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2 CONCEITOS BALISADORES

3.4 SOBRE A RELAÇÃO SOCIEDADE E ESTADO

A relação que intitula este subitem foi claramente descrita por Marx (2003) quando, após exaustiva pesquisa, concluiu que o Estado e as demais relações jurídicas não podem ser explicados a partir de si, nem tampouco via evolução geral do espírito humano. De outro modo, estes fenômenos sociais estão inseridos “nas condições materiais de existência de que Hegel [...] compreende o conjunto pela designação de ‘sociedade civil’” (MARX, 2003, p. 4). Em seguida, Marx afirma que a “a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política” (2003, p.4,5), afinal

na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relação de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. [...] O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o ser social que, inversamente, determina a sua consciência (2003, p.5).

Ao propor que as estruturas sociais inscrevem-se nas condições materiais da existência e que estas últimas conformam o ser social, Marx elabora um modo de pensar e entender o mundo que: a) percebe o caráter dinâmico das influências recíprocas entre estas esferas; b) pode ser utilizado para a compreensão de diversas sociedades, onde diferem as forças produtivas materiais. Argumenta-se com Lukács, ao comentar a novidade do pensamento de Marx, que esta postura deve ser entendida como

uma estrutura de caráter completamente novo: uma cientificidade que, no processo de generalização, nunca abandona esse nível (existência em-si) e que, não obstante, em cada singular adequação aos fatos, em cada reprodução ideal de um nexo concreto, examina continuamente a totalidade do ser social e desse modo sopesa continuamente a realidade e o significado de cada fenômeno singular; uma consideração ontológico-filosófica da realidade existente em si que não vaga sobre os fenômenos hipostasiando as abstrações, mas, ao contrário, se põe, criticamente e autocriticamente, no mais elevado nível de consciência, só para poder tomar cada existente na plena forma de ser que lhe é própria, que é específica propriamente deste (2010, p.21).

Seguindo mais adiante na marcha histórica, ainda no âmbito das relações entre a sociedade, o Estado e os modos de produção, contribuição relevante nos é ofertada por Gramsci (apud COUTINHO, 1981), que atualiza Marx. Este elegeu a economia como ponto de partida para sua construção teórica; o autor sardo traz como esfera fundamental de análise a política. Em sentindo amplo, Gramsci identifica a política com liberdade, com

universalidade, com toda forma de práxis que supera a mera recepção passiva ou a manipulação de dados imediatos e se orienta conscientemente para a totalidade das relações subjetivas e objetivas; é, pois, um processo em desenvolvimento vinculado necessariamente a uma realidade concreta.

Para Gramsci, como nos informa Coutinho:

Se ao processo de socialização da produção econômica corresponde um tendencial “recuo das barreiras naturais”, um maior âmbito de jogo em face da coerção das leis naturais, a correspondente socialização da política implica o que poderíamos chamar de “recuo (tendencial) das barreiras econômicas”, com a consequente ampliação da autonomia e do poder determinante da esfera política sobre o conjunto da vida social. Quanto mais se ampliar a socialização da política, quanto mais a sociedade civil for rica e articulada, tanto mais os processos sociais serão determinados pela teleologia (pela vontade coletiva organizada) e tanto menos se imporá a causalidade automática e espontânea da economia (1981, p. 76).

Assim, ao relacionar a infraestrutura econômica com a superestrutura, “Gramsci “descobre” uma lei que Lukács formularia sistematicamente anos depois: a “prioridade ontológica” de uma esfera em relação à outra [...] não implica absolutamente a ideia de uma hierarquia lógica ou causal eterna e fixa entre as esferas em questão” (COUTINHO, 1981, p. 77). O modo de articulação entre as duas esferas, o maior ou menor poder de determinação em sua ação recíproca, dependem, portanto, do tipo específico de Formação Social.

Importante aprofundar os conceitos gramscianos, sobretudo porque relacionam de forma intrínseca as dimensões delineadas, constituindo-se assim em instrumentos privilegiados de análise. É preciso reconhecer, como já assinalado, a importância da política e o papel preponderante que para o autor sardo é exercido pela vontade e pela ação na transformação da realidade, contrariando o determinismo vulgar e fatalista preponderante em sua época e, em outra direção, mas com as mesmas consequências, ainda mais visível na contemporaneidade.

