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Os tempos da pesquisa de campo: o trabalho do etnógrafo e cultura emotiva numa comunidade costeira

No documento Sociabilidades Urbanas (páginas 55-63)

The fieldwork times: the work of ethnographer and emotional culture in a coastal community

Rubens Elias da Silva Resumo: Este artigo tem como interesse compreender as dificuldades na pesquisa de campo entre pescadores costeiros do sul potiguar a partir da tensa negociação entre o tempo do grupo investigado e o interesse do investigador em adequar esse mesmo tempo na sua passagem em campo. Discutindo a partir das reflexões de Koury (2018), as sociabilidades desencadeadas através das interações em mim e os outros numa cultura emotiva, cuja base é o estabelecimento de laços estreitos de interação e intensa pessoalidade.O interesse do pesquisador de campo em levantar dados relevantes e, às vezes, a paradoxal desconfiança dos pescadores pode levar a sensação – por parte dos pescadores – de que o trabalho etnográfico é secundário. Essa desconfiança é um dispositivo moral elaborado no sentido de proteção contra desconhecidos e uma estratégia hábil para proteger-se de mostrar-se publicamente as emoções privadas. Palavras-chave: etnografia, cultura emotiva, sociedades costeiras, pesca, comunidade

Abstract: This article aims to understand the difficulties in field work between coastal fishermen of the South Potiguar from the negotiation between the time of the investigated group and the interest of the researcher in adjusting that same time in his passage in field. Discussing from the reflections of Koury (2018), the sociabilities triggered through the interactions in me and others in an emotive culture, whose basis is the establishment of close ties of interaction and intense personality. The field researcher's interest in raising relevant data and sometimes the paradoxical distrust of fishermen can lead to the sensation – on the part of the fishermen – that ethnographic work is secondary. This distrust is a moral device elaborated in the sense of protection against strangers and a skillfulstrategytoprotectthemselvesfrompubliclyshowingprivateemotions. Keywords: ethnography, emotional culture, coastal societies, fishing, community

Este artigo é resultado das reflexões etnográficas empreendidas pelo mim em duas comunidades costeiras do litoral sul do Rio Grande do Norte, a saber, Barra do Cunhaú, em Canguaretama e Baía Formosa. Pretendo discutir aqui as dificuldades na pesquisa de campo entre pescadores costeiros do sul potiguar a partir da tensa negociação entre o tempo do grupo investigado e o interesse do investigador em adequar esse mesmo tempo na sua passagem em campo. Discutindo a partir das reflexões de Koury (2018), as sociabilidades desencadeadas através das interações em mim e os outros numa cultura emotiva, cuja base é o estabelecimento de laços estreitos de interação e intensa pessoalidade. Acrescenta-se, ainda, que o desenvolvimento dessa temporalidade da pesquisa de campo está intimamente ligado a uma ordem social ditada pelo ritmo natural internalizado nas sociabilidades costeiras.

É inegável que a pesquisa de campo é o coroamento do ofício ou métier do cientista social (mais especificamente, o antropólogo), pois propicia o confrontamento das reflexões teóricas mediante as práticas sociais e a fundamental interação intersubjetiva entre pesquisador e grupo investigado. Sem dúvida, a antropologia erige- se sob o rótulo de ser uma disciplina elaborada no gabinete, distante dos grupos

pesquisados, munida higienicamente com documentos trazidos por aventureiros e viajantes, orientada por um viés marcadamente evolucionista (CLIFFORD, 2002; PEIRANO, 1992). Há cerca de um século, a pesquisa de campo cunhada numa abordagem etnográfica legitimou-se como campo analítico do entendimento da cultura do outro, com todas as demandas que este empreendimento metodológico exige de seus pesquisadores (PEIRANO, 1992; DA MATTA, 1985). Segundo Da Matta (1985), o modo característico da pesquisa de campo é obter dados para a reflexão teórica, exigindo do pesquisador permanência longa e análise profunda da sociedade observada, os valores morais e sistemas culturais específicos dela. Sem dúvida, um empreendimento dessa envergadura envolve aspectos práticos que demandam mudanças contextuais relevantes para o debate acerca do fazer antropológico. Apesar de todas as renúncias que essa postura metodológica e de vida exigem, o desenvolvimento da disciplina antropológica só foi possível por conta das experiências empíricas acumuladas a cada geração de pesquisadores em suas vivências em campo. Portanto, não é exagero afirmar que o trabalho de campo é um rito de passagem, que implica na possibilidade concreta de se estabelecerem novas sociabilidades por meio de uma socialização negociavelmente controlada (DA MATTA, 1985).

