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A Supressão dos Direitos Individuais e a Criação de Seres Humanos Supérfluos

CAPÍTULO I OS SIGNOS TOTALITÁRIOS E O DECLÍNIO DA POLÍTICA:

1.1 Os Signos Totalitários

1.1.3 A Supressão dos Direitos Individuais e a Criação de Seres Humanos Supérfluos

Após a Primeira Guerra Mundial, a Europa presenciou o surgimento de movimentos totalitários. O fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha e o bolchevismo na União Soviética são alguns exemplos desses movimentos que precederam ditaduras totalitárias e tiveram como objetivo organizar as massas, não as classes e nem os cidadãos, mas um grupo demasiadamente grande de pessoas sem identificação ideológica com uma classe ou um partido. Um elemento essencial para os movimentos é a força bruta e somente conseguem estabelecer-se em países com grande contingente populacional. “Somente onde há grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento é que se torna viável o governo totalitário”103.

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Cf. ARENDT, Hannah. Op.cit., 1989, p.275-276. 103

Hannah Arendt define massa como pessoas que “devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores.” O homem de massa da Europa, segundo

A criação de seres humanos supérfluos, como demonstra Hannah Arendt, todavia, vai sendo uma tarefa desenvolvida pelos regimes totalitários através da supressão dos direitos civis e individuais das categorias com as quais se defrontavam e que poderiam ser consideradas inimigas.

A supressão dos direitos individuais pode ser analisada, nos regimes totalitários, a partir do surgimento da categoria do “inimigo objetivo”. Eram incluídos nessa categoria qualquer povo, raça ou grupo que o movimento – ou governo – totalitário considerasse um obstáculo a suas metas104. Nessas condições, a categoria de suspeito poderia ser estendida a toda a população e qualquer crime que o governante vislumbrasse como possível deveria ser punido, tendo sido cometido ou não105.

Nas sociedades em que qualquer um pode ser inimigo em potencial, uma nova modalidade de pena surgiu. Tratava-se da medida policial preventiva, a qual se aplicava da seguinte forma: num primeiro momento, implicava a perda da personalidade jurídica dos grupos considerados como uma ameaça para o sistema totalitário; posteriormente, estas pessoas, já destituídas da proteção legal, eram deportadas; e, num estágio final, passaram a ser enviadas para os campos de concentração.

Hannah Arendt pode ser caracterizado pelo fracasso individual, pela crítica ao mundo em termos de injustiça específica e pela amargura egocêntrica. “A consciência da desimportância e da dispensabilidade deixava de ser a expressão de uma frustração individual e tornava-se um fenômeno de massa” Cf. ARENDT, Hannah. Op.cit., 1989, p.361.

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Hannah Arendt diferencia os movimentos totalitários dos governos. Segundo a autora, pode-se considerar a existência de apenas dois governos totalitários – o de Hitler na Alemanha e o de Stalin na URSS. Entretanto, mesmo quando os governos eram implementados, a autora enfatiza que o verdadeiro centro das ordens continuava a ser o movimento totalitário. Por essa razão, no trecho citado acima é possível fazer uso das duas expressões, pois, se as ordens eram colocadas em prática pelos governos totalitários, as decisões de comando que as precediam haviam sido tomadas dentro do movimento.

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Neste ponto, Hannah Arendt estabelece uma diferença importante entre as ditaduras e os governos totalitários. Segundo a autora, tanto a ditadura quanto o totalitarismo “significam o fim da liberdade política”. Todavia, na primeira, “a vida privada e a atividade não política não são necessariamente afetadas”, os crimes “são dirigidos contra os inimigos declarados do regime”, enquanto no segundo “a dominação total se estende a todas as esferas da vida, e não apenas à da política” e os crimes são cometidos contra “pessoas que eram inocentes mesmo do ponto de vista do partido no poder”. Cf. ARENDT, Hannah. Responsabilidade pessoal sob a ditadura. In: Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004b, p.95-96.

Os campos estavam fora do sistema penal normal, pois neste, um crime definido acarreta uma pena previsível. Naqueles não havia qualquer previsibilidade para a aplicação das normas, pois elas variavam de acordo com o humor daqueles que lá estavam para executar a vontade do governo total, segundo a qual todos deveriam ser exterminados106.

As práticas retiravam das pessoas a capacidade de agir pela imprevisibilidade das conseqüências desses atos. Entretanto, o que os internos dos campos não sabiam é que qualquer ação ou omissão acarretaria a mesma pena, justamente porque não havia nenhum crime, apenas uma constatação do governo de que aqueles que ali estavam eram prováveis ameaças para o ele.

Os campos de concentração foram instituições nas quais o governo totalitário pôde colocar em prática o seu pressuposto central – a idéia de que tudo é possível. Funcionaram como laboratórios onde o que estava sendo experimentado era a própria transformação da natureza humana. Buscavam a antecipação de uma lei da história ou da natureza, que para os nazistas consistiria na criação de uma sociedade da raça ariana, enquanto para os bolchevistas seria a extinção da sociedade de classes.

Todavia, o que possibilitou a realização do extermínio das pessoas enviadas para os campos foi que, mesmo antes de lá chegarem, já haviam sido destituídas de todos os seus direitos. O paradigma do campo é essencial para compreender a estrutura do totalitarismo, pois era o único local onde a superfluidade que se almejava realmente poderia ser realizada. Dentro daquela estrutura, a vida humana já não possuía mais nenhuma segurança e tampouco valor.

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Hannah Arendt relata, a partir do julgamento dos criminosos nazistas que atuaram no campo de concentração de Auschwitz, que a ordem do governo nazista era para que todos fossem exterminados, e o local reservado para a execução eram as câmaras de gás. Todavia, os internos ficavam à mercê do humor daqueles que coordenavam as atividades no local, e as execuções poderiam acontecer com maior ou menor brutalidade dependendo do estado de espírito dos responsáveis pelo campo; não havia qualquer previsibilidade ou

Giorgio Agamben demonstra a insignificância da vida no campo através de duas categorias: o homo sacer e a vida nua107. O homo sacer é o próprio indivíduo destituído de

todos os seus direitos fundamentais. Nessas condições, sua vida constitui a vida nua – aquela que pode ser retirada sem que constitua crime. O Estado de Exceção, como acima mencionado, é caracterizado pela suspensão do ordenamento jurídico do Estado de Direito. Ora, se é nesse ordenamento que estão assentados os direitos individuais, com sua suspensão estes também deixam de valer. A proteção constitucional aos direitos e liberdades fundamentais tais quais a vida, a liberdade, a opinião e a expressão, a locomoção, a propriedade e até mesmo os direitos civis e políticos não encontram mais nenhuma proteção legal.

Dessa forma, a supressão dos direitos individuais é o que pode fazer com que as pessoas sejam consideradas supérfluas, pois somente nessas condições é que sua vida pode ser ceifada sem que haja a culpabilização dos responsáveis.

1.2 A Ascensão do Estado de Exceção e a Localização do homo sacer – como pensar um