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A TEMPORALIDADE SARTRIANA

No documento COGITO E TEMPORALIDADE EM SARTRE (páginas 55-58)

20 do ser consigo mesmo “Nesse sentido, é preciso que nos façamos ser o que somos”.

2. A TEMPORALIDADE SARTRIANA

É com uma certa reserva que abordo o exame da tem poralidade. O tem po sem pre me pareceu um quebra- cabeça filo só fico e eu construí, sem lhe d a r atenção, uma filo so fia do instante (aquilo que K oyré me censurou certa noite de jun h o de 39), p o r não com preender a duração. Em A N áusea afirmo que o p a ssa d o não é e, pou co antes, tento reduzir a m em ória a uma fic ç ã o verdadeira. N os meus cursos exagerei a p a rte d a reconstrução na recordação, p orq u e a reconstrução se opera no presente. E ssa incom preensão com binava muito bem com minha fa lta de solidariedade p a r a com igo mesmo, que me fa z ia ju lg a r insolentem ente meu p a ssa d o morto, do alto do meu presente. A s dificuldades de uma teoria da memória, bem com o a influência de Husserl, levaram -m e a conferir ao p a ssa d o uma espécie de existência, mais exatamente a existência no passado. E aceitei mais facilm en te essa nova idéia porqu e estava muito em baraçado e vexado p o r me ver lançado, o único instantaneísta, no meio das filoso fias contemporâneas, todas elas filo sofia s do tempo. Em A P sique tentei tirar o tempo, dialeticam ente, da liberdade. P a ra mim, era uma audácia. M as nada disso estava ainda maduro. E atualm ente entrevejo uma teoria do tempo. Sinto-me em baraçado ao expor minha teoria. Sinto-me um garoto.

2.1. O PROBLEMA DO INSTANTE

2. 1. 1. A REALIDADE DO INSTANTE EM DESCARTES

Procuramos mostrar na primeira parte dessa dissertação que o cogito pré-reflexivo não se constitui como uma estrutura anterior ao movimento pelo qual a consciência se transcende rumo ao “si mesmo” que lhe falta. Isso abriu caminho para abordarmos o problema do tempo propriamente dito. Mas Sartre não constrói a sua tese sobre a temporalidade alheio às questões tradicionais da filosofia em relação a esse tema. Ao mesmo tempo em que é herdeiro dessa tradição, ele procura superá-la em alguns pontos fundamentais. Um desses pontos a ser superado é a primazia do instante na constituição do tempo e um dos autores freqüentemente citado quando se trata de apontar essa primazia do instante é Descartes. Na introdução dessa dissertação classificamos Sartre como um cartesiano. Mas Sartre gradualmente recusou, em sua obra, a herança instantaneísta de Descartes. Sartre passou da concepção instantaneísta da existência descrita em A Náusea (que veremos adiante) para uma descrição da temporalidade onde não há lugar para o instante. Porém, antes de mostrar como isso acontece em Sartre, devemos esclarecer alguns pontos dessa tradição cartesiana.

O cogito é o fundamento da filosofia de Descartes. O cogito fornece uma intuição imediata e apodítica. Essa intuição revela um ser: o ser do sujeito que pensa. Mas essa intuição tem uma peculiaridade1 que será determinante para o problema do tempo: ela só fornece o presente. O intuído, diferentemente do posicionado, não se mostra em uma seqüência de aparições: a intuição não revela uma forma, revela um ser. Não é fimção da intuição ir além do intuído: a intuição se limita a afirmar esse intuído. Porque a intuição não se confunde com nenhuma forma de abstração, ela só fornece algo que está aí, presente à consciência. “Uma conseqüência importante desta concepção de conhecimento é que o

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conhecido intuitivamente há de ser tão pontual, tão instantâneo, como a intuição.” Se o intuído se revela para a intuição como algo pontual, está descartada nela qualquer relação do ser presente com um passado e um futuro. Assim, a repetição da intuição fornece apenas uma soma de instantes e não uma duração. Descartes, por privilegiar essa intuição

1 Apontada por Rafael Corazón em Presupuesto de la noción de creación continuada. Existência y tiempo en Descartes in Themata. Revista de Filosofia. Sevilla, 1996, n° 16, p.65-84.

e fazer dela ponto de partida de sua filosofia, adotará a concepção instantânea do tempo. Vejamos.

