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3. ENTRE MERCADO E SOCIEDADE CIVIL: A DISCUSSÃO SOBRE AGROTÓXICOS E OS

3.1. SOCIEDADE DE RISCO E AGROTÓXICOS

Segundo Ulrich Beck149, na modernidade150 tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção de riscos, os quais são “reflexivos”, pois refletem tema e problema no processo de modernização. Traçando um paralelo (ainda que

149In “Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade”. São Paulo:Ed. 34, 2010, p. 23.

150Para Beck o conceito de “modernidade” está atrelado ao “salto tecnológico de racionalização e a transformação do trabalho e da organização, englobando para além disto muito mais: a mudança dos caracteres sociais e das biografias padrão, dos estilos e formas de vida, das estruturas de poder e controle, das formas políticas de opressão e participação, das concepções de realidade e das normas cognitivas”. Ibidem (2010), p. 23.

56 diametralmente oposto) com o fundamento da “sociedade de classes”, qual seja a distribuição desigual, porém legítima, da riqueza socialmente produzida, Beck deduz que o paradigma da sociedade de risco está apoiado na seguinte questão:

“como é possível que as ameaças e riscos sistematicamente coproduzidos no processo tardio de modernização sejam evitados, minimizados, dramatizados, canalizados e, quando vindos à luz sob a forma de ‘efeitos colaterais latentes’, isolados e redistribuídos de modo tal que não comprometam o processo de modernização e nem as fronteiras do que é (ecológica, medicinal, psicológica ou socialmente) aceitável?”151

Os riscos civilizatórios atuais, diferente das ameaças do passado, que eram sensorialmente perceptíveis, escapam à percepção e estão atrelados a fórmulas físico- químicas, como é o caso das toxinas nos alimentos. Além disso, verifica-se que os riscos antigos eram atribuídos a uma subprovisão de tecnologia higiênica, enquanto que os riscos atuais possuem como causa uma superprodução industrial. A diferença, portanto, reside fundamentalmente no fato de que os riscos atuais se caracterizam pela globalidade de seu alcance (ser humano, flora e fauna) e nas suas causas modernas, vale dizer, são riscos da modernização, produto de série do maquinário industrial do progresso, constante e sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior.

Os riscos atuais implodem os esquemas de classe, ou seja, atingem a todos, independentemente da posição social, o que Beck denomina de “efeito bumerangue”152. Fala-

se, então, em “situações sociais de ameaça”, uma vez que os riscos da modernização cedo ou tarde acabam alcançando aqueles que os produziram ou que lucraram com eles (ameaças à saúde, à legitimidade, à propriedade e ao lucro). Ao reconhecimento social de riscos da modernização estão associadas desvalorizações e desapropriações ecológicas, que incidem múltipla e sistematicamente a contrapelo dos interesses de lucro e propriedade que impulsionam o processo de industrialização.

151A história da distribuição dos riscos demonstra que estes se atém, assim como as riquezas, ao esquema de classe, mas de modo inverso: enquanto as riquezas se acumulam em cima, os riscos se acumulam em baixo, de modo que os riscos parecem reforçar e não revogar a sociedade de classes. Os riscos, no entanto, não se delimitam ao esquema de classes, em razão de sua característica de globalidade. BECK reduz a comparação dos riscos e da miséria na seguinte fórmula: “a miséria é hierárquica, o smog é democrático”. Ibidem (2010), pp. 29/31.

152Ao tratar do “efeito bumerangue” BECK exemplifica com o emprego de fertilizantes na agricultura. Segundo o autor, o emprego de fertilizantes sintéticos na Alemanha Ocidental cresceu, entre 1951 e 1983, de 143 para 378 kg/ha e o consumo de insumos agrícolas cresceu entre 1975 e 1983 de 25 mil toneladas para 35 mil toneladas Apesar de ter havido um aumento de produtividade no mesmo período, este aumento não cresceu na mesma proporção em que se deu o emprego de fertilizantes e agrotóxicos, o que gera a conclusão de que “ao aumento de produtividade aquém das proporções em relação ao uso de fertilizantes e insumos químicos, correspondente um aumento além das proporções dos danos à natureza, visíveis e penosos para os próprios agricultores.” Ibidem, pp. 44/45.

