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SOB O SIGNO DO OUTRO: UMA ONTOLOGIA NEGATIVA DO PASSADO?

Os problemas acima destacados poderiam ser driblados mediante a identificação com o outro: O historiador como etnólogo dos tempos passados (repudio do etnocentrismo ocidental)207. Se em Las Casas se intui certa proximidade com estas propostas, veremos mais adiante como não prosperou totalmente esta abordagem na Brevíssima. Três são as apostas teóricas que permitem a abordagem sob o signo do outro.

A primeira destas é a de Dilthey, a qual se afirma na Capacidade do espírito em se transportar para uma vida psíquica alheia. Num primeiro passo, a expressão atravessa o intervalo entre o interior e o exterior, para passar depois a transferir a imaginação para uma vida alheia, atravessando para isso o intervalo entre o si mesmo e o outro. Ao abolir a diferença entre o outrem de agora e o de outrora, se oblitera a problemática da distância temporal.)208. Considera-se aos outros como diferentes do passado. Fora um recurso pouco adotado por Las Casas, pois, como se viu, preferia a abordagem do Mesmo. Em ocasiões ele tenta se aproximar do Outro, e assim, nos expõe o raciocínio do cacique Hatuey de Cuba:

“ya sabéis cómo se dice que los cristianos pasan acá, y tenéis experiencia cuáles han parado a los señores fulano y fulano y fulano; y aquellas gentes de Haití (ques la Española) lo mesmo vienen a hacer acá. ¿Sabéis quizá por qué lo hacen?” Dijeron: “No, sino porque son de su natura crueles y malos.” Dice él: “No lo hacen por sólo eso, sino porque tienen un dios a quien ellos adoran y quieren mucho, y por habello de nosotros para lo adorar, nos trabajan de sojuzgar y nos matan.” Tenía cabe sí una cestilla llena de oro en joyas y dijo: “Veis aquí el dios de los cristianos: hagámosle si os parece

207

RICOEUR, Paul, op. cit, p. 250.

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areítos (que son bailes y danzas) y quizá le agrademos y les mandará que no nos haga mal.” Dijeron todos a voces: “Bien es, bien es.” Bailáronse delante hasta que todos se cansaron, y después dice el señor Hatuey: “Mira, como quiera que sea, si lo guardamos, para sacárnoslo al fin nos han de matar: echémoslo en este río.” Todos votaron que así se hiciese, y así lo echaron, en un río grande que allí estaba209.

Admitamos que quando Las Casas dá voz ao “Outro”, fica muito parecida com o “Mesmo”, ou melhor, como gostaria que fosse o Mesmo: ecos muito próximos na Ilha de Utopia ressoam na Ilha de Haiti ou Espanhola, onde votações democráticas decidem, como na Ilha do Não-lugar, eliminar o vil metal, talvez para ficarem livres do falso deus Bezerro de Ouro (Erasmo e Morus parecem estar também participando, “curtindo” a assembléia). A distância temporal se esfuma (o que gera uma nova aporia).

Uma segunda forma de tentativa de solução da aporia do Outro, é a noção de diferença: Individualização. (acontecimentos singulares) frente a conceitualização. O fato histórico deveria ser cingido como uma variante gerada por individualização das invariantes. Substitui-se a investigação do distante, como o temporal, pela do acontecimento caracterizado de maneira tão pouco temporal quanto possível por sua individualidade, a tal ponto que a alteridade do passado relativamente ao presente predomina sobre a sobrevivência do passado no presente210

.

Entendo esta técnica como uma forma de hiper-realismo do exótico, detalhando de forma tão minimalista que se possa esquecer o rasto que no presente fica desse passado.

209

LAS CASAS, Bartolomé de. Op. cit, p. 90-91.

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Jean Dumont, o historiador de nossos dias, perspicazmente leva-nos para um pitoresco mundo onde o combate à escravidão que Las Casas realiza não faz muito sentido:

Sensibilidades distintas a las nuestras: Por consiguiente, tal esclavitud-réplica, por lo demás muy limitada en cuanto a número y carácter, no era simplemente una pura explotación social, aunque, de todas formas, era esclavitud, lo cual tiene su importancia con respecto a la Controversia que nos ocupa. Para el español de la época y para el hombre mediterráneo en general, la idea de un destino de servidumbre aplicado a los indios no era tan poco habitual ni tan chocante como lo es hoy en día para nosotros, al menos si se trataba de una servidumbre transitoria y que intentaba ser moderada y paternal.211

Sem esquecer o testamento da Rainha Isabel, a Católica, as Leis de Burgos de 1512 e as Leis novas de 1542 assim como varias bulas papais, que condenam expressamente a escravidão dos índios, desmentem a Dumont. Entremos no estudo formal da obra lascasiana: Com certeza não era o distanciamento ou individuação o efeito de sentido que perseguia Las Casas, ainda que uma super ênfase hiper-realista na violência chegue às vezes a enfadar ao leitor erudito, mas nunca aos nobres e cortesãos e, sobre tudo, ao próprio príncipe, certamente interessados ou espantados pelos morbígenos relatos, sem aprofundar minimamente nos costumes ou formas de vida indígenas: Quando a curiosidade leva a melhor sobre a simpatia, o estrangeiro torna-se estranho212. Para os fins de Las Casas, um aprofundamento etnológico não é necessário nem desejável. Todavia este aparente vácuo no edifício retórico do dominicano é imediatamente aproveitado pelo exorcista de heterodoxos Menéndez Pidal, que ataca a Las Casas argumentando a falta de interesse deste nos nativos: o índio para Las Casas não tinha outro interesse que o de ser atropelado pelo

211

DUMONT, Jean, op. cit, p. 22-23.