É neste momento que se observa o quanto essa socialização negociada gerou um dos debates mais acalorados em torno do trabalho de campo na antropologia no século XX (CLIFFORD, 2002; PEIRANO, 1992). Primeiramente, as experiências do campo vividas por Evans-Pritchard, entre os nuer, uma sociedade tribal nilota, expuseram as dificuldades de ordem prática e existencial que enfrentam aqueles que passam pelo rito de passagem em campo. E que o próprio etnógrafo descreveu sua situação de desconforto material e psicológico, tornada aguda pela dificuldade linguística, numa idiossincrasia chamada nuerose (EVANS-PRITCHARD, 1999, p. 19). Outro caso relevante para ser exposto aqui é o da inserção de Malinowski no universo cultural dos trobriandeses, cuja publicação póstuma dos seus diários expôs um pesquisador com sofrimentos de ordem psicológica e física que foi potencializado (PEIRANO, 1992), sugere-se, pelo distanciamento do universo cultural e familiar dele, ou até mesmo como um hipocondríaco autocentrado, envolvido na luta pela conservação da confiança em si para se manter coerente (CLIFFORD, 2002). Exemplos não faltam: Sol Tax era um tolo na concepção moral dos índios Fox; Roberto DaMatta sentiu o anthropological blues entre os Apinajé e Anthony Seeger cantou para os Suyá, segundo Peirano (1992).

Em que medida a pesquisa de campo vivida por mim foi influenciada pela interpenetração do ritmo natural com a ordem social? E como tornou possível a negociação desse tempo para a pesquisa, uma vez que eu, enquanto pesquisador, era enxergado como agente externo e por que não dizer estranho, situação semelhante vivida por Nicolau (2011) entre pescadores de Barra da Jangada, no extremo sul da Baía? É nessas questões de ordem prática e culturalmente marcadas que pretendo desenvolver o texto aqui apresentado.

A experiência vivida: essa eu preciso contar

Embora já tivesse razoável experiência em pesquisa de campo, oportunizada na comunidade ribeirinha da Casa Branca, em Bayeux, na Paraíba, que resultou no livro Sob o Olhar do Pai do Mangue (SILVA, 2011), enfrentar uma nova ida ao campo, dessa vez em duas comunidades costeiras foi uma situação que se apresentou, desde o primeiro momento, como um desafio. Vamos inicialmente ao contexto no qual conheci a comunidade de Barra do Cunhaú: fui convidado por um casal de amigos a passar o fim de semana na casa dos pais, que moram lá desde adolescência. Ao chegar à Barra, fiquei interessado pelo espaço devido a grande concentração de canoas e barcos à

margem do rio Cunhaú. Fui recebido pelos pais de Antonio35 e através deles eu conheci Seu Menininho e Seu Aldo, antigos pescadores de arrasto e linha da comunidade, que me contaram ao longo de várias noites regadas de muita dançam de coco e aguardente com limão as histórias e percepções que tinham a respeito da atividade produtiva pesqueira. Após longas discussões que julguei relevantes, decidi conversar com meu orientador de então, o professor Andrea Ciacchi, pela possível inclusão de Barra do Cunhaú na minha pesquisa de Doutoramento, ainda em fase de exploração. Andrea aceitou tacitamente e pus-me a planejar um quadro de atividades exploratórias para entender, a partir de uma pesquisa etnográfica, o processo de transformação social sofrido pela comunidade costeira mediante a introdução de novos meios técnicos no âmbito da pequena produção pesqueira local e o desenvolvimento turístico e imobiliário ali localizado. Barra do Cunhaú é uma comunidade costeira do município de Canguaretama que tem como principal atrativo de ordem econômica o mercado turístico, que abriga resorts, hotéis e pousadas na orla da praia local e a pesca artesanal. Segundo Sérgio Canoa e Seu Menininho, a comunidade possui uma população de 3.000 habitantes. Barra do Cunhaú já teve a pesca artesanal estuarina e de mar de dentro36 como relevante atividade econômica, mas em decorrência de muitos fatores dissociativos, aqueles que se reproduziam socialmente através da lida pesqueira migraram para o trabalho assalariado ou à informalidade. Foi na pesquisa exploratória que fui estimulado pelos pescadores locais de Barra do Cunhaú que seria interessante visitar Baía Formosa, município localizado na outra margem do rio, para pesquisar um ―lugar que tem muita pesca de peixe grande, lagosta e tem comércio. Aqui as coisa afracou‖, me disse um pescador de linha local.

