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TECNOLOGIA E ARQUITETURA VERSUS SABERES TRADICIONAIS COMO AFIRMAÇÃO DE IDENTIDADE

No documento Patrimônio cultural no Estado do Tocantins: (páginas 118-123)

COMUNIDADE QUILOMBOLA BARRA DA AROEIRA/TO: O SABER

4. TECNOLOGIA E ARQUITETURA VERSUS SABERES TRADICIONAIS COMO AFIRMAÇÃO DE IDENTIDADE

E AUTONOMIA

O capitalismo no século XX radicalizou o processo de superação das antigas formas de produção (corporação de ofício e a guilda), ao promover o apagamento, dia após dia, de qualquer resquício de associação produtiva que pudesse significar o retorno a formas de produção pré- -modernas. Evidentemente, as proibições das associações dos operários em sindicatos ou órgãos representativos no século anterior, por exemplo, já mostravam que a superação do trabalho artesanal pelo industrial era central para o projeto da lógica de mercado neoliberal. Neste sentido, entender o processo de substituição de todo o trabalho emancipador, ainda que residualmente,

28 Note-se o entramado simples de bambu levado pela Universidade para a comunidade para uma experiência entre os moradores e os estudantes do Curso de Extensão Construção em Terra Crua: Adobe, Taipas de Pilão e de mão. Número: 301412.1639.73052.28032018 - UFT ministrado pelo autor. Logo no início da oficina, os moradores da comunidade se mostraram hesitantes em apontar para o que eles consideraram um equívoco, o entramado simples, logo que se sentiram à vontade comentaram que o entramado levado por nós da univer- sidade estava ‘errado’.

pelo trabalho alienado típico da administração científica do trabalho (Taylor), seria entender o desaparecimento mais ou menos abrupto de formas de organização do trabalho que remontas- sem à era pré-moderna e possibilitassem ao trabalhador algum tipo de horizonte emancipador.

Neste âmbito, a complexificação da tecnologia e a sua massificação repõe discussões já pautadas por Adorno e Horkheimer (1985) e Marcuse (1999), entre outros, sobre a definição e o papel da tecnologia no processo de exploração do trabalho e na concentração de riqueza, típicos do sistema capitalista de produção.

Antes, cabe aqui diferenciar claramente técnica de tecnologia, e explicitar o potencial de autonomia e liberdade presente na primeira e inexistente na segunda terminologia. Para Marcuse, a técnica se caracteriza pelos instrumentos utilizados para transformação da natureza pelo ser humano, já a tecnologia se refere a um modo de produção que organiza e difunde as relações sociais (MARCUSE, 1999). Dito nestes termos, a técnica, ainda que parcialmente, pode redundar em um processo de emancipação social. Na relação dialética entre o pensar e fazer, e, na busca por meios técnicos para diminuição do tempo e do esforço empregados na transforma- ção da natureza, abre-se para o/a trabalhador/a a possibilidade de se desalienar e construir ativa- mente sua liberdade. Já olhando pelo lado do termo tecnologia, dada a sua subsunção à lógica do sistema capitalista de produção para acumulação de capital, a possibilidade de emancipação, autonomia e liberdade do/a trabalhador/a se encontram impedidas, pelo simples fato de haver, no seio da própria tecnologia, a lógica de um sistema que tem por características, primeiro a acumulação, segundo, a reprodução de desigualdades sociais e, finalmente, a alienação do/a trabalhador/a.

Esta característica, de alienação do indivíduo ou sujeito através da tecnologia, longe de ser algo estranho à escola dos pensadores filiados ao que se convencionou chamar de Teoria Crítica, pode muito bem ser depreendida das teses ligadas ao conceito de razão instrumental, tão caro a este grupo de pensadores. O que significaria de maneira geral, que a própria noção de tecnolo-

gia, baseada em processos racionais plenamente operacionalizados, se produz pari passu com a

lógica do sistema capitalista de produção de maneira a reafirmá-lo, jamais transpô-lo.

Neste contexto, de apagamento da técnica e substituição desta pelo aparato tecnológico, é bem notável, por exemplo nos processos relacionados à modernização do sistema fabril por exemplo (no qual a artesania e o conhecimento acumulado pelo trabalhador era ainda visível e valorizado no início do século XX). A produção artesanal e seus resquícios chega ao seu ocaso na passagem do século XX para o XXI, de maneira que na atualidade é senso comum ligar a qualidade do objeto com o grau tecnológico de seu processo produtivo.

A arquitetura, ainda que não tenha sido a primeira, ao menos foi uma das atividades mais influenciadas pela dicotomia entre o trabalho artesanal não alienado e o trabalho da administra- ção científica da produção.

A tentativa de resistência à alienação e à desumanização do trabalho, produzida em uma base tecnológica subproduto do modo de produção que organiza e difunde as relações sociais serviria, no mais das vezes, para reafirmar a lógica própria interna sob a qual fora urdida. Neste sentido, pretende-se discutir o processo de substituição de uma base técnica de produção espacial por uma base tecnológica, desde a pressão exercida pela indústria da construção civil e sua fa- bricação de produtos e insumos com o intuito de “atualizar” os processos de organização da

produção da arquitetura e do urbanismo, até o papel da academia, ao reforçar diuturnamente as “vantagens” da produção com altíssimo grau tecnológico.

