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SOBRE O CONTEÚDO DE ALGUNS TEXTOS

No documento O sampauleiro: romance de João Gumes. (páginas 54-64)

2 O RESGATE DA OBRA

TÍTULO NOTA DE IMPRENTA

2.2 SOBRE O CONTEÚDO DE ALGUNS TEXTOS

2.2.1 O Sampauleiro

O Sampauleiro, romance escrito entre 1917 e 1929, quando se intensificava a

emigração do homem simples do campo para São Paulo, publicado primeiramente em folhetins quinzenais no jornal A Penna durante um longo período que não pode ser

determinado com precisão, porque a coleção de que dispomos ainda se encontra incompleta, sendo possível apenas consultar os folhetins que correspondem ao segundo volume. Em 1929, toma fomato de livro na própria gráfica do jornal. Trata do movimento dos sertanejos em direção aos estados do Sul à procura do eldorado. Nele o autor descreve o sofrimento do homem do campo com as freqüentes e duradouras secas que o obriga a deixar suas propriedades e seus familiares em estado de flagelo para partir em busca de soldos que possam lhes garantir a sobrevivência. Característico dos romances que se prestavam à

divulgação em folhetim45, apresenta quatro personagens principais: o herói, João Lopes, a

heroína, Maria da Conceição, o vilão, Abílio, e o amigo e protetor, Professor Serafim.

2.2.2 Os Analphabetos

Os Analphabetos, romance escrito em 1927 e publicado em 1928 pela Escola

Tipográfica Salesiana em Salvador, é, segundo o próprio autor, uma obra de propaganda contra o analfabetismo na região. Descreve os costumes e crenças do homem simples e rude do campo. Marcolino, o pai do protagonista do romance, é a representação do homem simples do sertão baiano, desprovido de instrução, limitado a reproduzir e a perpetuar os valores herdados de seus antepassados. Por esta razão, considera o conhecimento adquirido através dos livros algo maléfico ao ser humano, porque o transforma em ser pensante e revolucionário.

45 Cf. Marlyse MEYER. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 472p. Consulte ainda

Antônio HOHLFELDT. Deus escreve direio por linhas tortas: o romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 1 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. 321p.

2.2.3 Pelo Sertão

Apesar de a contracapa do romance O Sampauleiro trazer a informação de que é um texto inédito, Pelo Sertão circulou em A Penna, no período de 4 de julho de 1913 a 27 de março de 1914. Segundo o próprio autor, descreve os costumes da zona alto-sertaneja.

2.2.4 Vida Campestre

Vida Campestre provavelmente circulou em A Penna entre 25 de junho de 1914 e

6 de setembro de 1917 (a primeira data refere-se ao início e a última à conclusão). Sobre o seu conteúdo pouco se pode dizer porque os capítulos localizados oferecem apenas algumas pistas. Entretanto, dois fatos autorizam a inferir que trata dos costumes do homem sertanejo e do folclore da região. O primeiro é que, conforme Gumes, no segundo volume d'O

Sampauleiro, ao tratar das "queimadas", diz: "Na “Vida Campestre”, nosso trabalho ainda

infelizmente inédito, já fizemos uma demorada descrição desses incêndios." O segundo é que a contracapa do romance O Sampauleiro traz: "VIDA CAMPESTRE – (Interessante romance de folklorismo desta zona). Inédito".

Viu-se que no capítulo X, às linhas 103-110, e na contracapa do romance O

Sampauleiro, Gumes faz referência a sua obra Vida Campestre como sendo um texto ainda

inédito. Interessante observar que, em 1929, quando a obra que traz essas informações foi publicada, Vida Campestre já havia circulado em folhetim, como atestam os exemplares do A

"obra inédita" Gumes poderia ter se equivocado ou, simplesmente, não considerava a veiculação de um texto em periódico como uma forma de publicação que o tornaria um édito.

