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Surgimento das favelas no Brasil e as primeiras experiências de urbanização

2. A QUESTÃO AMBIENTAL, URBANA E HABITACIONAL

3.5 O FENÔMENO DAS FAVELAS NO BRASIL

3.5.1 Surgimento das favelas no Brasil e as primeiras experiências de urbanização

O termo “favela” originalmente tem como grafia “favella” e é proveniente de uma planta existente na região de Canudos na cidade de monte Santo no Estado da Bahia. Após retornar da Guerra de Canudos, tendo como intuito impelir o governo a remunerá-los, os soldados ocupam em 1897 o Morro da Providência. O local ocupado por eles passa a ser denominado “Morro da Favella” (VALLADARES, 2000; 2013).

Em meados dos anos 1920, todos os aglomerados de barracos sem infraestrutura existentes no Rio de Janeiro passam a receber a nomenclatura de “favela”. Entretanto, a existência dessas ocupações é anterior a sua denominação, pois no final do século XIX, já existiam alguns aglomerados, inclusive anteriores ao Morro da Favella. A partir dessa época, a favela se torna prioridade para o poder público e os cortiços são deixados para segundo plano. Há, no entanto, uma hipótese de que os primeiros moradores das favelas sejam provenientes de cortiços, que tiveram seu número bastante reduzido no final do século XIX com a política de erradicação de cortiços (VALLADARES, 2000; 2013).

A relação que se estabelece entre a Guerra de Canudos e a favela, segundo Valladares “tem uma forte conotação simbólica que remete à resistência, à luta dos oprimidos contra um adversário poderoso e dominador” (2013, p. 29). A própria significação da Guerra de Canudos, considerada a precursora da questão fundiária no Brasil, com a resistência de seus ocupantes em se manter no local, a ação do Governo Federal para removê-los e a contradição do que ocorre no retorno dos soldados ao Rio de Janeiro, criando uma relação de dependência com o Governo. Após defender sua “pátria”, os combatentes não recebem seus pagamentos, e com a finalidade de pressionar o Ministério da Guerra que os enviou para extinguir a ocupação de Canudos, passam a ocupar o Morro da Providência (VALLADARES, 2000; 2013).

Ainda de acordo com Valladares (2013, p. 29-30), o “mito de origem da favela” pode ser associado à obra Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e a repercussão que sua publicação recebeu, uma vez que sua leitura dos fatos possibilitou que os estudiosos brasileiros pudessem compreender o fenômeno favela, ainda em formação.

As favelas são percebidas efetivamente como um problema somente a partir da década de 1950 (RODRIGUES, 2001). Por este motivo justifica-se a produção de um Censo específico das favelas. Havia a necessidade de conhecer o problema para poder intervir. Dessa forma, o Instituto Brasileiro de geografia e Estatística (IBGE), ao mesmo tempo em que realiza o Censo Demográfico da população brasileira de 1950, produz um Censo específico de favelas do Distrito Federal. O documento final, publicado em 1953, estabelece uma leitura das primeiras ocupações ocorridas na cidade do Rio de Janeiro e como se organiza a distribuição do espaço urbano na cidade.

Somente no Distrito Federal, segundo o Censo Demográfico de 1950, havia 169.305 habitantes (IBGE, 1953) diferindo um pouco do “Censo das Favelas” de 1949 realizado pela Prefeitura do Rio de Janeiro que levantou o número de 138.837 habitantes distribuídos em 34.528 moradias irregulares (VALLADARES, 2013). Em 1938 foi formada uma “Comissão Censitária dos Mucambos do Recife”, que realizou um recenseamento específico pelo fato de estimar-se em mais de 45.000 mocambos existentes na cidade (LIRA, 1996). Em São Paulo, considerando que as favelas surgiram somente na década de 1940, o número era relativamente inferior ao dos outros municípios citados: 8.488 moradias e cerca de 50.000 domicílios distribuídos em 141 favelas, constatado pelo levantamento efetuado pela Prefeitura em conjunto com a Sociedade para Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais (SAGMACS), em 1957 (SAMPAIO, 1998; BUENO, 2000).

O diretor da Divisão Técnica do Serviço Nacional de Recenseamento do Instituto Brasil de Geografia e Estatística (IBGE), Alberto Passos Guimarães, responsável pela elaboração do documento final, considera que nem toda a população pobre, anteriormente concentrada nos cortiços da região central, transfere-se para a região periférica, e destaca que o Distrito Federal não se diferencia do padrão de desenvolvimento comum a todas as cidades, tendo “a peculiaridade de conservar, dentro do perímetro urbano e ao lado de zonas

residenciais prósperas e confortáveis, núcleos de construções rústicas desservidos dos mais elementares melhoramentos” (IBGE, 1953, p. 1).