No século vinte, o fazer moderno, administrado pelas modernas técnicas de produção tornou-se um discurso dominante entre arquitetos e urbanistas. No entanto, nomes como Villanova Artigas, e uma grande parcela de seus discípulos atentaram para os efeitos mais dele- térios da aplicação massiva das modernas formas de produção espacial.

O que parece ser revolução de formas, de estilos, quando cutucamos por baixo, são momentos de conflitos sociais, de luta de classe nos canteiros. [...] no fim do século XIX [...] há um movimento operário fortíssimo na Europa, quando começam os sindicatos. Um deles, sobretudo, começa muito forte, meio anar- quista, mas muito dominado pelos trabalhadores da construção civil. Eles pedem não mais salários, nem folgas, nem férias, nem cinco minutos a mais para o almoço, mas pedem simplesmente o controle da produção. Eles querem que a produção de arquitetura seja dominada e conduzida por eles do começo ao fim: a destinação do projeto, a destinação do objeto e até as condições de produção, reivindicações estas evidentemente impossíveis. Os sindicatos mais fortes da França, nesta época, eram os sindicatos dos trabalhadores de madeira, dos trabalhadores em pedra: então não é à toa que nesse mesmo período se mudam os materiais. Não é por acaso que a arquitetura muda de materiais fun- damentalmente, passa para o concreto e para o ferro, destruindo, tirando a força desse pessoal dentro do canteiro. Começa a gloriosa arquitetura contemporânea, mudando de linguagem, mudando fundamentalmente a decoração no momento em que os operários estão fortes (FERRO, 2004, pp.9-10).

Na esteira deste processo, as formas de produção da casa, por exemplo, ficam submetidas aos ditames do mercado e suas tecnologias, entendidos neste caso como a ação conjunta da indústria de materiais construtivos, da produção espacial e de uma base tecnológica de produção do projeto.

No primeiro caso, a adoção de materiais construtivos para a produção da habitação rela- cionados diretamente com as características do lugar, geográficas, climáticas etc., com as carac- terísticas humanas, histórica, sociológicas, filosóficas etc., cede espaço para o uso de materiais produzidos segundo uma lógica pretensamente universal, que no ideário moderno era vista como um sinal positivo, mas que acabou por redundar em um apagamento das características locais em favor de uma submissão à lógica de um mercado global. No segundo caso, na atividade construtiva propriamente dita, cai por terra todo e qualquer conhecimento acumulado pelo traba- lhador que possa intuir algum tipo de autonomia, todas as ações no processo construtivo passam por um processo de operacionalização, de maneira a achatar o valor do trabalho e maximizar a lucratividade do capital.

Salvaguardar formas de produção que se ligassem diretamente às características históricas que dão sentido à ideia de uma comunidade tradicional, ou ainda, um saber fazer que signifi- casse uma independência dos membros da comunidade em relação à uniformidade da sociedade ocidental é uma ação de suma importância frente ao exposto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se por um lado, a manifestação de saberes vernaculares relativos a produção do edifício proporciona aos membros de comunidades tradicionais a tentativa de salvaguardar suas caracte- rísticas mais originais, por outro pode bem ser vista como forma de se produzir uma autonomia relativa a produção da moradia, que assim deixa de se submeter aos ditames do mercado pautado pela mercadologização e pelo valor de troca, e passa as se pautar pelos saberes tradicionais, pela inserção local e pelo valor de uso.

Tal hipótese traz para a preservação da forma diferenciada do fazer construtivo dos membros da comunidade quilombola Barra da Aroeira uma dupla chave de leitura. Se por um lado preserva a história da comunidade, e isto é fundamental para a sua existência, por outro aponta para uma autonomia da produção espacial que possibilita, de certa maneira, que a co- munidade se proteja das oscilações, da exploração e todos os problemas associados à produção espacial deo mercado. Ao conferir aos exemplares construídos mediante técnicas vernaculares próprias dos membros da comunidade, majoritariamente o valor de uso, ao invés do valor de troca típico do mercado imobiliário urbano, o espaço quilombola deixa de ser entendido a partir do valor de troca. Poder-se-ia obstaculizar que o território no qual está assentada a comunidade quilombola, este sim poderia ser entendido a partir do valor de troca, mas tal entendimento se chocaria com a manutenção dos elementos culturais e históricos responsáveis pela outorga do título de propriedade que a comunidade tem de seu território.

Dito assim, a preservação do saber vernacular importaria para a comunidade, mais do que apenas mais uma curiosidade turística, mas como busca de autonomia e como constituição de um patrimônio histórico no qual se assentasse o próprio direito ao território. De uma maneira mais simples, a comunidade tem direito ao território por fazer parte de uma história excepcional que remonta ao século retrasado, e que a preservação desta história é a preservação do próprio território.

REFERÊNCIAS

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COMMONER, Barry. The Closing Circle: Nature, Man, and Technology. New York: Knopf, 1971.

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SANTOS, Roberto Eustaáquio dos. A armação do concreto no Brasil: história da difusão do sistema construtivo concreto armado e da construção de sua hegemonia. Tese de Doutorado UFMG – Belo Horizonte, 2008.

MEMÓRIAS: O PROFESSOR

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