Ao invés de, como os clássicos, identificar o Estado (sua gênese, função e estrutura) com o conjunto de aparelhos repressivos, o autor italiano dialoga com a realidade do seu tempo, quando os processos de socialização da política são intensificados e, por conseguinte, uma maior complexidade se apresenta. É a partir desse novo olhar que Gramsci nos apresenta, na Teoria Ampliada do Estado, o conceito de “sociedade civil”, e os sujeitos coletivos de massa, como a esfera de mediação entre a infraestrutura econômica e o Estado em sentido restrito, o que significa o reconhecimento de novas determinações para o agir estatal. A “sociedade civil” e os “aparelhos privados de hegemonia” (escolas, Igrejas, sindicatos, etc.)

são, portanto, organismos de participação política voluntários, que não se caracterizam pelo uso da repressão. A hegemonia é dotada, pois, de uma base material própria, um espaço autônomo e específico de atuação. Enquanto a sociedade política tem seus portadores materiais nos aparelhos repressivos de Estado, os portadores materiais da sociedade civil são os “aparelhos privados de hegemonia”. Este fato novo – a nova determinação do Estado – não nega ou elimina as determinações registradas pelos clássicos, mas representa um enriquecimento da teoria marxista.

Com a descoberta dos “aparelhos privados de hegemonia”, a teoria ampliada do Estado em Gramsci distingue duas esferas essenciais no interior das superestruturas: sociedade política (ditadura ou aparelho coercitivo) e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social exercida através de organizações privadas). Ambas, em conjunto, formam o Estado: ditadura + hegemonia. Em outro contexto, Gramsci define o Estado também como sociedade política + sociedade civil (hegemonia revestida de coerção). Como explica Coutinho:

Nesse sentido, ambas servem para conservar ou promover uma determinada base econômica, de acordo com os interesses de uma classe social fundamental. Mas o modo de encaminhar essa promoção varia nos dois casos: no âmbito e através da sociedade civil, as classes buscam exercer sua

hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso. Por meio da sociedade política, ao contrário,

as classes exercem sempre uma ditadura, ou, mais precisamente, uma

dominação mediante coerção(1981, p. 82).

Ao momento sintético que unifica a hegemonia e a dominação, o consenso e a coerção, a direção e a ditadura, Gramsci denomina supremacia. Sendo deste modo, a autonomia relativa das esferas superestruturais, ou da predominância de uma ou de outra, dependem do grau de socialização da política alcançado pela sociedade e da correlação de forças entre as classes sociais que disputam a supremacia.

Com a descrição da sociedade civil, uma questão fundamental é a compreensão gramsciana de que a luta pela hegemonia não está circunscrita a interesses econômicos e/ou políticos. Ele dispõe que “as estruturas e as superestruturas formam um ‘bloco histórico’, ou seja, o conjunto complexo e contraditório das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção”, no entanto um novo bloco histórico não é cimentado apenas pela convergência de interesses econômicos ou mesmo políticos, mas por afinidades, de natureza cultural. Assim, a batalha das ideias – o diálogo e o confronto cultural – assume uma importância decisiva na luta pela hegemonia.

Para o futuro, Gramsci admite o fim do Estado como o desaparecimento progressivo dos mecanismos de coerção, ou seja, “a reabsorção da sociedade política na sociedade civil”. As funções sociais da dominação e da coerção – à medida que se avança na construção econômica do socialismo – devem ceder progressivamente espaço à hegemonia e ao consenso: “O elemento Estado-coerção poder ser imaginado como capaz de se ir exaurindo à medida que se afirmam elementos cada vez mais numerosos de sociedade regulada (ou de Estado ético ou sociedade civil)”.

Em se tratando da sociedade civil, segundo Oliveira, no Brasil, ela é reduzida aos atores privados: designa “um lugar do não conflito, um lugar da concertação – que ele é, certamente – em que os interesses não aparecem” (2001, p. 22). Este autor destaca a falsidade conceitual desta visão, bem como sua falsidade no real concreto, pois, retomando Gramsci, a sociedade civil é mais que o conjunto de atores privados, “é o lugar do conflito pela hegemonia” (2001, p. 22), onde de conforma a ideologia. Não cabe, por conseguinte, uma visão reducionista ou apaziguadora.