2.2.5 Abolição

Gumes classifica a obra como comédia drama. É um texto inédito que trata da permanência da escravidão na região das Serras Gerais após a abolição, ou seja, depois de assinada a Lei Áurea que proibia essa prática no Brasil. O drama, composto de um prólogo e três atos, apresenta onze interlocutores, a saber: Alferes Bonifácio, o solteirão Rocha, o negociante de escravos Antenor de Sá, Dr. Francisco de Oliveira, o escravo Domingos, Conselheiro Santos, o protagonista Capitão Sescuando, Antônio, Emília e Ussina. Apesar de não ter sido publicado, provavelmente, esta é a obra de João Gumes mais conhecida na atualidade, talvez, seja porque, em vida do autor, foi encenada repetidas vezes e ainda costuma ser encenada nas comemorações cívicas.

2.2.6 Seraphina

Seraphina é um projeto de romance moralizador e filosófico. O manuscrito doado

ao Arquivo Municipal de Caetité está incompleto. Gumes apenas escreveu os cinco primeiros capítulos, a saber: A velha Margarida, O aprisco e o pastor, A recém chegada,

Contrariedades, Nunca estamos isolados. Do sexto capítulo Gumes deixou apenas o seu

A contracapa do romance O Sampauleiro traz a seguinte informação a respeito dessa obra: "SERAPHINA - romance moralisador e philosophico. Inédito." Diante desta informação, pergunta-se: Na contracapa de um livro, onde estão listadas as "OBRAS DO MESMO AUTOR" ,Gumes incluiria o título de um texto que apenas era projeto? Ele já teria concluído o seu texto e, por uma razão qualquer, resolveu passar a limpo o que escevera, não dispondo mais de tempo suficiente para concluí-lo e o deixando incompleto? Se o romance foi concluído, onde estão os seus originais?

2.2.7 Mourama

Mourama, texto inédito, trata dos costumes sertanejos. Manuscrito autógrafo

completo, classificado por Gumes em auto comédia.

2.2.8 Sorte Grande e A Vida Doméstica

As obras Sorte Grande e A vida doméstica também aparecem, na contracapa do romance O Sampauleiro, no rol das "OBRAS DO MESMO AUTOR", somente com a indicação de serem comédias. Como ainda não foram localizadas, inferências a respeito do seu conteúdo não podem ser feitas. Pelas mesmas razões que expusemos no item 2.2.6, não sabemos se as duas comédias de fato foram escritas, apesar da

segunda ter sido citada, na Enciclopédia de literatura brasileira46, com o título A

intriga doméstica, como uma das produções de Gumes. Estas e outras dúvidas

somente serão solucionadas quando os manuscritos forem localizados ou, quem sabe, quando a coleção de A Penna estiver completa e for possível consultá-la.

2.2.9 Outros trabalhos

2.2.9.1 A tradução

Gumes também se dedicou à tradução de um livro de história do Brasil escrito em francês. A obra descreve com riqueza de detalhes vários aspectos da flora, da fauna, da vida e dos costumes do povo brasileiro.

O manuscrito doado por dona Heloisa ao Arquivo Municiopal de Caetité, pela letra cuidada, pela falta de emendas e pelas gravuras ilustrativas que foram cuidadosamente coladas, compondo uma unidade significativa, tem características de um texto passado a limpo. Os cadernos de papel almaço foram costurados formando um grosso volume que recebeu uma capa dura. Infelizmente, apesar da dedicação e do zelo de Gumes, os seus primeiros fólios foram colados à capa, impedindo que as informações sobre autoria da obra original e título fossem identificados. A identificação só se concretizará quando for viável a sua restauração para separar os dois primeiros fólios da capa.

2.2.9.2 A partitura de música

A partitura da canção À memória do Dr. Joaquim Manuel Rodrigues Lima consta de 12 folhas, com a mancha escrita apenas no recto, não numeradas. No ângulo superior esquerdo de cada folha lê-se: Canção/ Rodrigues Lima. É uma composição de Ernesto Dantas Barbosa sendo Gumes encarregado de elaborar a partitura. Conforme sugere o próprio título, trata-se de uma homenagem post mortem a seu ilustre conterrâneo: primeiro governador do Estado da Bahia eleito pelo voto direto.