O afirmado na intuição não se submete às determinações do pensamento. Sua realidade é soberana: ela existe à margem das “produções” do pensamento. A existência desse ser é uma existência como substância, como em-si. A intuição do cogito fornece a evidência dessa substância. A substância pensante que se revela no cogito, como todo real, surge instantaneamente. Segundo Corazón: “Ser em Descartes é pura atualidade, puro presente, imobilidade, ser já tudo o que se é: instantaneidade.”3 Essa existência, das coisas extensas e das coisas pensantes, não implica uma permanência no tempo: a existência atinge toda sua plenitude em uma realidade instantânea. Assim, em Descartes, a existência não implica na duração: existência e duração não são coisas idênticas. Mas então, o que é o tempo em Descartes? Não é, como quer Gassendi, algo apreendido através da diversidade: algo que existe à parte da existência da coisa.4 O tempo é identificado com a duração da própria coisa. Porém, se o ser é instantâneo, como pode haver duração? Todo ser é resultado de uma criação divina: a conservação da coisa depende do ato criador divino. Então, a duração também dependerá de uma criação continuada por parte de Deus desse existente. Na terceira Meditação, Descartes esclarece essa relação entre a continuidade no tempo e a criação continuada. “Pois todo o tempo de minha vida pode ser dividido em uma infinidade de partes, cada uma das quais não depende de maneira alguma das outras; e assim do fato de ter sido um pouco antes não se segue que eu deva ser atualmente, a não ser que neste momento alguma causa me produza e me crie, por assim dizer, novamente, isto é, me conserve.”5 A continuação no tempo não é a continuação de uma realidade natural, essa continuação depende diretamente da ação divina. Descartes insiste, um pouco adiante da passagem que citamos, na identidade entre conservação e criação. “Com efeito, é uma coisa muito clara e muito evidente (para todos os que considerarem com atenção a natureza do tempo) que uma substância, para ser conservada em todos os momentos de sua duração, precisa do mesmo poder e da mesma ação, que seria necessário para produzi-la e criá-la de novo, caso não existisse ainda.”6 Portanto, é necessário a intervenção de Deus para que haja continuidade nessa existência fragmentada. A criação não confere ao ser criado uma existência duradoura, mas uma existência que deve ser perpetuamente

3 Idem; p.75.

4 Tese que Descartes refuta nas Respostas às 5a Objeções, contra a 3a Meditação. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural. 1996. p.402.

5 Descartes, René. Meditações, Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural. 1996. p. 292.

prolongada de instante em instante. Não há nada nessa existência que implique seu prolongamento no instante posterior. Assim, como observa Bréhier7, não há uma persistência das coisas, mas de uma vontade produtiva.

Essa criação do existente por parte de Deus é uma criação ex-nihilo\ o que existia no momento A recaiu no nada e o que passa a existir no momento B surgiu do nada. Assim, se não há qualquer prolongamento de um instante no outro é porque Deus cria separadamente um instante do outro. A ligação entre as partes do tempo é contingente: a permanência de um instante para o outro depende exclusivamente da constância da criação divina. Desse modo, se há algo em Descartes que podemos chamar de tempo, esse algo depende de Deus.

Para Descartes, o tempo concreto, ao contrário do tempo abstrato, não é um contínuo: o tempo real é descontínuo.8 Assim, Descartes afirmará que todos os instantes do tempo podem ser separados daqueles que o seguem.9 O próprio sujeito, que é uma substância, uma res cogitans, é submetido a essa separação. A intuição pura do cogito, que escapa à memória, só fornece o presente pontual. Logo, a duração não é uma conexão intrínseca entre os momentos do ente. Cada instante que participa dessa duração é intemporal. A independência das partes do tempo fará com que a organização temporal seja externa ao próprio tempo. A inserção temporal do instante só surgirá através da organização que Deus efetua no mundo através de seu ato criador. A sucessão verdadeira será resultado do ato extra-temporal pelo qual Deus cria o mundo.

Sartre insistirá na dificuldade do estabelecimento de uma relação entre o antes e o depois para um ente que é recriado a cada instante: “(...) o mundo se dissolve em uma poeira infinita de instantes, e é um problema para Descartes, por exemplo, saber como pode haver trânsito de um instante ao outro.”10 Sartre apontará que, uma vez cindida a existência em instantes, só podemos afirmar que há um antes e um depois concebendo uma testemunha exterior que estabeleça essa sucessão. É justamente isso que acontece em Descartes: Deus, que não está submetido ao tempo, estabelece uma relação entre seus atos de criação e, assim, entre os momentos do tempo. “A temporalidade se transforma em simples relação externa e abstrata entre substâncias intemporais: pretende-se reconstruí-la

6 Idem, Ibidem.

7 Bréhier, E. La création continuée chez Descartes in Études de Philosophie Moderne. Paris: PUF, 1965, p. 56.

No documento COGITO E TEMPORALIDADE EM SARTRE (páginas 55-58)