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CAPÍTULO 2 – DROGAS/CRACK

2.3 O SUJEITO

No que se refere ao objetivo de delinear um perfil dos/as usuários/as de crack e outras formas similares de cocaína fumada (pasta base, merla e “oxi”) no país, a pesquisa da FIOCRUZ (BRASIL, 2012a) aponta que, dos cerca de 370 mil usuários/as, 78,68% seriam homens e 21,32% mulheres. Do número total, 77,73% se classificam como negros/as ou

pardos/as e 57,60% tem escolaridade até o nível fundamental. A maioria é composta de adultos jovens com idade média de 30 anos, dos quais 40% estão em situação de rua16. Todavia essa situação é mais observada nas capitais, onde 47,3% estão em situação de rua, enquanto, nas outras cidades, a prevalência de situação de rua dos/as usuários/as foi de 20%. Quase metade dos/as entrevistados/as já foi preso/a uma vez na vida, e 78,9% relataram desejar tratamento.

Na tentativa de identificar os/as usuários/as de crack no Brasil, Dias (2012) identifica as características: homem, adulto jovem (de idade entre 20 e 30 anos), solteiro, inserido no mercado informal de trabalho ou desempregado, baixa escolaridade e modesta condição socioeconômica. Algumas pesquisas, entre elas as de Lúcio Garcia Oliveira & Solange Nappo (2008), e Zeni & Araújo (2009 apud DIAS, 2012), registram, como vulnerabilidades, o engajamento em comportamentos de risco17 e em pequenos delitos para sustentar o uso continuado da droga. O “II Levantamento Domiciliar de Uso de Drogas no Brasil” (CEBRID, 2006) confirma essas características gerais do/a usuário/a, apresentando um percentual de 80% dos usuários de crack como homens, não brancos, 40% dos quais vivem nas ruas e 40% dos quais estão no Nordeste. Sobre o perfil da mulher usuária de crack, observa-se baixo poder aquisitivo, baixo grau de formação escolar, pouca idade, desemprego ou baixa remuneração e dificuldades no acesso aos serviços de saúde (DIAS, 2012). Observamos a inter-relação do uso do crack com diversos marcadores, tais como: raça, classe social, entre outros.

Das mulheres entrevistadas na pesquisa da FIOCRUZ (BRASIL, 2012b), 10% relataram estar grávidas, e mais da metade já engravidou ao menos uma vez desde o início do uso de crack/similares. Embora os homens apresentem uma média maior de tempo de

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Não necessariamente são moradores de rua; podem passar o dia na rua fazendo uso, o que dificulta o acesso aos serviços de saúde e assistência tradicionais, que funcionam em horário comercial.

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Como “comportamentos de risco”, as autoras e o autor referem-se especialmente ao compartilhamento de insumos e a prática sexual desprotegida. Todavia as ideias de grupo de risco e de comportamento de risco vêm sendo tensionadas por promoverem a estigmatização de grupos e de práticas como inadequadas, sendo utilizadas para a manutenção de um status quo de normalidade. No lugar desses conceitos, Ayres (2002) e outros autores/as vêm propondo pensar a vulnerabilidade enquanto constituída por três eixos: pessoal, social e programático. Esse conceito foi apresentado na introdução deste trabalho.

consumo em relação às mulheres, estas apresentaram maior intensidade, ou seja, maior número de pedras por dia. Das entrevistadas, 44,5% já sofreram violência sexual, enquanto a mesma taxa nos homens entrevistados foi de 7,0%.

Ainda sobre os dados do número de mulheres usuárias no país, o Relatório Brasileiro Sobre as Drogas (BRASIL, 2009) relata que 0,2% das mulheres brasileiras faziam uso de

crack em 2005. Dias (2012) pontua o aumento do consumo de crack entre mulheres,

evidenciando, a partir dos dados da pesquisa de Noto e cols. (2003 apud DIAS, 2012), uma ascensão do uso de crack em Recife após o ano 2000, estando a capital pernambucana, hoje, entre as quatro cidades brasileiras com maiores índices de utilização da droga.