57 Além do “caráter reflexivo” e do “efeito bumerangue” atrelado aos riscos da modernidade, Beck também trata do caráter universal e da supranacionalidade dos riscos. Usando as palavras de Beck: “A sociedade de risco é uma sociedade catastrófica. Nela, o estado de exceção ameaça converter-se em normalidade.153”

Como bem aponta Beck, um problema estrutural na análise dos riscos é demandar o alcance e a gravidade dos riscos pela média, o que implica fatalmente na exclusão das situações socialmente desiguais de ameaça. Diferentemente desta visão mediana, defende Beck que os riscos precisam ser analisados de forma individualizada, ou seja, a distribuição de poluentes, toxinas, impacto sobre a água, o ar, o solo, os alimentos, etc., devem ser sopesados de forma concreta, e não pela média154. Não se pode desconsiderar o fato de que as mesmas substâncias tóxicas podem ter um significado inteiramente distinto para pessoas distintas, conforme a idade, o sexo, os hábitos alimentares, o tipo de trabalho, os níveis de informação e educação, etc. Investigações voltadas unicamente a substâncias tóxicas isoladas jamais podem dar conta das concentrações tóxicas no ser humano, pois aquilo que pode parecer ‘inofensivo’ num produto isolado talvez seja consideravelmente grave no ‘reservatório do consumidor final’155.

Se a causalidade afeta a um dano ambiental concreto de dimensão global já era difícil de ser apontada, que dirá a causalidade afeta aos riscos advindos da modernidade. Usando as palavras de Beck: “os riscos da modernidade emergem ao mesmo tempo vinculados espacialmente e desvinculados com um alcance universal; (...) incalculáveis e imprevisíveis são os intrincados caminhos de seus efeitos nocivos”156.

Os riscos não apresentam efeitos e danos já ocorridos, mas exprimem um componente futuro e estão fundamentados na antecipação de resultados que se espera obter/evitar em decorrência de destruições que ainda não ocorreram, porém que são iminentes e, por conta disso, já se consideram reais no dia de hoje. De acordo com Beck157, “os riscos indicam um futuro que precisa ser evitado”.

153Ibidem, p. 28.

154Como bem assevera Beck: “ou bem se presume abrangentemente que todas as pessoas – independente de renda, educação, profissão e dos respectivos hábitos e possibilidades de alimentação, habitação e lazer – são igualmente expostas nos centros regionais de contaminação averiguados; ou então, em última instância, deixam- se inteiramente de lado as pessoas e o alcance de sua preocupação, tratando-se então unicamente das substâncias tóxicas, de seus efeitos e de sua distribuição regional”. Ibidem, p. 33.

155De acordo com Beck: “O ser humano acabou por se converter no estágio avançado da mercantilização total”. Ibidem, p. 33.

156Ibidem, p. 33. 157Ibidem, p. 40.

58 Na análise dos riscos, portanto, deve-se lidar com uma “variável projetada”, com uma “causa projetada” da atuação pessoal e política presente, cuja relevância e significado crescem em proporção direta à sua incalculabilidade e ao seu teor de ameaça, que concebemos para definir e organizar nossa atuação presente. Daí a necessidade do reconhecimento social dos riscos158

A sociedade de risco e a crise ambiental impõem uma mudança de paradigma quanto à lógica capitalista de mercado e, paralelamente, uma atuação incisiva do Estado, a partir da intervenção nas atividades econômicas e do incentivo à adoção de condutas que assegurem a reprodução das condições da vida humana de forma adequada. A experiência tem demonstrado que a intervenção estatal fundada meramente na regulação sancionatória clássica não é um mecanismo eficaz de proteção do meio ambiente.

É imperiosa a existência de instrumentos econômicos de política ambiental, vale dizer, mecanismos indutivos de comportamentos sustentáveis por parte dos agentes econômicos poluidores, tais como incentivos financeiros e incentivos de fiscais, bem como de instrumentos de persuasão para demonstrar a dissociação entre a lógica do mercado e os riscos iminentes ao meio ambiente e à própria sobrevida dos seres humanos em longo prazo e para a formação de uma lógica de sustentabilidade no âmbito da coletividade, com o intuito de dar guarida à regulação do mercado de agrotóxicos sob um novo paradigma – o da sustentabilidade. Mas isso deve estar associado a instrumentos de comando e controle, bem como instrumentos de persuasão159.

Antes de ingressar na análise destes instrumentos160, importante entender essa dissociação entre a lógica capitalista de mercado e a sociedade de risco.