Dessa forma, fui estabelecendo redes de contato em Barra do Cunhaú e foi, através delas, que me inseri no universo pesqueiro de Baía Formosa. Baía Formosa é um importante município potiguar na produção de pescado. O município de Baía Formosa foi criado pela lei 2.338, a 31 de dezembro de 1958, desmembrando-se de Canguaretama, do qual era distrito. O município está localizado no Estado do Rio Grande do Norte, na microrregião do Litoral Sul e faz divisa com o Estado da Paraíba. De acordo com o Censo de 2010,37 Baía Formosa tem uma população estimada de 8.500 habitantes, numa área territorial de 246 quilômetros quadrados. Limita-se ao norte e ao leste com o município de Canguaretama e ao sul com o Estado da Paraíba. A leste, Baía Formosa é banhada pelo Oceano Atlântico. A sede do município está a 6° 22´ 10´´ de latitude sul e 35° 00‘ 28‘‘ de longitude oeste. Baía Formosa é conhecida pelas suas belezas naturais e a economia local é impulsionada pela pesca artesanal, que envolve mais de mil pescadores artesanais cadastrados na Colônia de Pescadores Z-11.

Uma das circunstâncias mais difíceis em campo é encontrar o (seu) lugar no tempo dos outros. Quando me refiro à lugar, não é alusivo ao sentido topográfico propriamente. É, sim, no sentido de estabelecer redes, ser reconhecido socialmente no grupo que pesquisa, assumindo todo o ônus que esse reconhecimento exige. Enfim, ser acolhido com todas as circunstâncias que circunscrevem a pesquisa. E este trabalho exige tempo, senso crítico e muito humor.

O pesquisador quando se propõe a realizar uma pesquisa de campo está, em linhas gerais, suscetível a externar sentimentos como decepção, medo e raiva. Faz parte do comportamento humano a manifestação dessas idiossincrasias. Lembro-me claramente da tarde chuvosa de maio de 2009, depois de uma longa viagem de ônibus interestadual. Ao chegar a Barra do Cunhaú fui à casa de um pescador artesanal. Dei

35

O nome foi intencionalmente modificado para preservar a privacidade das fontes. 36

Segundo pescadores artesanais locais, compreende a atividade de pesca efetuada próxima à praia. 37

sorte: encontrei-o em casa, sentei, tomei um copo com água, conversamos calorosamente e combinamos de encontrarmo-nos à noite, na casa dele, para levantar algumas questões da pesquisa. Entusiasmadíssimo, concordou com o encontro, sorriu e despedi-me, já que ele se encontrava com visita. Da casa do pescador até a casa em que eu estava hospedado, dava uns trinta minutos a pé. Eu a pé, nas ruas sem calçamento, encharcadas por conta da chuva, me prepararei para voltar à noite. Confesso que estava exaurido, cansado, com fome e, pior, com sono. Tomei banho, liguei a TV, desliguei (o programa de TV não era dos mais interessantes), deitei na rede e descansei por exata meia hora. Levantei, pus uma camisa, calça e uma sandália e segui a caminho da casa do pescador. Cheguei pontualmente às 19h30, me apresentei e falei com a esposa dele. Para minha surpresa, ele não estava em casa, não tinha previsão para voltar e, pelo que ela disse, provavelmente estava tomando aguardente em um dos inúmeros bares da localidade. Garanto que senti vontade de esbravejar, mas segurei a língua, agradeci a atenção e saí pelas ruas de Cunhaú queixando-me da ―má sorte‖. Cansado, mil vezes cansado, dores de coluna e naquela situação desalentadora. Mas fazer o que numa situação dessas? Decidi ir a um bar porque quando ―o mar não está para peixe‖, o remédio é desacelerar e nada que um copo de cerveja gelada não resolva. Pesquisador que se preza conversa com qualquer pessoa, pois os dados de que precisa surgem em momentos que nem sempre se tem total controle. Ainda bem! Comecei a conversar com um frequentador do bar, à beira do rio, sobre assuntos corriqueiros, aqueles que sempre acompanham a cerveja, fielmente. Daí surgiu uma amizade profícua que resultou numa das conversas mais ricas da pesquisa de campo: descobri que havia um descontentamento da comunidade em relação à inserção de estrangeiros no cotidiano dos cunhauenses, principalmente quando aqueles decidem fixar residência. Agradeço até hoje ao pescador por não estar em casa naquele fatídico início de noite...