3 A CONSTRUÇÃO DO TEXTO DE JOÃO GUMES 3.1 INTRODUÇÃO

Do exposto até o momento dá para se ter uma idéia da diversidade de possibilidades de estudos que podem ser desenvolvidos com a obra de João Gumes. Resumidamente, elencam-se três recortes viáveis.

A primeira seria submeter os textos ao tratamento da Critica Textual Moderna, preparando edições críticas para os textos impressos e edições crítico-genéticas ou genético- críticas para os textos que apresentam testemunhos manuscritos, esclarecendo o processo de criação do Autor, que deixa marcas de manipulação no texto. Essas marcas são correções autógrafas, estilísticas e lingüísticas, que determinam a seleção realizada pelo escritor entre as diversas possibilidades que o sistema lingüístico lhe oferece ao construir o texto. Desse modo, faz-se um estudo genético da prosa de Gumes, visando depreender como o autor constrói o seu texto, quais os instrumentos que utiliza e quais são os seus hábitos. Estar-se-ia, portanto, buscando caracterizar o seu usus scribendi e o seu modus faciendi.

A segunda seria traçar a história de vida do escritor a fim de caracterizar histórico- socialmente o período em que ele viveu, registrando a sua atuação como jornalista, fazendo-se o inventário de sua produção intelectual, inserindo-o no meio literário baiano de seu tempo, e, principalmente, avaliando os seus escritos mais relevantes. Seja qual for o caminho que se trilhe, o trabalho a ser desenvolvido deverá registrar a memória cultural e garantir a sua permanência porque, tornando transparente a produção de Gumes, desvelando as primeiras incursões literárias dos escritores baianos e detectando a importância documental dessa

produção através de uma leitura ancorada na metodologia do gênero, haverá uma contribuição sobremaneira válida para que as lacunas da historiografia literária baiana possam ser preenchidas. Enfim, com esse resgate, utilizando-se do periódico fundado por João Gumes, pode-se reconstruir a vida cultural da região sudoeste do estado da Bahia naquele período

porque, apropriando-se das idéias de Di Decca47, é através da vida guardada pelos grupos

vivos e, em seu nome, que ela está permanentemente aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, vulnerável a todas as utilizações e manipulações, susceptíveis a longas latências e a súbitas revitalizações. A história é reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que já não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, uma ligação do vivido com o eterno presente.

A terceira seria estudar o léxico da obra do autor a fim de caracterizar tanto os seus usos lingüísticos específicos como a língua utilizada por seus contemporâneos daquela região. Assim também se estaria resgatando os aspectos sócio-culturais do Sudoeste baiano, pois, como é sabido, o léxico de uma língua é constituído por um conjunto de vocábulos que

representa a herança sócio-cultural de uma comunidade. Apropriando-se de Matoré48, poder-

se-ia dizer que a palavra analisa e objetiva o pensamento individual, tendo um valor coletivo, pois a sociabilidade é própria da língua. E, por essa razão, torna-se testemunha da própria história dessa comunidade, assim como de todas as normas sociais que a regem. O estudo sobre o léxico permite compreender os conceitos e as ocorrências da vida cotidiana, por ser modelo e modelador de uma cultura.

Um outro aspecto que também deve ser considerado importante é que no estudo da formação de uma dada língua faz-se necessário levar em consideração a influência

47 Cf. Edgard Salvadori DI DECCA. A memória e a cidadania. In: DI DECCA, Edgard Salvadori. Direito à

memória: patrimônio histórico e a cidadania. São Paulo: DPH, 1992.p. 129-135.

exercida pelo ambiente através da experiência social. Esse contato entre língua e realidade irá determinar a linguagem como reflexo da realidade e, sobretudo, como força geradora da imagem do mundo que o indivíduo possui. Genericamente, pode-se considerar como princípio o fato de que um vocábulo é aceito como elemento da língua, a partir do momento em que ele passa a exprimir todos os valores de um determinado grupo social e, sobretudo, satisfazer suas necessidades.