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espanhol. A inclinação afetiva pelo desvalido como a esperaríamos em Las Casas, só a encontramos sob a forma de paixão violenta contra os espanhóis213.

Paradoxalmente, será Todorov, um estudioso das antípodas ideológicas de Pidal, que coincida plenamente com Pidal, no sentido de qualificar a relação de Las Casas com os índios como de uma mistura entre amor e ignorância: o postulado de igualdade acarreta a afirmação de identidade, e a segunda grande figura da alteridade, ainda que incontestavelmente mais amável, leva a um conhecimento do outro ainda menor do que a primeira.214No meu ponto de vista, questão esta do amor irrelevante para este assunto, quando o próprio Todorov reconhece o bom labor na defesa dos índios que realizara Las Casas. Para ser um bom defensor, às vezes o amor até atrapalha.

Como terceira forma de estudo do Outro temos a ontologia negativa do passado: Sociologia da historiografia. Desmascara-se a falsa pretensão do historiador de produzir história numa espécie de estado de não-gravidade sociocultural. Nasce a suspeita de que toda história com pretensão científica esteja viciada por um desejo de domínio (ideologia implícita), que eleva o historiador à condição de árbitro de sentido. (...) Trata-se da diferença entendida como afastamento, mas que permanece tão intemporal como a diferença de modificação. Esta deconstrução provoca uma limpeza das intenções totalizantes da história, somada a um exorcismo do passado substancial e ao abandono da

213

PIDAL, Menéndez, in: BRUIT, Héctor H. Bartolomé de las Casas e a simulação dos vencidos. São Paulo, Unicamp/ Iluminuras, 1995, p. 69.

214

TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.201.

idéia de representação, mas que não faz justiça ao que parece haver de passado positivo na persistência do passado no presente. Paradoxalmente agora o enigma fica mais opaco215

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Não se adivinha a intenção de Las Casas de inovar a Historiografia, se bem teve que gestar novas idéias diante das realidades com as quais se enfrentava. Na sua História das Índias, Bartolomé elabora um longo prólogo onde cita a Flávio Josef, Catão, Deodoro, Túlio, Tito Lívio, e especialmente a Bíblia. Las Casas se nomeia árbitro de sentido, especialmente na Brevíssima, porém jamais oculta as intenções e não se isenta nunca do confronto e a polemica. Pelo contrário pretende levar a voz de Deus, a voz que clama no deserto. Neste sentido ele resulta tão militante como qualquer profeta da deconstrução e igual a eles, livre da pretensão científica viciada: y hasta agora no es poderoso el rey para lo estorbar, porque todos, chicos y grandes, andan a robar, unos más, otros menos; unos pública y abierta, otros secreta y paliadamente. Y con color de que sirven al rey, deshonran a Dios y roban y destruyen al rey216.

Não consegue o afastamento, pelo contrario busca o desafio e encara os perigos de se enfrentar aos partidários da encomenda, e até corre o risco acadêmico de ser acusado de falta de isenção: não o preocupa isto ao Defensor dos Índios, que carece de tempo para cobrir as aporias que se abrem nos seus flancos, na sua luta incansável pelos Fracos. É sempre por alguma transferência do Mesmo ao Outro, em simpatia e em imaginação, que o Outro alheio se torna próximo217.

215

RICOEUR, Paul, op. cit, p. 253-254.

216

LAS CASAS, Bartolomé de. Op. cit, p. 175.

217

Como precursor da deconstrução, Las Casas, persegue incessantemente ao longo dos três livros da História das Índias contra-arrestar a versão do historiador oficial das Índias, Fernández de Oviedo, revelando com uma alta carga de ironia o que de ideológico têm os relatos deste:

Habrá hoy, de todos los vecinos que allí había, que estaba, como una piña de piñones de gente toda poblada, obra de cien personas y no sé si llegan a tantos. Este fructo ha salido y sale de la pacificación que dice Oviedo a cada paso, y los que de conquistadores se jactan, que nuestros españoles en nuestras Indias hacen; y es de ver cómo los encarece y sublima Oviedo, como quien ha hecho grandes hazañas, y todos son caballeros y gente noble, según él, los que a hacer estas obras acá pasan. Cierto, fueron hazañas y tan grandes y tan señaladas, que después que Dios crió a Adán y permitió en el mundo pecados, otras tales ni tantas ni con tan execrables y creo que inexplicables ofensas de Dios ni fueron hechas ni pudieron ser pensadas ni aun soñadas.218