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A tensão inerente ao contrato de trabalho vista sob o paradigma do Estado de

No documento O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL (páginas 152-173)

Capítulo III – O poder diretivo do empregador e os riscos para o trabalhador

1.2 A tensão inerente ao contrato de trabalho vista sob o paradigma do Estado de

O paradigma do Estado Social, que, como vimos, emerge da negação histórica e da perda de força explicativa dos supostos liberais, impõe materialização dos direitos anteriormente apenas formais. Como explica Menelick de Carvalho Netto:

Não se trata apenas do acréscimo dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de 1ª (os individuais).

A liberdade não mais pode ser considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da

relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material.275

O Estado assume a responsabilidade de prover necessidades básicas do indivíduo, como a saúde, educação, previdência social, para lhe assegurar a igualdade material, a condição de cidadão (e porque não dizer consumidor solvente). A distinção entre o direito público e o direito privado passa a ser meramente didática, pois todo o direito é público. Nesse paradigma se inverte a balança dos valores e toda manifestação estatal é reconhecida como benéfica, contrapondo-se à manifestação privada maléfica.

Como vimos, as relações de trabalho deixam de ser reguladas pelo Direito Civil e passam a ser regidas por um ramo novo do Direito: o Direito do Trabalho que, ao reconhecer a situação de desvantagem material em que o trabalhador se encontra em face do empregador fixa princípios inderrogáveis de ordem pública, condicionantes da validade de qualquer contrato de trabalho, como o salário mínimo, a jornada máxima de trabalho, o repouso semanal remunerado, etc. Simultaneamente, o direito de greve e o de associação são reconhecidos como direitos coletivos e tendem a ser regulados e controlados em maior ou menor grau pelo Estado, como no Brasil e na Itália.

É nesse contexto que essas mesmas relações de trabalho, no interior da fábrica, passam a ser submetidas ao modelo fordista de gestão de pessoal. Henry Ford procura obter a cooperação do operário por meio do pagamento de remuneração superior ao mercado e limitação da jornada de trabalho, criando ao nível da empresa a materialização do direito à igualdade do trabalhador. Ele aproxima dois universos: a produção de massa do consumo de massa, e desse modo permite o acesso do operário a um

275 CARVALHO NETTO, Menelick de. “A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito”. In: Notícia do Direito Brasileiro. Nova Série, n. 6, p. 242.

“novo registro de existência social”276. Este procedimento encontra fundamento na lição de Antonio Gramsci:

A adaptação aos novos métodos de produção e de trabalho não se pode verificar apenas através da coação social: este ‘preconceito’ muito difundido na Europa e especialmente no Japão, onde não pode tardar a provocar conseqüências graves para a saúde física e psíquica dos trabalhadores, [...]. Por isso a coerção deve ser sabiamente combinada com a persuasão e o consentimento, e isto pode ser obtido, nas formas adequadas de uma determinada sociedade, por uma maior retribuição que permita um determinado nível de vida, capaz de manter e reintegrar as forças desgastadas pelo novo tipo de trabalho.277

A transformação do operário em consumidor foi decisiva para gerar novas necessidades e, consequentemente, facilitar o consentimento com a fábrica.

Concomitantemente, Ford segue a mesma linha de tutela voluntária adotada pelos patrões do paradigma liberal. Ele constrói vilas para seus trabalhadores e escolas para seus filhos, complementando a assistência estatal. Porém, do mesmo modo que os antigos patrões, exige do operário beneficiado com a melhor remuneração a limitação da sua liberdade, uma vez que não lhe basta ser dedicado à fábrica e ter anos de casa: ele deve ser legalmente casado, viver em harmonia conjugal e ser livre do consumo de qualquer espécie de droga ou álcool. A diferença reside em que Ford confronta um operário-cidadão, com direito a participação política (sufrágio universal), integrado socialmente, que goza de uma relação salarial ampliada para além da mera retribuição pontual de tarefa, a quem se asseguram direitos (direito do trabalho, seguros, acidentes e aposentadoria) e se permite o consumo de habitação, instrução e lazer (descanso semanal e férias remunerados). E mais do que isso, Ford enfrenta a representação coletiva do operariado e a regulamentação autônoma coletiva das condições de trabalho – a convenção

276 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 432.