Segundo Sollange Nappo (2004), o perfil inicial de preferência pelo crack por homens jovens sofreu alterações significativas com o aumento do número de mulheres usuárias. Um aspecto evidenciado em pesquisas com mulheres usuárias diz respeito à prática de sexo em troca de obtenção da droga (DIAS, 2012; MELCOP apud AGUIAR, 2014, NAPPO, 2004; PECHANSKY & COLS, 2007). A comercialização de práticas sexuais pelas mulheres aumenta a vulnerabilidade dessas em relação às doenças sexualmente transmissíveis – DST/AIDS. A problemática do comércio do corpo pelas usuárias, muitas vezes em estado de fissura, dá-se pelo baixo poder de negociação delas junto aos parceiros sexuais, os quais, via de regra, dominam a negociação, impondo, por exemplo, o não uso de preservativos e um baixo valor em troca da relação sexual (DIAS, 2012; NAPPO, 2004). Dessa forma, as mulheres precisam vender o corpo por mais vezes para conseguir comprar a droga, contexto de vulnerabilidade que aumenta a probabilidade de contraírem DSTs (NAPPO, 2004). As usuárias de crack são vítimas constantes de violência, seja de agressões verbais, físicas e sexuais, sem que as violências sofridas sejam alvo de denúncia e/ou cuidados médicos (SILVA, 2000; NAPPO, 2004). Isso é também observado na pesquisa de Sollange Nappo, na qual 54% das mulheres entrevistadas declararam ter sido vítimas de violência. Todavia a autora percebeu que esse dado estava subestimado, uma vez que as usuárias só reconheciam como violência os casos em que havia danos físicos graves em decorrência dela. Silva (2000) pontua ainda a estratégia referida por mulheres usuárias de crack em adotar uma aparência “masculinizada” como uma estratégia de defesa e proteção contra as ameaças a que estão sujeitas, mostrando a dimensão do significado do gênero nas relações de poder.

Porém todos esses dados que propõem a construção de um perfil para usuários/as de

crack esbarram em algumas questões que precisam ser pontuadas. Sendo o crack uma droga

ilegal, como é feita a identificação desses/as usuários/as na sociedade? As intervenções de saúde acabam notificando mais os casos de pessoas em situação de rua ou de vulnerabilidade social que ficam expostas a ter seu uso identificado pelas equipes de cuidado, enquanto, em outros espaços, o uso fica invisibilizado. Nesta pesquisa, não busco compreender as experiências do uso de crack por mulheres de maneira geral, mas sim construir um conhecimento parcial e local acerca das experiências de maternidade das mulheres usuárias de crack demarcadas por um território e pela assistência num determinado serviço os quais serão posteriormente melhor apresentados.

Atualmente, o consumo de substâncias psicoativas e os problemas decorrentes do uso abusivo são compreendidos a partir de dois eixos principais: 1) Uma visão jurídico-moral, que apresenta as drogas como o grande mal da sociedade, como o problema em si que deva ser reprimido através do chamado “combate às drogas” e da culpabilização do/a usuário/a; 2) Uma visão biomédica, que compreende as drogas enquanto elementos químicos que agem sobre os/as usuários/as, causando uma doença incurável. Essas concepções preponderantes no imaginário social sobre a droga vão localizar o/a usuário/a ora como o/a “delinquente” em conflito com a lei, “mau-caráter”, ora como o/a pobre doente vitimizado/a, sendo, portanto, reducionistas ao desconsiderar a complexidade do fenômeno do uso de drogas, inclusive a dimensão do prazer decorrente do uso (BRASIL, 2014). Nesse sentido, Edward MacRae (2014) pontua que os/as usuários/as, devido ao estereótipo, passam a ser olhados como incapazes de administrar a própria vida. Em decorrência dessa forma limitada de olhar a situação, não se visibiliza os problemas da sociedade, como as falhas do sistema de educação, saúde, segurança pública e a má distribuição de renda.

Na tentativa de evitar esse tipo de reducionismo e culpabilização do sujeito, parto de uma compreensão da integralidade dos/as usuários/as de drogas, observando-os/as a partir de uma visão que considere suas múltiplas implicações, localizando-os/as enquanto pessoas atravessadas por gênero, raça, geração, território e classe. Nesse sentido, a experiência de uso de drogas em sua vida, no contexto de suas relações articula-se a como as redes sociais significativas influenciam a possível formulação de um projeto de vida. Esse projeto de vida parte das significações construídas coletivamente, das quais a pessoa é produto e produtora,

mas também parte das possibilidades que o contexto social e político lhe apresentam – por isso a forte influência do que é, por exemplo, ser mulher, pobre, negra, do que a sociedade apresenta como possibilidades de ser para essa pessoa, e de como ela se conforma e/ou resiste a esses ordenamentos sociais (COSTA, 2014).