Realizar uma pesquisa de campo envolve dificuldades dessa magnitude e, paradoxalmente, sempre reserva gratas surpresas para quem está atento a tudo o que o circunda. Fazer uma investigação de campo não é uma das tarefas mais fáceis para quem decide construir um estudo de observação. Não me refiro diretamente às questões de método, morais, éticas ou de epistemologia. Refiro-me à discussão de ordem prática de organizar eventos e agendar encontros com pessoas. Vão exigir-lhe tolerância, humor e a capacidade de olhar o óbvio com destreza de uma águia.

O relógio e os ditames do ritmo de vida urbano não combinam com o trabalho de pesquisa de campo em contextos de comunidades costeiras cuja atividade econômica é a pesca. O tempo do pesquisador, ou o espaço de tempo disponível do seu trabalho está e deve ser organizado a partir da disponibilidade temporal do grupo pesquisado. Sem ter consciência dessa singularidade relacional, sua pesquisa de campo pode não passar de um projeto de pesquisa. Essa hierarquização das relações torna-se evidente entre aquele que detém o conhecimento acumulado ao longo da vida e o interesse do outro que pretende construir o conhecimento antropológico a partir dessa interação; ou da negação dela, conforme vimos nas descrições acima. No texto de Koury e Barbosa (2017, p. 15), numa etnografia que estuda os mecanismos de controle e gestão do conflito num bairro popular de João Pessoa, busca compreender as formas intensas de interação entre os moradores e as possibilidades de controle social e de administração das tensões resultante deste processo e o seu uso no cotidiano do bairro. Os autores afirmam que ―o processo de fragmentação dos laços e a persistência de uma intensa pessoalidade convivem, assim, de forma ambivalente e tensa no local‖ (KOURY e BARBOSA, 2017, p. 22). Seria a administração do tempo pessoal uma forma sutil de controle? Acredito que sim, uma vez que a administração do tempo orbita na gestão do conhecimento que o interlocutor é consciente de ter e gerir ao sabor dos contingenciamentos. Com isso,

observo que a noção de tempo e o controle dele emergiu como mecanismo de controle do trânsito entre etnógrafo e interlocutores, cujos conflitos, gestão e gerenciamento das ações e dos conflitos emergem (KOURY e BARBOSA, 2017).

A categoria tempo açambarca um dos principais pilares dos estudos sociológicos nas sociedades tradicionais haliêuticas, daí sua relevância na organização da vida social dessas sociedades. O tempo e os ritmos ditados por ele dão sentido à vida comunal, que está intimamente ligada a uma dupla noção temporal: o tempo linear e cronométrico, organizado dentro de padrões fixos e o tempo natural regido pelo regime das marés, do tempo da captura de cardumes. Assim, como diz Oliveira Cunha ao analisar a relação entre tempo natural e mercantil em Barra da Lagoa, Santa Catarina: ―A pesca conduz o fio do tempo, percorrendo não somente a dimensão econômica, mas a sociocultural: a alma dos barrenses parece embebida de mar e rio; e peixes‖ (CUNHA, 2000, p.103).

A partir do exposto acima, pode-se afirmar que o tempo é uma categoria que se articula dentro de padrões culturais singulares de determinadas sociedades, e entre as sociedades pesqueiras ele assume papel central como pólo organizador das dinâmicas de sociabilidades (SAUTCHUK, 2011; SILVEIRA, 2011; CUNHA, 2000). Ele é dimensionado a partir de fatores locais influenciados por variáveis geográficas, biológicas, econômicas e sociais. Deste modo, o tempo articula-se e é percebido dentro de uma configuração complexa na vida social. A pesca artesanal compreende uma atividade extrativa econômica que depende do ciclo natural para, assim, poder capturar os cardumes no mínimo de risco, pois o mar é um espaço instável, suscetível a tempestades e um perigo constante aos que o utilizam como meio produtivo (DIEGUES, 1983; MALDONADO, 1993). Também consiste numa atividade em que o pescador artesanal pouco tem controle sobre o trabalho, pois depende diretamente da interpretação do regime da natureza e do próprio ciclo de reprodução e migração dos cardumes para reproduzir-se socialmente (NICOLAU, 2011; FREITAS, 2011; RAMALHO, 2009).