277 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Ed. Civilização

Brasileira. 1984, p. 404-405. Apud DELGADO, Maurício Godinho. O poder empregatício. São Paulo : LTr, 1996, p. 143.

coletiva - que se sobrepõe ao contrato de trabalho. Logo, a disciplina fabril é negociada por meio da celebração de acordos coletivos de trabalho para o repasse aos trabalhadores de parcela da produtividade alcançada sob o compromisso de se manter o ritmo da produção, ditado pela esteira automática.

O Estado enfatiza a negociação das condições de trabalho entre as partes antagônicas, atuando como mediador do conflito. A intervenção estatal na seguridade social e na economia, ao regular preços, salários, créditos e oferecer serviços, transmuda as relações de trabalho que antes eram diretas entre empregadores e empregados, em relações tripartites. A influência é recíproca e em alguns países, como no Reino Unido, os sindicatos adquirem peso político e passam a integrar órgãos públicos colegiados. Na organização da produção, todavia, persiste a ausência de participação do trabalhador, mantendo-se um distanciamento entre o setor de controle e o de execução das atividades.

No Brasil, a primeira norma a assegurar especificamente a sindicalização foi o Decreto nº 979 de 1903278 e a regular a organização sindical foi o Decreto nº 19.770 de 1931. Este último decreto foi elaborado sob a influência dos regimes corporativistas na época em voga na Europa, especialmente o regime facista italiano, tendo em mira a figura do “cidadão-trabalhador”, o novo homem brasileiro279.

Como esclarece Guilhermo Cabannelas:

no corporativismo, os sindicatos passam a ser corporações de Direito Público, incrustrados dentro do Estado, pretendem, mais por meios políticos que profissionais, reger a vida integral do trabalho: se manifestam em forma mais ou menos acentuada, primeiro na Itália, com

278 SILVA. Floriano Corrêa Vaz da. Evolução histórica do sindicalismo brasileiro. In: Direito Sindical

Brasileiro: estudos em homenagem ao Prof. Arion Sayão Romita. PRADO, Ney (org.). São Paulo: LTr,

1998, p. 128.

279 Angela de Castro Gomes ressalta a importância da imagem do cidadão-trabalhador para o discurso de materialização do direito por meio de iniciativas governamentais. “A importância e o papel do cidadão- trabalhador tinham assim uma dimensão material comprovável nas numerosas e variadas iniciativas desencadeadas pelo Estado, tendo em como finalidade precípua a criação e proteção deste novo homem brasileiro.” (GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo, 3ª edição. Rio de Janeiro: FGV editora, 2005, p. 237.

plena hegemonia das corporações fascistas; na Alemanha, como uma mescla de fanatismo nacional e de avanço social; na Espanha, onde se rechaça, em nome de um falso patriotismo, a essência autônoma para buscar cópias no estrangeiro, pretendendo desconhecer ou suprimir por decreto a questão social; em Portugal, onde o regime político se instaurou à semelhança da Itália, as corporações não contaram sequer com uma mínima participação na vida do Estado, passando apenas uma imagem exterior sem conteúdo algum.280

Seguindo essa orientação, a norma brasileira supracitada instituiu o sindicato único, sem autonomia e atrelado ao Estado. Entre as exigências para seu reconhecimento estava a abstenção no seio das organizações sindicais de toda e qualquer propaganda de ideologias sectárias, de caráter social, político ou religioso.