A crescente ocupação das zonas periféricas é explicada por Guimarães (IBGE, 1953) devido ao processo de valorização dos imóveis e o custo elevado da construção da moradia, dificultando a permanência da população mais pobre nas regiões centrais e bem servidas de infraestrutura e transportes. O diretor do IBGE ainda indaga se a solução é “rebaixar o preço da habitação ao nível das classes pobres ou elevar o poder aquisitivo das classes pobres ao nível do preço da habitação” (IBGE, 1953, p. 23). Ou seja, levanta-se a preocupação com a tendência de crescimento exponencial de ocupação em áreas irregulares, que se verá nas décadas seguintes, caso não seja proposta uma alternativa para a habitação social.

A questão do custo da terra é apontada por Maricato (2011) como um grande impedimento para equacionar a questão habitacional e responsável pelo crescimento das favelas e assentamentos informais. Ainda segundo a autora, esse aumento exagerado da população moradora em áreas irregulares ocorre, principalmente, nas décadas de 1980 e 1990, em função do baixo investimento em habitação social realizado pelo governo neste período (MARICATO, 2011).

Em contrapartida à política proposta pelos governos para erradicação de favelas, algumas ações são realizadas e se aproximam da Política de Urbanização de Favelas, como a Cruzada de São Sebastião na década de 1950, apoiada por grupos religiosos e representantes católicos, e a experiência pioneira de urbanização da favela Brás de Pina, implementada na década de 1960, promovida pela Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO) do Governo do Estado de Guanabara (VALLADARES, 2013). Valladares relata que a Cruzada de São Sebastião “desenvolveu uma atividade de grande amplitude voltada para a produção de moradias novas e equipamentos de infraestrutura, o que hoje se chama

urbanização de favelas” (2013, p. 77, grifo nosso).

A urbanização da favela Brás de Pina merece destaque por ser considerada uma das primeiras experiências de urbanização realizadas pelo poder público com a participação dos moradores e com a contratação de projeto. Iniciada em 1965 e executada pelo arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos, enquanto ainda era estudante, por iniciativa dos moradores, e efetivada entre 1968 e 1969, pelo escritório Quadra Arquitetos Associados, contratado pela Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO). Esse projeto foi desenvolvido em

conjunto com os moradores, que participaram ativamente de sua implantação, porém não sem alguns conflitos durante o processo (BUENO, 2000; SOUSA, 2003; PULHEZ, 2008; MARICATO, 2011).

Embora tenha havido uma participação ativa da comunidade em todas as etapas da urbanização, no decorrer do processo essa participação foi enfraquecendo, principalmente pela necessidade de aumentar a renda familiar para custear as despesas provenientes da urbanização. Segundo Sousa, algumas famílias perderam sua moradia por não terem condições de arcar com o custo que a urbanização acarretou (2003, p. 55). Esse é um problema que ocorre até hoje, pois a urbanização ocasiona melhoria na condição de vida o que não caracteriza o aumento de renda familiar. A regularização muitas vezes ocasiona um custo a mais para as famílias beneficiadas, que nem sempre têm condições de arcar com esse ônus.

A experiência de urbanização de Brás de Pina foi bastante significativa para Santos e demais membros da equipe, que tiveram a oportunidade de transgredir as regras e normas vigentes na cidade:

À favela e ao favelado — que no mais das vezes transitavam no imaginário burguês ora como representação pitoresca da “cultura popular” ora como “praga” urbana — lhes foi permitido, mais do que simplesmente existir, resistir na adversidade de sua existência urbana e requalificar a prática

política que sempre fez do ofício do arquiteto um mero aspecto do exercício

de poder (PULHEZ, 2008, p. 112, grifo do autor).

A intervenção contemplou abertura de vias, implantação de infraestrutura e remoção de algumas moradias, reassentadas em um terreno ao lado da favela. Essa experiência demonstrou que era possível manter a população no local, uma conquista da mobilização popular, que resistiu ao plano de remoção promovido pelo Estado, e em resposta às políticas públicas de erradicação de favelas, predominantes neste período (BUENO, 2000; DENALDI, 2003; SOUSA, 2003; PULHEZ, 2008).

Essas primeiras experiências de urbanização de favelas são fruto de um trabalho realizado em conjunto entre moradores e técnicos interessados em qualificar o espaço ocupado por moradias precárias e proporcionar alguma qualidade de vida a essa população, em um período onde as políticas de erradicação de favelas predominavam, principalmente nas décadas de 1960 e 1970.

Somente a partir da década de 1980, por iniciativa de alguns órgãos públicos, principalmente municipais, a política de urbanização de favelas começa a se intensificar.