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Triagem Interventiva: um convite à subjetivação

No documento O Serviço de Psicologia na Universidade (páginas 120-124)

Triar. Separar. Selecionar. Encaminhar. O paciente se inscreve na recepção de uma clínica-escola e aguarda o surgimento de uma vaga pa-cientemente. Finda a espera, o paciente é convidado a esperar novamen-te, mas dessa vez está sob a escuta do “triador”, aquele que supostamente lhe dirá se “passa ou não passa”. Quais os critérios? O que fazer para conseguir o que quero – o atendimento?

Quando o paciente chega, está, como o próprio nome pres-supõe, aguardando uma solução para seu problema, seja este qual for. E quando os pais levam a criança para um atendimento psi-cológico, é porque algo não está funcionando como esperavam:

há um sintoma.

Muitos são os serviços que aceitam de modo imediato os pedidos formulados na triagem, ou a demanda tal qual se

apresenta, sem o necessário tempo para que um trabalho se realize. Aplicam extensos questionários e obedecem a crité-rios os mais diversos para decidir sobre a seleção e o encami-nhamento dos casos a serem atendidos.

A Triagem Interventiva propõe outro caminho: partindo da psi-canálise, evita cair no engodo formulado pelo paciente quando este pro-cura um antídoto para seus problemas. Engodo este muito sedutor a qualquer profissional da saúde, já que pressupõe um poder: o poder de curar. Ou melhor, de saber curar.

A psicanálise pressupõe que, na fala do sujeito, no enunciado, há também uma segunda fala, uma enunciação. “O enunciado de uma fala é da ordem da demanda, mas é em sua enunciação, na modaliza-ção do dito, sua entonamodaliza-ção, suas pausas, sua cadência, sua rapidez ou sua lentidão, na ênfase ou na elipse de suas palavras que rola o desejo”

(QUINET, 2000, p. 90). Assim, o paciente é tomado como um su-jeito dividido, aquele que inevitavelmente deixa entrever, em sua fala, o inconsciente que expressa a verdade, malquista e evitada. Evita-se a verdade por meio de diversos mecanismos, entre eles os sintomas. E o profissional de saúde, neste caso o psicólogo, só consegue se apro-ximar desse sujeito do inconsciente a partir de um lugar de não saber, sinalizando constantemente ao sujeito sua existência e insistência.

A partir desse referencial, a demanda inicial é questionada, desar-ticulada, desconstruída, até que o sujeito possa vislumbrar um além da demanda, sempre enganosa, momento em que algo do desejo pode ser tocado. A Triagem Interventiva, então, não se propõe a selecionar indiví-duos de uma massa, mas convida os sujeitos, um a um, a se escutarem e se implicarem nas queixas trazidas e na própria procura por um tratamento:

aqueles que aceitarem esse desafio e se colocarem ativos em seu processo terapêutico terão a oportunidade de dar continuidade a esse processo atra-vés dos serviços oferecidos na instituição ou fora dela; aqueles que não, tenderão a descontinuar os atendimentos por conta própria.

Vemos, portanto, que a Triagem Interventiva recebe esse nome por não aceitar de primeira mão aquilo que os pais formu-lam sobre os sintomas que notam na criança, mas por prolongar a escuta, de forma a possibilitar ao sujeito o contato com seus pro-cessos inconscientes, desvelando algo do desejo, e a ligação disso com a própria queixa. Isso se torna possível a partir da escuta psi-canalítica, que segue a regra fundamental da psicanálise, a associa-ção livre, e aproxima-se do que Freud denominou tratamento de ensaio. O tratamento de ensaio consiste em um período inicial de análise, cujo objetivo é levantar uma hipótese diagnóstica e viabi-lizar a transferência com o analista (FREUD, 1913 [1996]).

Se a busca por tratamento foi feita em um consultório particular, a passagem do tratamento de ensaio (ou entrevistas preliminares, segundo Lacan) para a análise propriamente dita é marcada pela ida do paciente para o divã, quando a transferência foi estabelecida, uma hipótese diagnóstica foi formulada pelo analista e houve a retificação subjetiva. No caso da Clínica--Escola, não se espera que no espaço de uma triagem essa passagem ocorra, embora possa haver o estabelecimento da transferência, o levantamento de uma hipótese diagnóstica e até o início de uma implicação subjetiva2.

A escuta aos pais em Triagem Interventiva parte dos seguintes pressupostos:

A estrutura psíquica da criança é formada a partir dos posiciona-mentos discursivos exercidos pelos representantes da função materna e paterna (MANNONI, 1979 [2004]).

“É próprio do amor parental esperar de seus filhos a realização dos seus ideais, (...) exigindo a realização de seus sonhos frustrados” (PRESTES, 2004, p. 01). A recusa da criança em realizar os ideais dos pais, na impossibilidade de se formalizar logicamente, converte-se em sintoma .

2 - É interessante observar um dos efeitos da triagem interventiva realizada com pais que procuram tratamento psicológico para seus filhos: uma vez facilitada a implicação dos pais no sintoma do filho, acontece muitas vezes de, por si mesmos, buscarem tratamento pessoal.

“O sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar” (LACAN, 1969 [2003], p.

369), e este pode representar a verdade do casal parental ou decorrer da subjetividade da mãe.

Portanto, localizar a criança no discurso dos pais pode esclarecer a queixa/sintoma apresentado e facilitar a decisão de encaminhamento.

Por sua vez, a implicação dos pais na formulação da queixa/surgimento do sintoma é por si só terapêutico. Ou seja, a mudança de posição dos pais – de uma postura passiva para uma postura ativa – em relação à gê-nese do sintoma já ocasiona mudanças na estrutura familiar.

Os pais, num primeiro momento, parecem estranhar a proposta da Triagem Interventiva, subestimam a importância da própria partici-pação e resistem, especialmente se colocados “contra a parede” – parede cuidadosamente erigida pelas próprias palavras. Esperavam, mais uma vez, falar do outro, e não de si:

De fato, quando narramos, temos a impressão de que podemos falar de algo que nos aconteceu, ou aconteceu com pessoas que conhecemos ou não, como se fôssemos meros espectadores [...] sem um envolvimento real ou imaginário com o que é narrado. Mas, por que narramos justamente aquilo e não outra coisa qualquer?

Por que ordenamos os eventos de uma dada maneira e não de outra? Por que enfatizamos algumas passagens do fato narrado e até mesmo ocultamos outras? [...] Assim, embora na narrativa haja um distanciamento aparente entre sujeito (quem fala) e objeto (sobre o que se fala), este objeto pressupõe logicamente um sujeito, o qual é apagado mas ainda está lá, entre os significantes. O sujeito, para dizer de outra forma, se reconhece no objeto e vice-versa.

(CARREIRA, 2002, p. 23).

Ou seja, por mais que o sujeito fale do outro, é de si mesmo que fala o tempo todo. Ser confrontado com isso causa certo

estranhamen-to, o que, na clínica, leva à aposta terapêutica. Apostar nos atos falhos – contradições, esquecimentos, lapsos – como sinalizadores do sujeito do inconsciente, portador da verdade capaz de elucidar o sintoma, é o convite feito pela escuta psicanalítica: a descoberta de que tudo o que até então se acreditou ser a totalidade de “si mesmo” não passa de uma parte da realidade, a do “sujeito barrado”.

Embora este não seja o objetivo primordial da Triagem Interven-tiva, é para esse caminho que as entrevistas de triagem indicam os pais.

No documento O Serviço de Psicologia na Universidade (páginas 120-124)