As tentativas constitucionais (1934281 e 1937) de garantir a pluralidade sindical foram inviabilizadas pela regulamentação infraconstitucional que num primeiro momento obstou o alcance de seu escopo exigir a aprovação de 1/3 da categoria para a constituição de um sindicato (Decreto nº 24.664, em 12.07.1934) e, posteriormente (Decretos nº 1.402/39 e nº 2.381), que reconheciam apenas um sindicato por profissão e instituíam o quadro de atividades e profissões para se fixar o enquadramento sindical, respectivamente. Como cabia ao sindicato o exercício de funções delegadas pelo Poder Público, a lei regulava o seu funcionamento e autorizava a intervenção estatal, em caso de dissídio ou circunstância que perturbe o seu funcionamento, e até mesmo a cassação da sua carta de reconhecimento. Considerado como a entidade básica para estabelecer o equilíbrio entre o totalitarismo e o liberalismo, o poder público a partir de 1940 tomou diversas iniciativas para alavancar os índices de sindicalização, que se mantinham inexpressivos: instituiu a contribuição compulsória (Decreto nº 2.377/40) e iniciou uma campanha intensiva de sindicalização dos trabalhadores, por intermédio de propaganda, concursos

280 CABANNELAS, Guilhermo apud SIQUEIRA NETO, José Francisco. Direito do Trabalho e

Democracia. Apontamentos e Pareceres. São Paulo : LTr, 1996, pág. 193.

culturais e mesmo cursos de preparação de dirigentes sindicais (1943).282 Embora o discurso estatal se afastasse da “democracia autoritária” da Carta de 1937, esse sistema foi totalmente absorvido pela Consolidação das Leis do Trabalho, editada em 1943, que também regulamentou exaustivamente o contrato de trabalho. O contrato de trabalho a prazo indeterminado se tornou o padrão dominante para a formação do vínculo de emprego, a figura do empregador foi despersonalizada283 e foram instituídos os procedimentos administrativos de fiscalização e a Justiça do Trabalho.

Como já dito, o trabalhador era a figura central na elaboração das políticas públicas. “Trabalhar não era simplesmente um meio de ‘ganhar a vida’, mas sobretudo um meio de ‘servir a pátria’”284. Na década de 30 foram criados institutos de seguridade285 e medicina social. A intenção era a concessão de benefícios materiais aos trabalhadores para propiciar a desmobilização sindical e a supressão de movimentos grevistas, vistos como agitação “antipatriótica e anticapitalista”.

O Direito do Trabalho então se afirma definitivamente como ramo autônomo do direito e tem como um de seus fins precípuos limitar a margem de atuação do empregador de modo a possibilitar, ainda que artificialmente, um nível de igualdade material entre as partes na relação de emprego. Entre seus princípios reitores se destaca a irrenunciabilidade dos direitos pelo trabalhador e o princípio in dubio pro operario, expressamente favoráveis à parte mais fraca do contrato de trabalho. Nesse pano de fundo

282 GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo, 3ª edição. Rio de Janeiro: FGV editora, 2005, p.246/261.

283 A Consolidação das Leis do Trabalho rompeu com a tradição contratualista ao acolher a despersonalização do empregador, no art. 2º, e ressaltar o papel da empresa para o empregador pactuante, o que levou muitos doutrinadores a concluir pela adoção da teoria institucionalista na lei brasileira. Contudo, os arts. 442, 444 e 468 destacam a manifestação da vontade dos contratantes para a celebração do acordo, ainda que verbal.

284 GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo, 3ª edição. Rio de Janeiro: FGV editora, 2005, p. 239.

285 Entre 1930 e 1937 foi implementado um vasto programa de seguridade social, criando-se seguros contra a invalidez, doença, morte, acidentes de trabalho e o seguro-maternidade. Para se impedir a perda da saúde e melhorar as condições e vida em geral, o Estado também procurou implementar medidas para atender às

em que a materialização do direito é a tônica, o juiz a toma como meta a ser alcançada inclusive no momento de sua aplicação no caso concreto. Ao aplicador é requerida a busca do sentido material da norma, valendo-se de métodos de interpretação: teleológico, sistemático e histórico. A intenção do legislador é superada pela busca do sentido objetivo do texto no momento da aplicação. Entretanto, mesmo aqui a norma é vista como uma regra geral e abstrata, cuja interpretação obtida em abstrato deve prevalecer a despeito das especificidades do caso concreto.

