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A sociolingüística e o ensino: Refletindo sobre a prática de português na sala de aula

4. CONSIDERAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO NO BRASIL: A VARIAÇÃO NA ESCOLA

4.5. A sociolingüística e o ensino: Refletindo sobre a prática de português na sala de aula

Pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro Oswald de Andrade

Se realizarmos uma observação mais cautelosa a respeito da prática do ensino de língua portuguesa, desde o primeiro segmento do ensino fundamental, constataremos que, em muitos aspectos, há ainda a manutenção de uma perspectiva reducionista no que se refere ao ensino de língua descontextualizado. Seguindo os pensamentos de Possenti (1996), Irandé (2007) e Bagno (1999, 2007), apesar de determinadas ações institucionais terem desenvolvido iniciativas, como as de uma reorientação da prática pedagógica, infelizmente, não estamos vivendo uma realidade 100% bem sucedida hoje em dia no que diz respeito à prática do ensino de língua, em especial. Deste modo, a condição de “fracasso escolar” prossegue no cenário das salas de aula, uma vez que muitos alunos persistem na idéia de que “não sabem falar”, “não sabem o português”, e, portanto, consideram “a língua portuguesa muito complicada”. Em seguida, o reflexo dessa situação se traduz em reações negativas por parte

dos alunos no tocante às aulas e atividades de língua portuguesa, e, outras vezes, se traduz também em uma experiência desastrosa de repetência escolar, ou ainda em uma evasão escolar em decorrência do desânimo, baixa auto-estima, dentre outros fatores. Em alguns casos, o aluno pode frustrar-se com outras disciplinas integrantes do currículo escolar por apresentar dificuldade em um dos quesitos leitura ou escrita, por exemplo, tendo certeza de que apesar de seu esforço, é linguisticamente “inferior”. Desta maneira, nas situações em que poderia tomar a palavra para fazer valer seus direitos de cidadão, participando efetivamente do que ocorre a sua volta o aluno não se encoraja e acaba sendo passivo às decisões alheias.

Não há que se considerar apenas a escola como elemento decisivo no aspecto relativo ao “fracasso escolar”, visto que causas externas a ela interferem igualmente nesse resultado. A família e a sociedade são também determinantes para que o sucesso escolar se evidencie. Contudo, se a escola contribuir internamente para a qualidade e o aumento de resultados positivos no ensino, é de se supor que boa parte do sucesso escolar estará encaminhada dentre “as gentes” que circulam na escola.

Para que a escola tenha bons professores de língua portuguesa é importante que desde que o professor esteja nos bancos escolares da faculdade de Letras seja atualizado em relação às propostas dos PCNs para que elas possam ser aplicadas em sala de aula quando estes estiverem no mercado de trabalho – destaca-se que muitos alunos77 de faculdades de

licenciatura já estão trabalhando efetivamente antes de se formarem. Nem sempre, nos cursos de Letras, se debate acerca dos pontos que estão sugeridos nos PCNs referentes à língua, em especial, e, por vezes, as faculdades de Letras, ainda hoje, tendem a deixar de lado discussões sobre os PCNs e sobre as áreas da lingüística, enfatizando padrões estanques e que, geralmente, servem de exclusão se não forem debatidos e trabalhados de maneira reflexiva. Há outra situação recorrente no ensino atual que diz respeito aos profissionais formados há determinado tempo e/ou oriundos de faculdades cuja qualidade é questionável. De acordo com as mesmas teses propagadas por Possenti (1996), Irandé (2007) e Bagno (1999, 2007), esses professores de língua, muitas vezes, não tiveram a oportunidade de sequer cursar uma aula de lingüística na faculdade, desconhecendo, portanto, certas denominações como processos anafóricos, marcadores discursivos, gêneros do discurso, inferência, e outras – só para mencionar algumas designações que fazem parte do texto dos PCNs, assim como o predomínio de algumas teorias (por exemplo, a análise do discurso e a sociolingüística). Essa