Tem situações que somente com o tempo pode-se perceber quando se deve ou não abordar alguém para conversar. Em Cunhaú é bastante comum você ver pescadores artesanais de pesca de lanço à margem da barra pescando atentamente por horas a fio. Contenha a sua vontade desenfreada de conversar para dali, quem sabe, encontrar um novo interlocutor para a construção da sua pesquisa. Pescador quando está trabalhando geralmente não gosta de ser incomodado, até porque a conversa poderá distraí-lo; se ele caso ceda à conversa, pode perder a oportunidade de capturar um cardume que passa na superfície da água. É preferível entrevistá-lo no momento de folga. É o regime da natureza interferindo nas atividades humanas. Diante deste estado de coisas, ambos (pesquisador e interlocutores) irão ganhar negociando simbolicamente a organização e utilização do tempo. Aprendi isso duramente ao abordar um pescador de linha em Barra do Cunhaú. Vinha caminhando pela praia quando o avistei em pé, com a rede pousada sobre o ombro, olhando atentamente o horizonte. Era um novato no lugar, ansioso para fazer os primeiros levantamentos para a pesquisa e, ingenuamente, perguntei se poderia conversar com ele. Respondeu-me rispidamente que não e que estava atrapalhando o ―serviço‖ dele. Senti-me desconcertado, constrangido e com raiva de mim mesmo ao constatar como pude ser tolo ao ponto de não enxergar a obviedade da situação. Em Baía Formosa, um pescador de rede prometeu encontrar-se comigo às dez horas do dia seguinte próximo à Matriz de Nossa Senhora da Conceição, próxima ao porto local. Acordei animado, saí munido com caderno de campo, caneta, gravador e muita disposição para o combinado encontro. Não esperava eu que o pescador estava no mar, na faina, pescando desde a noite anterior e não tinha hora para chegar. Nessa situação,

quem diz a hora da sucessão dos acontecimentos, em contextos de pesquisa, são as águas. Ponto final.

Segundo Koury (2018) a fofoca, os mexericos ou zum zuns, de certa forma, fazem parte da rede de relações em comunidades de intensa pessoalidade. O sentimento de comunidade percebido por mim nas comunidades costeiras imbricava-se em trocas de informação entre eles a meu respeito, podendo ser percebido como forma de estreitamento dos laços e de se manterem informados sobre o que se passa no cotidiano da comunidade.

O tempo é uma das dimensões da vida social, cujas necessidades sociais são atendidas através da relação que as pessoas estabelecem no cotidiano (SZTOMPKA, 1998; THOMPSON, 1998). A temporalidade possui diferentes qualidades por meio de circunstâncias naturais ou sociais. O tempo, segundo Elias (1998), possui dimensões distintas pela percepção de quem o sente passar: o movimento do sol e da lua seria organizador de uma forma de perceptibilidade e apreensibilidade do passar do tempo sentida ―coerentemente‖ pelos que dele dependem para viver; por outro lado, o pesquisador está imerso numa lógica do tempo que torna-se instituição social de caráter coercitivo e de autodisciplinamento. Nesse nível de análise, compreende-se a razão do meu desapontamento em relação ao pescador que me prometeu uma conversa longa e não ter conseguido cumprir porque a maré estava para ―pescar‖. Em nome da empatia e pelo satisfatório andamento da pesquisa, foi-se necessário o exercício do autocontrole e internalização de uma temporalidade que incidia sobre mim com a mesma força que ela conduz os cardumes e os pescadores costeiros.

Tanto em Barra do Cunhaú como Baía Formosa, a relação entre o tempo e o cotidiano dos pescadores artesanais articula-se em períodos de trabalho e lazer que tem correlação imediata com a sucessão do dia e da noite, do regime das marés e da disponibilidade de cardume em determinada época do ano. Thompson estabelece uma

No documento Sociabilidades Urbanas (páginas 55-63)