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Capítulo 7 – O local de sepultura: ad sanctos e apud ecclesiam ou cemitério público?

7.1. A situação na Europa

Se na Antiguidade os cristãos mantinham os mortos fora das cidades, distantes do mundo dos vivos, temendo que regressassem para perturbar as suas vidas, sinais da coexistência entre ambos começaram a notar-se por volta do século V, e durante a Idade Média as igrejas tornaram-se, como diz Philippe Àries, no tipo de cemitério existente. Os fiéis acreditavam que ao ser-se enterrado o mais próximo possível dos túmulos dos santos ou das suas relíquias seriam por eles protegidos contra os perigos que se podiam encontrar no Além. Os enterros eram feitos em qualquer parte, tanto no interior das igrejas, como no claustro ou no espaço envolvente (ad sanctos e apud ecclesiam). Os sítios mais procurados eram os mais próximos das relíquias dos santos ou dos altares onde eram celebrados os ofícios divinos, mas estavam reservados aos mais ricos. Os defuntos mais pobres ficavam geralmente relegados ao adro da igreja e ao claustro ou a covas comuns. Em alguns locais também existiam cemitérios para se sepultarem os defuntos, mas estavam igualmente situados no meio das povoações.362

Todavia, na segunda metade do século XVIII, o crescimento demográfico que se vinha a sentir já desde o século anterior e a crescente urbanização de áreas rurais levaram à falta de espaço para enterramentos e a um constante revolver de sepulturas, tendo começado a surgir um pouco por toda a Europa queixas por parte de médicos,

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Ainda que vários concílios medievais tenham procurado proibir os enterros no interior das igrejas, excetuando apenas padres, bispos, monges e alguns leigos privilegiados, as práticas foram de outro sentido: ARIÈS, Philippe – Essais sur l’histoire de la mort…p. 29-32, 156-157; ARIÈS, Philippe – O Homem perante a morte – I, p. 41-66.

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pensadores e homens comuns sublinhando os adores fétidos emanados dos solos das igrejas, que “infetavam” o ar e contribuíam para a propagação de epidemias. A situação registada tantas vezes, em certos espaços, de ao abrir as sepulturas aparecerem restos de cadáveres ainda não consumidos na totalidade, parece tornar-se menos aceitável. Os enterros no interior das igrejas e no adro ou no interior das povoações começaram assim a tornar-se intoleráveis, pelo menos para os espíritos iluminados.363

A primeira tentativa para modificar o costume de enterrar nestes espaços ocorreu em França, com o decreto de 12 de Março de 1763, que proibia os enterros na cidade de Paris e visava criar novos cemitérios em seu redor. Mas só com o Decreto Real de 1776 foi estendida a todo o país a obrigação de se encerrarem todos os locais de sepultura no interior das cidades e construir cemitérios fora das mesmas.364 Todavia a implementação deste decreto não ocorreu em todos os locais ao mesmo tempo (com vários anos de diferença por vezes) e noutros não foi sequer aplicado devido a contestações populares. Só com a Revolução Francesa e a laicização da sociedade se conseguiu decretar definitivamente a proibição de se enterrar em igrejas ou noutro local dentro das povoações, através do decreto de 12 de Junho de 1804, mas que também encontrou resistência em vários locais. Até 1814, nos vários países subjugados pelo Império Francês, tentou-se implementar esta mesma lei, mas a oposição também se fez sentir e dificultou a sua aplicação.365

Por exemplo, na região da Provença, Michel Vovelle pôde perceber que na primeira metade do século XVIII a maior parte dos testadores escolhia o local de sepultura, elegendo as igrejas paroquiais ou conventuais, assim como capelas privadas, ficando, sobretudo para os pobres, o espaço cemiterial ao ar livre. Se alguns pediam

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ARIÈS, Philippe – Essais sur l’histoire de la mort…p. 33-34, 59; ARIÈS, Philippe – O Homem perante a morte – II, p. 214-220; QUEIROZ, José Francisco Ferreira - O ferro na arte funerária…p. 2.

364 O primeiro decreto tornava a missa e Ofício de Corpo Presente a única e última cerimónia religiosa pública, pois

não previa que o cemitério tivesse um caráter público, os acompanhantes do defunto não o deveriam acompanhar depois de terminadas as cerimónias na igreja. Este aspeto terá contribuído para a não aplicação do decreto. O clero e fábricas das igrejas dissuadiam a aplicação da lei, por achar que as epidemias não eram maiores do que noutros lugares, mas Philippe Àries questiona-se se não estariam antes preocupados com a perda de rendimentos devido à redução ou supressão dos acompanhamentos; Já o decreto de 1776 previa a criação de um cemitério dividido em dois espaços, um para as valas comuns e outro para as sepulturas cobertas por um monumento e destinadas àqueles que tinham direito de sepultura nas igrejas: ARIÈS, Philippe – O Homem perante a morte – II, p. 220-235; QUEIROZ, José Francisco Ferreira; RUGG, Julie – The development of cemeteries…p. 114-115.

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QUEIROZ, José Francisco Ferreira - O ferro na arte funerária…p. 3; QUEIROZ, José Francisco Ferreira; RUGG, Julie – The development of cemeteries…p. 115-116.

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para ser sepultados próximo de um altar ou de uma capela ao lado daquele santo por quem tinham uma devoção particular, ainda que por humildade, alguns ricos desejavam ser sepultados à porta das igrejas para serem pisados pelos vivos ou no cemitério junto dos pobres. Todavia, logo na segunda metade do século decresceu a atenção dada à escolha da sepultura. Em Marselha, sobretudo depois do decreto de 1776, aumentou significativamente o número de testadores que deixou de escolher o local de sepultura, uma vez que o cemitério era indicado como obrigatório. A lei, segundo Michel Vovelle, não fez mais do que acelerar uma mudança já em curso. Portanto, além da crise visível nas pompas barrocas, verificou-se também já neste período uma indiferença crescente em relação à sepultura.366 Em Paris a situação era idêntica, tal como aconteceu com o cerimonial e os pedidos de missas, as preocupações com a eleição da sepultura registaram uma descida ao longo do século XVIII e assistiu-se a ao abandono da igreja pelo cemitério.367

Em Espanha, a mesma tomada de consciência de que a acumulação de cadáveres nos locais sagrados os tornava focos de infeção surgiu em 1781, quando Carlos III proibiu também os enterros nas igrejas.368 Mas ainda em 1833 mais de metade das localidades espanholas não tinham um cemitério moderno. Em Inglaterra, já no século XVIII foram criados pequenos cemitérios afastados das igrejas, mas apenas na década de 1840 surgiram os cemitérios públicos a que todos teriam acesso. Em Itália, no último terço do século XVIII, foram fundados alguns cemitérios nas cidades maiores.369