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O formando em Letras, muitas vezes, não é capaz de relacionar os conhecimentos teóricos referentes à Lingüística, à Língua Portuguesa e a discussão deles nos PCNs ao que deveria ser ensinado na sala de aula, sendo resultante deste fato uma situação que já estamos cansados de ouvir falar: a repetição de fórmulas antiquadas e estanques.

situação resulta em uma das grandes dificuldades na prática, porque muitos professores não conhecem ou ignoram os pressupostos teóricos que orientam essas linhas, podendo, inclusive, tirar conclusões precipitadas do que está posto nos PCNs, como atualmente ocorre no trabalho com os “gêneros” que equivocadamente é ainda (em determinados livros didáticos78 e por

determinados docentes) entendido como a famosa “trilogia clássica” e não como uma possibilidade por parte dos discentes de realizar uma articulação entre as práticas cotidianas de interações sociais e os objetos escolares.

Os gêneros são caracterizados historicamente. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos. É por isso que, quando um texto começa com “era uma vez”, ninguém duvida de que está diante de um conto, porque todos conhecem tal gênero. Diante da expressão “senhoras e senhores”, a expectativa é ouvir um pronunciamento público ou uma apresentação de espetáculo, pois sabe-se que nesses gêneros de texto, inequivocadamente, tem essa fórmula inicial. Do mesmo modo, pode-se reconhecer outros gêneros como cartas, reportagens, anúncios, poemas, etc. (MARCUSCHI, 2001, p. 19)

Assim sendo, não podemos esperar que tais profissionais façam “milagres” se não recebem, por exemplo, cursos de atualização e garantia de boa faculdade, entretanto, muitos professores realizam uma atuação nota dez, diante de uma formação precária, empenhando-se e estudando cotidianamente para a preparação de suas aulas.

No que se refere à variação lingüística, é importante, dentre professores de língua materna desatualizados, que se tenha que valorar a tal da “variação lingüística” trazida nos PCNs e também em alguns livros didáticos. Assim sendo, o professor, de maneira equivocada, tende a aceitar toda a produção do aluno, os termos que o aluno usou, apesar de ter usado um “nós vai” em uma produção de cunho formal – como a do gênero “carta ao leitor” (que pode posteriormente ser publicada em um jornal79

com o nome do aluno) que está inserido na esfera social do jornalismo –, considerando tudo como “válido”, sem questionar, por exemplo, que somos capazes de visualizar os gêneros na sociedade, já que são “determinados historicamente” e podem ser reconhecidos através de suas peculiaridades e finalidades, e, deste modo, os docentes não avaliam se o que o aluno escreveu de fato contempla a proposta solicitada, sendo que em diversas situações de comunicação os gêneros são constituídos e estes podem se expressar na forma de bilhete, piada, cardápio de restaurante, bula de remédio,

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Discuto um pouco mais acerca deste tema em um artigo que apresentei no VIII Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul – CELSUL/2008, intitulado “Ensino Médio ou Médio Ensino”. Resumo disponível em: http://www.ufrgs.br/ppgletras/celsul/index.htm e artigo completo disponível em DVD.

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aula expositiva, horóscopo, carta pessoal, receita, e-mail e outros. Destarte, segundo Vygotsky80 (1999), o professor que age daquela maneira acaba deixando seu aluno em um mesmo ponto, ou na chamada zona de desenvolvimento real (ZDR) que diz respeito ao “nível de desenvolvimento das funções mentais da criança que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados” (1999, p. 111). O nível de desenvolvimento real (ZDR) compreende, então, aquelas funções psíquicas já dominadas pelo sujeito. Todavia, o autor enfatiza que a escola deve trabalhar na zona de desenvolvimento imediato (ZDI), pois esta abrange aquele conjunto de habilidades em que o sujeito pode ter sucesso se for auxiliado por um adulto ou alguém mais experiente do que ele. É nessa região que estão, ainda, as habilidades em desenvolvimento pelo sujeito.

