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TEMA: Ensino Tradicional

No documento POR UMA OUTRA GEOGRAFIA ESCOLAR (páginas 171-176)

Capítulo 2: Fundamentação Teórica

4.3. TEMA: Ensino Tradicional

A adoção de práticas tradicionais de ensino estão fortemente ancoradas em um paradigma comportamentalista que atribui aos professores o papel de “entregadores de conteúdos predeterminados”

(Kincheloe, 1997: 199) definidos por instâncias distantes dos professores,

responsáveis pela elaboração de materiais didáticos para os alunos, que na verdade transformam-se para os professores em manuais de instrução de como ensinar. Essa realidade pode ser observada por meio dos sentidos que serão analisados a seguir. São eles:

• É difícil sair da apostila;

• O material didático garante a qualidade do ensino, não o professor.

4.3.1. É difícil sair da apostila

No caso da instituição pesquisada, o material didático não é escolhido pelo professor. Trata-se de um conjunto de apostilas utilizadas por uma grande variedade de escolas que compõem a rede de ensino, responsável, também, pela elaboração do PP da escola, o que deveria garantir uma coerência entre seus conteúdos. Porém, pelas respostas dos professores é possível inferir que, aparentemente, o material utilizado não

atende àquilo que eles gostariam de adotar. Como é possível observar pelo próximo excerto.

QUADRO 4.8. Dificuldade em fugir da apostila

TEMA ENSINO TRADICIONAL

CONTEÚDO TEMÁTICO

Importância do material didático

SENTIDOS É difícil fugir da apostila

EXEMPLOS Mô20A - Então, como vocês encaram isso? O fato era

essa a minha pergunta que ficou lá atrás. É uma questão que não é de vocês a escolha do material, isso é uma questão importante ou não?

Walter 8A - É. Quem trabalha é o professor dentro da sala de aula, o professor tem que pedir o melhor material. Às vezes você não consegue fazer o que

gostaria de fazer, você tem que se adequar.

A fala de Walter, em relação ao material didático, demonstra que “você não consegue fazer o que gostaria de fazer, você tem que se adequar”. Essa assertiva mostra que o professor identifica a necessidade de adequação ao sistema, às regras, muitas vezes impostas pelos instrumentos da atividade. Ainda sobre o mesmo conteúdo temático, a próxima seção mostra que é possível analisar outros sentidos e significados atribuídos pelos professores ao material didático, utilizado como principal instrumento da atividade ensino-aprendizagem.

4.3.2. O material didático garante a qualidade do ensino,

não o professor

Apesar do desconforto demonstrado pelos professores ao longo das SR sobre a imposição das apostilas, as escolhas lexicais utilizadas pelos participantes revelam outro sentido para essa adoção, demonstrando uma valorização desses materiais prescritos, como garantia da qualidade de ensino, do cumprimento dos conteúdos e novamente a importância do vestibular, como se pode aferir no próximo excerto.

QUADRO 4.9. A garantia do material didático

TEMA ENSINO TRADICIONAL

CONTEÚDO TEMÁTICO

Importância do material didático

SENTIDOS O material didático garante a qualidade do ensino, não o professor

EXEMPLOS Mô27A – Então, voltamos à questão do material como norteador. Dilma23A - Apesar de eu gostar muito disso aqui (material em

fascículos da outra escola que a professora trabalha), eu vejo muitas falhas nesta escola, baseadas nesse excesso de liberdade, que algumas pessoas têm, e eu não acho que é um descompromisso, mas eu acho que alguns professores, principalmente os mais jovens que nunca trabalharam no sistema tradicional, talvez não é por falta de responsabilidade que eles não fazem, talvez seja por falta de conhecimento mesmo. Não é que o cara não tem um compromisso, mas ele não tem experiência, e como o material não trás a seqüência de conteúdos e conceitos, talvez porque ele não trabalhou num outro esquema....

Walter 10A - ele não sabe exatamente o que cai no vestibular, ele não

sabe o que vai ser fundamental, e aí ele olha de uma outra maneira e acaba deixando algumas brechas em conteúdos que são fundamentais.

Mô28A - Mas quem define o conteúdo fundamental? Quem define o

conteúdo fundamental daquela escola? em qualquer contexto de ensino- aprendizagem quem define o que é fundamental, no final é o vestibular?

Walter 11A - Acho que é o final lá. O vestibular é que vai definir. Dilma24A – eu acho que tem os PARÂMETROS que também.