A língua concebida como um organismo vivo e dinâmico encontra-se em contínuo processo de transformação, e essas transformações são explicadas pelo próprio funcionamento da língua. Elas são motivadas por vários fatores, como por exemplo, geográficos, sócio- culturais e históricos. E, por mais reduzido que seja um espaço geográfico, o estado natural de uma língua nele inserida é o estado da mutabilidade. Toda essa dinamicidade da língua evidencia-se, sobremaneira, no seu léxico, nível lingüístico que melhor documenta o modo como um povo vê e representa a realidade em que vive. O vocabulário de um determinado grupo social atesta seus valores, suas crenças, suas formas de nomear os referentes do mundo físico e do universo cultural nas diferentes épocas da história. Ou seja, o vocabulário de uma língua expressa a mutabilidade das estruturas sociais e a maneira como uma dada sociedade vê e representa a realidade.

Daí acreditar que o vocabulário da obra regional de João Gumes mereça ser objeto de estudo. Estudar o léxico da obra de um escritor regionalista e realista como Gumes é de fundamental importância para a caracterização de seus usos lingüísticos específicos e da língua utilizada por seus contemporâneos em uma dada região.

Uma leitura, mesmo que superficial, da obra de João Gumes aponta algo bem particular em relação à escolha dos itens lexicais. Os seus textos literários de caráter regional revelam certa predileção pelo uso de um vocabulário de “cor local”. Nessas obras, percebe-se

que o autor tem duas intenções: 1) documentar todos os hábitos e costumes da região sudoeste do estado da Bahia, especialmente os da cidade de Caetité e de cidades circunvizinhas; 2) documentar/registrar os vocábulos utilizados por seus contemporâneos. Essa intencionalidade é explicitada pelo próprio autor no prefácio do romance Os Anaphabetos:

“Continuando o meu propósito de tornar conhecida esta região em tudo quanto concerne ao seu interesse e aproveitamento dos seus opulentos recursos, considerei que o melhor meio era escrever narrativas de fatos verossímeis acompanhados de descrição do nosso território e costumes do povo sertanejo. (...) o romance, a novella, ou qualquer trabalho d'este genero, é o que melhor propaganda faz.” 49

Os textos literários que tratam de outra temática e as crônicas publicadas no jornal

A Penna não apresentam a mesma característica. Nesses textos, diferentemente daqueles,

talvez movido por outras razões, principalmente com o objetivo de disseminar conhecimento e de contribuir para “combater o analfabetismo reinante na região”, Gumes parece ter dado preferência a termos mais “eruditos”, sobretudo de origem latina. Nesse caso também se percebe a presença de palavras, expressões e frases em latim, italiano e francês.

Conforme foi demonstrado anteriormente, podem-se enfocar aspectos diferentes da obra de João Gumes, mas, infelizmente, os prazos que devem ser obedecidos para o bom andamento de um programa de pós-graduação, durante o processo de elaboração de uma tese de doutoramento, são relativamente curtos, fato que obriga a escolher a primeira opção apresentada, ou seja, submeter os textos ao tratamento da Crítica Textual Moderna. Mesmo optando por este recorte, faz-se ainda necessário delimitar o objeto de estudo. O material já reunido de Gumes consta de alguns textos que merecem e devem receber o tratamento científico da Crítica Textual Moderna. Editar todo o conjunto demanda muito tempo, por isso, elegeu-se o romance O sampauleiro porque esse texto, na perspectiva da Crítica Textual, é o

que apresenta as melhores condições para serem aplicados os procedimentos metodológicos concernentes à preparação de uma edição crítica.

No documento O sampauleiro: romance de João Gumes. (páginas 54-64)

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