Todavia, tanto o professor que já tenha ciência do trabalho com a variação lingüística, quanto aquele que não tem, mas deseja ter, talvez não consiga pôr em prática imediatamente tudo o que recomendam os PCNs. Mas há que se comentar que muitas sugestões levantadas nos PCNs são possíveis e imprescindíveis, como a discussão do preconceito lingüístico que está prevista nos documentos em questão, o que denota que já há um avanço na qualidade do material existente na educação e, conseqüentemente, na cultura lingüística no país.

O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Por isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma “certa” de falar – a que se parece com a escrita – e o de que a escrita é o espelho da fala – e, sendo assim, seria preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico. (BRASIL, V1, 1997, p. 26)

Podemos destacar que os PCNs colocam que os conteúdos de língua portuguesa devem se articular em torno de dois eixos: o do uso da língua oral e escrita e o da reflexão acerca desses usos. Trabalhando desta maneira, poderemos minimizar o hiato que existe entre a variedade trazida pelo aluno de casa – que jamais deve ser classificada como “erro” – e a norma culta, incluindo o aluno efetivamente nas práticas sociais por meio de trabalhos tanto com a escrita quanto com a fala, além da reflexão em torno das diversas variedades nos diversos contextos e situações de uso. Como sabemos, para muitos professores, a utilização de

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Vygotsky trata-se de um autor demasiado importante para uma remissão assim avulsa, entretanto, como estamos abordando sobre o ensino nesta pesquisa, achamos fundamental citá-lo.

variantes não-padrão é freqüentemente taxada de “erro”. A respeito disso, Mollica faz uma observação:

Os estudos sociolingüísticos oferecem valiosa contribuição no sentido de destruir preconceitos lingüísticos e de relativizar a noção de erro, ao buscar descrever o padrão real que a escola, por exemplo, procura desqualificar e banir como expressão lingüística natural e legítima. (2003, p.13).

Logo, a discriminação (ou a exclusão) lingüística deve ser abominada pelo professor de língua portuguesa na sala de aula. Não podemos permitir que nos dias de hoje persista um ensino lingüístico acrítico, antidemocrático e preconceituoso, pois devemos contribuir para o crescimento de uma cultura lingüística permeada por variedades diversas e sermos coerentes com os propósitos de uma educação democrática, fazendo a diferença em sala de aula.

Resultados de estudos demonstram que a dinâmica da variação e mudança de itens lingüísticos, como o quadro pronominal e as formas verbais estão intensamente condicionadas por fatores externos, por exemplo, sexo, posição social, idade, dentre outros. Sobre os pronomes em variação desta pesquisa: nós e a gente, como já citamos anteriormente, Lopes (1998) diz que nos falantes com pouca escolaridade a substituição desses pronomes encontra- se em um estágio mais avançado; já Machado (1995) nos demonstra que tanto os informantes analfabetos quanto aqueles com alguma escolaridade estão expostos a essa variação; Zilles (2005) constatou que os mais jovens, a cada nova geração, tendem a aumentar as taxas de a

gente, porém no que diz respeito à concordância verbal, a escolha por a gente se torna uma

alternativa mais segura no sentido de evitar a não-concordância e o estigma social anexo a ela. Entendemos que a língua é heterogênea, viva e variável, e, somente pode perder seu caráter social quando não existir mais comunidades de falantes dessa mesma língua. Assim sendo, a sociolingüística não se caracteriza pelo estudo de línguas mortas, mas sim pelo estudo de seus condicionadores sociais e sua relação intrínseca com condicionadores lingüísticos.

Portanto, um dos primeiros objetivos e uma das primeiras atitudes do educador deve ser o reconhecimento da realidade sociolingüística presente na sala de aula e na comunidade em que está atuando. É fundamental realizar este trabalho na sala de aula, sublinhados alguns pontos, como o da heterogeneidade lingüística, o dos possíveis usos da língua (escrita e falada) em diversas situações de interação no cotidiano, e outros; confrontando, deste modo, as diversas variedades presentes naquela determinada localidade e

combatendo preconceitos entre os vários professores com seus alunos e entre os próprios alunos.