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Supervisão e prática analítica

No documento O Serviço de Psicologia na Universidade (páginas 53-57)

particular ocupada na transferência. E, para tanto, é imprescindível que o estagiário esteja em análise pessoal, bem como é imprescindível que a relação transferencial entre supervisor e estagiário suporte o questionamento dos limites de saber.

que, por acontecer como atividade de grupo, a supervisão produz outros movimentos transferenciais que seguem direções distintas do endereçamento ao supervisor.

Ainda que em sua especificidade, a supervisão dos estágios em clínica psicanalítica visa sustentar-se como prática no campo da psicanálise, dentre outros modos, por meio da subversão da relação instituída entre saber e sujeito na universidade. Para tanto, cabe ao supervisor-analista estar atento para que a discussão do caso clínico aproxime-se do singular; ou seja, que venha a problematizar, no espaço de discussão, o quanto a particularidade da construção do saber na experiência clínica se coloca em oposição à generalidade e universalidade do saber acadêmico. Nesse sentido, o particular e o singular devem imbricar-se e possibilitar que o atendimento de um paciente por um estagiário sob supervisão de um analista revele sua dimensão de construção de caso e de modos de intervenção. O saber teórico, generalista, por sua vez, surge como pano de fundo para uma invenção que se faz na sessão e que é efeito da implicação e da responsabilidade do praticante da psicanálise com a clínica.

Na prática clínica psicanalítica, o que se coloca em questão é a possibilidade de se deixar guiar pela transferência e, ao mesmo tempo, poder situar-se aí, no laço transferencial estabelecido a cada encontro – e aqui devemos considerar tanto a sessão clínica, quanto a supervisão – para construir uma direção a ser dada ao atendimento realizado.

Portanto, a apresentação do caso e o levantamento de questões sobre a direção do tratamento deve possibilitar a relativização do saber: não há uma única resposta às questões que se apresentam, nem tampouco há um saber que se coloque de forma fixa, em um único lugar enunciativo, aquele do supervisor. Como nos lembra Lacan, é preciso que cada analista reinvente a psicanálise, que o sujeito seja levado a “uma consequência em que ele precise colocar algo de si” (LACAN, 1966 [1998], p. 11), e isso se faz por meio de uma elaboração que inclui a própria análise, a prática clínica exercida e o modo de apreensão da teoria.

Justamente por se tratar de uma invenção sustentada na e pela transferência é que a supervisão não deve ser prescritiva, nem tampouco resumir-se à apresentação dos casos, sob o risco de apenas confirmar o que o aluno, muitas vezes, supõe: que existe um saber pronto a ser apropriado, desde que dominada a sua chave interpretativa. Diante da singularidade de cada caso e em sua relação com o universal da teoria é que o praticante da psicanálise inventa e exercita novas posições de escuta e de intervenção na clínica. Cabe ao supervisor indicar o ponto de impossível que lança a clínica psicanalítica para um mais além, em sua possibilidade de transmissão sustentada pelo desejo.

Se a supervisão se sustenta, de fato, sob transferência, o estagiário se arriscará a falar de sua posição frente ao paciente, o que permite construir um saber sobre a intervenção clínica que se fez na sessão e que porta as marcas do percurso percorrido pelo aluno, o qual inclui sua análise pessoal. É nesse contexto que consideramos que a supervisão deve possibilitar o acolhimento do sofrimento e das incertezas dos estagiários, de modo a possibilitar que o impasse inicial frente à clínica se transmute em inquietação produtiva; ou seja, que a pergunta do aluno que, muitas vezes, sequer consegue ser formulada, não seja vista como falha de saber, mas, por um giro de escuta, permita reconhecer aí as marcas da transferência e do inconsciente (VEGH, 2005). É essa construção do saber no singular de cada caso, na particularidade do atendimento clínico, que nos permite teorizar em psicanálise.