Na maior parte dos países, a incidência de normas estatais indisponíveis se espraia por todos os aspectos do contrato de trabalho. De toda sorte, os direitos fundamentais somente são discutidos de forma coletiva, deixando pouca margem para a negociação individual. A busca incessante da igualdade material entre as partes contratantes, no Estado do Bem-Estar Social, interfere na definição da natureza do vínculo estabelecido entre elas e dá origem a duas correntes doutrinárias: a corrente contratualista, que segue a interpretação tradicional do vínculo estabelecido entre empregado e empregador, e a corrente institucionalista. Para esta última corrente, a constituição da relação de emprego se dá pela simples inserção do trabalhador dentro da organização produtiva. Ela nega o conflito de classes, enfatizando sua finalidade comum de prosperidade e trabalho com espírito de cooperação. O seu auge vigorou em estados totalitários que defendiam inclusive o acoplamento do sindicato ao Estado, para atuar como uma longa manus deste, pois a empresa aos buscar seus próprios interesses, satisfazia os “superiores interesses da nação”.286 Nesse contexto, o poder hierárquico do empregador é apresentado como um direito-função, sob a perspectiva de funcionalização

necessidades de alimentação, habitação e educação dos trabalhadores (GOMES, Angela de Castro. A

invenção do trabalhismo, 3ª edição. Rio de Janeiro: FGV editora, 2005, p. 242/243).

dos direitos subjetivos cujo ápice chega a equiparar o proprietário a um funcionário público287. Conforme Luiz José de Mesquita, o direito-função configura a:

[...] faculdade em virtude da qual uma pessoa, o sujeito ativo chamado superior hierárquico, exerce um direito-função sobre a atividade humana profissional de outra, o sujeito passivo, chamado inferior hierárquico, segundo o interesse social da instituição, para legislar, governar e sancionar, no que respeita à ordem profissional da empresa.288

Ele se manifesta como um direito potestativo que tem como contrapartida a sujeição do empregado, porém a diferença está em que esse direito não tem natureza obrigacional. Como ressalta Octavio Bueno Magano: “Existe uma supremacia da vontade do titular da ‘potestade’ e a sujeição das pessoas em benefício das quais ela está necessariamente orientada”289.

Os operários são então parcialmente integrados na sociedade (ainda que gozem de benefícios populares: educação pública, saúde pública, lazer popular) e são reconhecidos como uma classe social distinta. A concepção do trabalho se transforma de um dever moral, religioso ou econômico em um fonte de riqueza e a condição de assalariado deixa de ser indigna. Nesse cenário, a coerção externa: “criminalização da vagabundagem” deixa de ser expressiva, caindo em desuso.

A obsessão pela igualdade material resulta no sufocamento da igualdade formal. O trabalhador é ceifado em seu direito a ser diferente e ficam mitigadas as suas possibilidades de discutir e imprimir os seus interesses individuais tanto no momento da contratação como no curso da relação de emprego. A influência da teoria institucionalista pura se faz sentir em um curto período de tempo, porém deixa fortes marcas no Direito do

287

LOPES, Ana Frazão de Azevedo. Empresa e propriedade. Função social e abuso de poder

econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 117.

288 MESQUITA, Luiz José. Poder disciplinar do trabalho. apud BARROS, Alice Monteiro de. Poder hierárquico do empregador. Poder diretivo. In: Curso de Direito do Trabalho: estudos em memória de

Célio Goyatá, vol. I, 2º edição ver, atual e ampl. BARROS, Alice Monteiro de (coord.). São Paulo: Editora

Trabalho ao partir da desigualdade material entre as partes e reconhecer os vícios na manifestação de vontade do trabalhador dela derivados, preconizando a necessidade de incidência de normas indisponíveis no contrato de trabalho.

