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Supremacia do Interesse Público sobre o Interesse Privado

CAPÍTULO III O NEO-REPUBLICANISMO E A RETOMADA DO ESPAÇO PÚBLICO:

3.1 Elementos Fundamentais da Teoria Neo-republicana

3.1.3 Supremacia do Interesse Público sobre o Interesse Privado

O republicanismo clássico, como já foi mencionado, estabelecia certa preponderância dos interesses públicos292 sobre os interesses individuais. O ideal aristotélico de que o todo precede as partes foi utilizado como um dos pressupostos do pensamento republicano, até mesmo daquele que se pretende mais democrático, como o de Rousseau, compreendeu que o interesse público – consubstanciado na vontade geral – deveria prevalecer sobre os interesses particulares.

Submeter os interesses individuais ao interesse da coletividade, todavia, tendo como pano de fundo os signos do totalitarismo, pode ser um tanto quanto perigoso, principalmente em decorrência do quanto subjetivo pode ser esse conceito de interesse público. As sociedades do século XX compreenderam esse perigo após o surgimento dos governos

291

ARENDT, Hannah. Op.cit., 2004a, p.226-257.

292

Cabe aqui uma distinção entre o significado de interesses públicos e bem comum, implicando a conseqüente distinção entre as teorias republicana e comunitarista. Enquanto o conceito de interesse público do republicanismo implica aquilo que é relevante para todos, o conceito de bem comum do comunitarismo está mais relacionado ao interesse de uma determinada comunidade ou grupo. O republicanismo, como teoria política, tem como meta manter o estado neutro em relação a concepções de bem, ao passo que o comunitarismo propõe um Estado capaz de assegurar determinada concepção de vida boa dos grupos que são minorias dentro de seu território. Este, como enfatiza Iseult Honohan, compreende a política como expressão

totalitários, nos quais o interesse público passou a ser o interesse do governante e, diante desse contexto, o preterimento dos interesses e direitos individuais culminou numa grande tragédia.

A tentativa de harmonizar os interesses individuais e públicos enfrenta problemas de duas ordens. Por um lado, a valorização exacerbada dos interesses individuais, lógica pertinente ao liberalismo, teria patrocinado a retirada do homem do mundo público e facilitado a sua imersão na vida privada, com o objetivo de cuidar de seus interesses particulares. Contudo, a submissão dos indivíduos ao interesse da comunidade ou público pode implicar a padronização e uniformização dos comportamentos e ações, fato característico do totalitarismo.

Os neo-republicanos têm desenvolvido sua obra atentando para esse fato. Suas propostas têm apresentado demasiada cautela na defesa da supremacia do interesse público, e os autores buscam, na maioria das vezes, conciliar este com os direitos e interesses privados.

A preocupação em proteger o indivíduo de um governante que possa tomar todas as decisões de acordo com sua vontade também está presente quando Quentin Skinner desenvolve a teoria dos Estados Livres em contraposição à liberdade liberal. Para o autor, somente um Estado governado por uma lei reconhecida como legítima pelos cidadãos pode ser considerado um Estado livre. Essa idéia contrapõe-se à liberdade como ausência de interferência pois, para esta, o importante para determinar o quanto um indivíduo é livre num Estado é o número de leis às quais ele está submetido, não importando se estas tenham sido fixadas por um monarca ou pelo corpo legislativo representando a vontade do povo.

Para Quentin Skinner, a única possibilidade de se assegurar os direitos individuais é num Estado Livre, porque neste os cidadãos terão a garantia de que seus direitos estarão assegurados pela lei e não dependerão da vontade arbitrária do governante. A preponderância

de valores pré-políticos compartilhados pela comunidade, enquanto aquele enfatiza que a comunidade é construída pela própria política. Cf. HONOHAN, Iseult. Op.cit., p.1.

nessa proposta ainda é para a liberdade do Estado, e a liberdade dos indivíduos fica condicionada àquela.

