos percursos.

Maingueneau (2006, p. 16) exemplifica o sentido aqui atribuído a formação discursiva da seguinte forma: é possível a um pesquisador agrupar um conjunto aberto de gêneros de discurso, de campos discursivos e de aparelhos sem a necessidade de constituição de uma fronteira adredemente pré-estabelecida. Unidades como “discurso ecológico”, “discurso colonial”, “discurso racista” etc. demarcam e são demarcados pela história, constituem-se de posicionamentos, mas não se encerram em um espaço discursivo socialmente estabelecido, a não ser o espaço elaborado pelo próprio pesquisador a partir da descrição de um conjunto de materiais, selecionados para constituição do corpus de sua pesquisa.

Já os percursos são procedimentos do pesquisador, quando este percorre o interior de um interdiscurso para agrupar unidades linguísticas e/ou textuais que, de certa forma, desestabilizam as fronteiras dessas unidades:

O pesquisador pretende, ao contrário, desestruturar as unidades instituídas definindo percursos não esperados: a interpretação apóia- se, assim, sob a atualização de relações insuspeitas no interior do interdiscurso. Tais percursos são, hoje em dia, consideravelmente facilitados pela existência de programas de informática que permitem tratar corpora muito vastos. Podem-se considerar os percursos de tipo formal (por exemplo, tal tipo de metáfora, tal forma de discurso relatado, de derivação sufixal...) (MAINGUENEAU, 2006, p. 21).

Feitas essas considerações inicias a despeito das bases teóricas que dão fundamento à nossa pesquisa, passamos, nas próximas seções, a tratar mais de perto do nosso objeto de análise, os livros didáticos do Ensino Médio e, neles, as atividades de produção de textos. Na seção 1.4, a seguir, propomos as atividades de produção de textos (APT) como uma prática discursiva inserida no interior de um gênero discursivo complexo que são os LDEM, segundo a perspectiva de Bakhtin, assumida neste trabalho.