A escrita dos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) traz o desafio de construir uma teorização sobre a prática realizada e testemunha a implicação do aluno frente à singularidade do fazer clínico em psicanálise. A orientação dada ao estudante é que o TCC tenha como guia o caso clínico e não se limite a um estudo sistematizado de um tema. Essa orientação de trabalho traz como consequência que o TCC não tenha o seu objeto definido previamente, mas que sua escrita seja efeito de um percurso de trabalho com um paciente

que, em seus impasses, provoca a reflexão do aluno. Cada TCC faz-se, portanto, como tentativa de questionar, problematizar e, por vezes, responder a um dado aspecto clínico do atendimento e/ou do caso. Nessa construção, a posição analítica do estagiário coloca-se necessariamente em ato, na escrita.

Após escrito, o TCC deve ser apresentado publicamente para avaliação por parte de uma banca composta por dois professores convidados e pelo orientador do trabalho, o supervisor clínico. Por opção da supervisora, os professores convidados são profissionais com prática docente em supervisão de estágio e que tem experiência clínica em psicanálise, sendo reconhecidos como analistas por seus pares. Essa escolha é fundamental, a nosso ver, para que a apresentação e discussão do trabalho não se limite ao modelo acadêmico e esteja em consonância com a ética psicanalítica no que diz respeito ao saber, ao desejo e ao inconsciente.

Os TCCs são apresentados em sequência em dois turnos, no mesmo dia ou em dias subsequentes. A ordem de apresentação dos TCCs é definida pelos temas, o que dá aos trabalhos certo efeito de conjunto e possibilita ao público acompanhar a produção final desse grupo de estágio. Cada aluno tem 20 minutos para apresentação de seu trabalho e cada arguidor tem 10 minutos para suas considerações e perguntas. Ao fim da arguição, o estudante tem 10 minutos para responder e/ou comentar as considerações da banca. O momento de apresentação dos TCCs nos parece extremamente rico por conjugar o debate teórico e a discussão clínica, o que atualiza a construção do caso. Por vezes, esse espaço tem o valor de uma sessão clínica, compreendida como uma oportunidade de discussão dos impasses do caso, hipóteses diagnósticas e condução das sessões.

De certo modo, o debate convida os participantes – o que inclui o supervisor clínico – a exercitar-se na flexibilidade de sua certeza sobre a condução do caso clínico.

Se considerarmos que a prática psicanalítica não se sustenta na apreensão de um saber constituído, mas no reconhecimento do

impossível que se coloca em relação ao fazer clínico, torna-se possível conceber o espaço de apresentação dos TCCs como um dispositivo de transmissão da psicanálise, visto que lança para primeiro plano o reconhecimento da singularidade do caso e a necessidade de invenção frente à clínica. É por meio do reconhecimento do impossível de um saber geral sobre o que há de mais singular no sujeito – seu sintoma – que um saber contingente e particular virá a se constituir. Faz-se necessário, portanto, distinguir impossível de impotência (LACAN, 1969-1970 [1992]), pois caso desconheça o ponto de impossível em questão, o estudante tomará como impotência – sua e/ou da orientação teórico-clínica – a experiência de atendimento clínico.

Ao colocar a clínica em primeiro plano, a prática psicanalítica de supervisão permite problematizar a relação professor-aluno, orientador-orientando e supervisor-supervisionando, deslocando ambos os termos desta relação e trazendo para a discussão as regras e modos de funcionamento do estágio psicanalítico na universidade.

Cabe ao supervisor sustentar o questionamento sobre os limites da transmissão em psicanálise no espaço da universidade, em especial em relação às práticas desenvolvidas em uma clínica-escola. Colocar tal questão implica, em última instância, questionar os modos de transmissão da psicanálise em diferentes serviços e em relação a diferentes discursividades – aqui se encontra o jogo tensional entre psicanálise e universidade, em especial em relação ao saber.

E, de modo complementar, implica pensar a possibilidade da prática psicanalítica e sua ética para além do modelo tradicional de atendimento em consultório.

No documento O Serviço de Psicologia na Universidade (páginas 53-57)