A partir dessa visão de integralidade, proponho pensar como as desigualdades de gênero influenciam o uso de substâncias psicoativas, uma vez que pretendo utilizar esse conceito como categoria analítica. Trarei as contribuições de algumas pesquisas para pensar as relações entre gênero e uso de substâncias psicoativas. Esses estudos consideram as diferentes experiências de consumo para homens e mulheres, todavia, a partir da contribuição de Butler (2010) acerca da construção social da categoria sexo, pontuo a compreensão de que o gênero abarca outras possibilidades além do binômio masculino-feminino, uma vez que existem muitas outras formas de ser homem, mulher, transgênero, entre outros. Dessa forma, opto por partir do gênero para compreender as experiências das mulheres participantes desse estudo, a fim de efetivar a proposta de Maria Luisa Rodrigo e Raquel Ordaz, que propõe “dar o salto desde a interseccionalidade de gênero com outros eixos de diferença que, ao cruzarem- se, podem derivar em desigualdade” ( RODRIGO & ORDAZ, 2012, p.80-81).

Num contexto social amplo, certos comportamentos e práticas são estimulados para homens e inibidos para mulheres, e vice-e-versa, e o uso de drogas não foge a essa influência. As normas de gênero transmitidas a partir da socialização de homens e mulheres constroem e perpetuam uma noção de masculinidade e feminilidade que distingue o que é próprio a cada um, posicionando-os diferentemente, e influencia o uso, as motivações, a escolha da substância psicoativa e a dosagem (RODRIGO & ORDAZ, 2012; FRANÇA, 2013).

Numa sociedade androcêntrica como a nossa, essas relações desiguais posicionam, em sua maioria, os homens em situação de privilégios em relação às mulheres. Rodrigo & Ordaz (2012) pontuam que esse caráter acaba por invisibilizar as experiências de uso de drogas das mulheres, ou por analisá-las a partir das realidades dos homens. Essa pesquisa busca, portanto, visibilizar as experiências das mulheres na prática do uso de crack, sabendo que esse é um universo culturalmente apresentado como “próprio de homens”, estando, por seu caráter de ilegalidade, mais próximo dos ideais construídos de masculinidade mais relacionados ao “risco” e à transgressão do que dos ideais de feminilidade (ibid).

Discutindo acerca das diferentes relações construídas entre homens e mulheres no uso de substâncias psicoativas, observa-se, nos âmbitos nacionais e internacionais, uma prevalência masculina no uso de drogas ilícitas, embora essa diferença esteja diminuindo (MORAES & SILVA, 2011; FRANÇA, 2013; CEBRID, 2006). Todavia o uso de drogas consideradas medicamentos é maior entre as mulheres, sendo que, segundo o II Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, as mulheres participantes do estudo com idades entre 12 e 65 anos tinham prevalência no uso de benzodiazepínicos em todas as faixas etárias em relação aos homens (CARLINI et. al., 2007). Esse dado se relaciona ao encontrado no IV Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes de Ensino Fundamental e Médio das Redes Pública e Privada de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras, onde consta que, entre as meninas, foram encontradas proporções mais elevadas de uso de álcool, anfetamínicos (sobre a forma de remédios para emagrecer) e ansiolíticos (calmantes), quando comparadas às utilizadas pelos meninos (CARLINI; NOTO & SANCHEZ, 2003).

Observa-se, portanto, que certas substâncias psicoativas estariam mais próximas do “universo feminino”, como os psicofármacos e as anfetaminas, possivelmente por influência das normas de gênero que vinculam a feminilidade a aspectos do cuidado com os outros, ao autocontrole e aos padrões ideais de beleza que exigem mulheres magras (RODRIGO & ORDAZ, 2012; FRANÇA, 2013; OLIVEIRA; PAIVA & VALENTE, 2006).

A partir desses estudos supracitados, observo como essas diferenças do uso podem ser melhor compreendidas a partir de uma análise interseccional que considere a socialização como fator constitutivo das diferenças no consumo de homens e mulheres. Interpretações dessas diferenças por abordagens “psicologizantes” ou puramente biomédicas podem contribuir para a manutenção do status quo que perpetua a desigualdade de gênero (FRANÇA, 2013; RODRIGO & ORDAZ, 2012).

No ínterim dessas discussões, este projeto de pesquisa interessa-se por visibilizar as demandas específicas das mulheres usuárias de crack, mais especificamente no que toca a vivência de gestação e maternidade, que serão melhor discutidas na sequência.