Iseult Honohan, compreendendo o interesse público para o republicanismo, significa aquilo que pode ser do proveito de todos; defende que, embora a virtude cívica e os direitos individuais sejam constantemente contrastados na teoria política, o republicanismo pode ser capaz de conciliá-los, uma vez que tomando o conceito de liberdade e virtudes cívicas como categorias centrais, a combinação de ambos pode acomodar uma série de direitos individuais293.

Talvez seja Richard Dagge quem melhor concilie esses dois conceitos. É, pois, esse o seu objetivo e o autor o efetiva desenvolvendo uma proposta na qual o Estado deve repensar os espaços de exercício da participação política para que os cidadãos possam, concomitantemente, terem assegurados os seus direitos políticos e também sua autonomia. O autor faz um apelo à responsabilidade dos estados em promover esses espaços e também dos indivíduos, em participarem dos espaços existentes.

O ideal de liberdade republicano, conforme anteriormente analisado, busca estabelecer certas garantias para que o interesse público não se torne opressivo. Philip Pettit, ao abordar este tema enfatiza que a não dominação tem que ser aplicada nas relações entre os indivíduos, entre estados e entre o Estado e os indivíduos. A não-dominação do primeiro sobre os segundos deve ser estabelecida através de condições determinadas constitucionalmente, tais como o império da lei – geral, não retroativa, bem promulgada – e da descentralização do poder294.

Mesmo buscando o equilíbrio entre interesses públicos e privados, impera ainda na teoria neo-republicana um certo predomínio do primeiro sobre o segundo. É possível observar essa preponderância quando Philip Pettit visualiza a possibilidade de o Estado interferir na

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Idem, p.160.

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liberdade contratual ou ainda na liberdade de imprensa para assegurar a ausência de dominação295.

Considerando a teoria dos estados livres desenvolvida por Quentin Skinner296, é possível observar que ela apresenta um grande potencial para opor-se aos signos totalitários, uma vez que seu pressuposto central é que os indivíduos somente podem ser livres num Estado Livre, ou seja, naquele em que o poder político encontra limites na legalidade. Entretanto, ao mesmo tempo esta teoria vincula a liberdade do indivíduo à do Estado.

Essa questão é fundamental para compreender como se dá, na proposta republicana, a defesa ou preservação dos direitos individuais. Se a ênfase no interesse público autoriza a supressão dos direitos individuais, pode-se dizer que há um conflito no que concerne à proteção do indivíduo pela comunidade política. Os neo-republicanos tentam enfrentar esse conflito tentando fazer com que os direitos e interesses individuais assumam tamanha relevância para essa teoria quanto o interesse público.

A tentativa é fundamental para fazer frente à supressão dos direitos fundamentais sempre que o que está em jogo é o interesse público. Todavia, para que isso se concretize, os direitos fundamentais precisam ser compreendidos como algo a ser defendido mesmo quando o indivíduo não é considerado um cidadão dentro daquela comunidade política, pois, caso contrário, seu direitos fundamentais continuarão a existir somente como direitos de um nacional. Essa questão se faz relevante quando analisados os casos de imigração.

Richard Dagge talvez seja quem mais se aproxime de uma solução plausível para tal problema, ao apresentar os limites da defesa exacerbada dos direitos dos concidadãos perante os estrangeiros297. Considera o autor que todos os indivíduos devem ter seus direitos fundamentais resguardados. Todavia, termina por afirmar essa prioridade dos patriotas ao

295

Esse tema será melhor trabalhado no item 3.2.2, quando se tratará da forma como o neo-republicanismo compreende o Estado. In: PETTIT, Philip. Op.cit., 1999, p.42.

296

Cf. SKINNER. Quentin. Liberdade antes do liberalismo. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.

compreender que aqueles que estão numa comunidade política agindo em cooperação clamam por um reconhecimento especial. A preferência derivaria então do fato de assumirem responsabilidades cívicas. Enfim, o cosmopolitismo não é mesmo uma das propostas republicanas, ao contrário, os republicanos têm um apego especial à questão da pátria. No entanto, a tentativa de conciliar os interesses públicos e particulares, por parte dos neo- republicanos, parece ser um importante passo na defesa dos direitos individuais.