Através da comparação entre materiais didáticos de diferentes escolas, as palavras de Dilma, certamente pronunciadas sem consciência de seu cunho autoritário, indicam uma aceitação de instrumentos de controle do trabalho do professor. Além disso, evidencia que, o material didático exerce esse papel, inibindo aquilo que ela considera “excesso de

liberdade, falta de conhecimento mesmo”, por não apresentar as características de peculiares de uma apostila na qual se encontra a visão mais tradicional da Geografia. Observa-se que os substantivos excesso e

falta são utilizados como elementos que desqualificam os professores como profissionais autônomos, capazes de realizar escolhas e de selecionarem materiais adequados.

Walter reforça a visão da professora através da repetição do pronome “ele”, que se torna um ser referido, mas não identificado, revelando uma concepção que desvaloriza o trabalho realizado por outros

professores de Geografia, indicando uma generalização, que acaba por incluir a todos. Fica implícito que os professores se consideram diferentes dos demais colegas. Essa posição exotópica adotada pelos participantes não vem acompanhada de uma postura crítica e reflexiva, pois está baseada no senso comum, partindo da premissa que, de um modo geral, os professores não sabem trabalhar bem e que, o ensino não é bom. A prática docente crítica requer, na concepção freiriana, o “pensar certo” construído por um movimento dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer (Freire, 1996/2006).

Nesse excerto, as escolhas lexicais expressam a contradição dos professores quando Dilma afirma que “os mais jovens que nunca

trabalharam no sistema tradicional”, reforçada por Walter ao dizer que “ele

não sabe exatamente o que cai no vestibular, ele não sabe o que vai ser fundamental”, ambos indicando que a qualidade do ensino da Geografia depende do “tradicional” e do “vestibular” os quais definem o conteúdo “fundamental”. A partir dessa constatação, é possível concluir que o uso desses adjetivos legitimam o vestibular como objeto da atividade realizada por eles.

Todavia, os professores afirmam nas SRs e no questionário que o fundamental é, nas palavras de Dilma, “formar cidadãos conscientes,

críticos, com visão de mundo abrangente e que valorizem a história dos povos”,

ou na visão de Walter ao dizer que o objeto da Geografia é formar

“cidadãos mais críticos que poderão pensar um mundo diferente e melhor para viver”. Ainda, como entende Isabel, a função da Geografia é “ajudar a

entender a ocupação do espaço, como foi e é apropriado, as relações de poder presentes”. As escolhas lexicais dos participantes remetem aos textos prescritos e aos objetivos da Geografia Crítica.

Na perspectiva bakhtiniana, esse falar dos participantes remonta à discussão entre a palavra de outrem, que pode se apresentar em duas categorias distintas: palavra de autoridade e palavra interiormente persuasiva. Nas respostas em foco, a o discurso de outrem se reporta à palavra de autoridade que adquire status de verdade absoluta, até porque, tais afirmações são incontestáveis por estarem prescritas nos documentos

oficiais. Fazem parte do desenvolvimento de competências e habilidades tendo como meta “estimular o desenvolvimento do espírito crítico” identificando “as contradições que se manifestam espacialmente, decorrentes dos

processos produtivos e de consumo. A estrutura semântica e cristalizada dos textos prescritos e seu sentido rígido, não permitem qualquer jogo com o contexto que a enquadra, uma vez que, essa palavra de autoridade mantém uma relação de distância e inércia entre teoria e prática (Bakhtin, 1988).

Ademais, o conjunto do excerto apresentado reforça os pressupostos da Geografia Tradicional, indicando que na cultura escolar, o gênero da atividade difícil de ser rompido, porque a própria comunidade de professores de Geografia reitera os paradigmas que a Geografia Crítica e as mais recentes propostas educacionais presentes nos materiais prescritos tentam romper.

O descompasso entre teoria e prática, no contexto da escola pesquisada, aponta para uma realidade mais ampla em que se observa o domínio em relação àquilo que os materiais prescritos propõem, ao mesmo tempo em que se nota uma falta de consciência sobre o que tais propostas implicam. Esse quadro, assinala para a dificuldade de mudanças no conjunto da atividade de ensino-aprendizagem e, para o impacto dessas alterações em toda a cadeia de atividades na qual a Geografia escolar está inserida.

Com isso, se conclui que falar sobre as novas propostas, afirmar que o conhecimento precisa ser construído e não transmitido ou, ainda, defender a educação como elemento fundamental para a cidadania, não altera o cotidiano escolar, a prática pedagógica, ou seja, as regras, a divisão de trabalho, os valores da comunidade, os instrumentos e, principalmente, os sentidos e significados que os sujeitos atribuem ao objeto da atividade. Essa constatação remete, novamente, ao tema da relação teoria e prática, como será visto na próxima subseção.

No documento POR UMA OUTRA GEOGRAFIA ESCOLAR (páginas 171-176)