O modelo do Estado Social se revela, contudo, autoritário uma vez que a segurança é inversamente proporcional à liberdade.

Quer se trate do Estado intervencionista ativo ou do Estado supervisor irônico, parece que as capacidades de regulação social que lhes são atribuídas devem ser extraídas, na forma de uma autonomia privada reduzida, dos indivíduos enredados em suas dependências sistêmicas. Por este ângulo, existe um jogo de gangorra entre os sujeitos de ação públicos e privados: o aumento da competência de uns significa a perda de competência de outros. 290

O Estado social por intermédio de suas intervenções antecipadas, assegurando a saúde, educação, segurança, habitação, lazer, limita a autonomia privada do indivíduo, submetendo-o às decisões burocráticas do poder administrativo estatal. Essa atuação resulta no próprio questionamento da compatibilidade desse modelo com o direito à liberdade.

No final da 2ª Grande Guerra, o Estado Social começa a ser questionado em face da limitação do capitalismo para atender à crescente demanda interna, da rigidez da relação de trabalho e da crescente competitividade entre os países centrais e periféricos na ocupação do mercado internacional291. O rompimento do modelo sindical mencionado, já praticado em diversos países, é referendado pela Organização Internacional do Trabalho que, em 1948, na Convenção nº 87 preconiza preponderantemente o exercício da liberdade sindical diante do Estado, assegurando a pluralidade sindical. A ela se seguiu a Convenção nº 98, de 1949, que trata do direito de sindicalização e negociação coletiva, regulando a

289 MAGANO, Octavio Bueno. Do poder diretivo na empresa. Ed. Saraiva, 1982, p. 29.

290 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. II. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997, p. 144.

liberdade sindical perante a parte contrária, empregador ou outra organização sindical, e a liberdade sindical individual.

Na década de 70, o questionamento do modelo atinge seu ápice com o aprofundamento da crise econômica mundial. A sociedade pós-fordista se revela extremamente complexa, intrincada e fluida e em conseqüência as relações entre o direito público e privado são colocadas em xeque: o direito público não se confunde mais com o direito estatal. Os conceitos de liberdade e igualdade, outra vez ganham uma nova concepção, ou seja, um renovado e mais rico conteúdo semântico, conteúdo que se expressa em uma terceira geração de direitos, agora difusos e de participação que, na verdade, redimensionam toda a compreensão jurídico política da sociedade sobre si própria. Do desgaste do poder explicativo das crenças em que se fundava o paradigma do Estado Social emerge um novo paradigma, que as Constituições dessa nova época designam como o da organização jurídico-política que instituem, o Estado Democrático de Direito.

1.3 – A tensão inerente ao contrato de trabalho vista sob o paradigma do Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito se posiciona contra a visão típica do Estado Social de materialização dos direitos por meio da práticas paternalistas, em que os afetados não participam. Essas práticas são não somente insuficientes, como perigosas e desviantes. Perigosas porque privatizam nas mãos da burocracia a dimensão pública que

alega possibilitar a longo prazo; desviantes porque apenas práticas de cidadania produzem cidadãos. Requer-se da prática jurídico-política que, pelo menos, ela se revele participativa, pluralista e aberta, com a intervenção de diversos atores sociais na defesa do interesse público, pois acredita-se que a liberdade e igualdade apenas são alcançadas com a participação dos indivíduos no âmbito público e privado. A esfera privada é revalorizada, com destaque às pretensões de autodeterminação, autonomia e liberdade individuais independentes do poder administrativo.

Para esse último paradigma, a questão do público e do privado é questão central, até porque esses direitos, denominados de última geração, são direitos que vão apontar exatamente para essa problemática: o público não mais pode ser visto como estatal ou exclusivamente como estatal e o privado não mais pode ser visto como egoísmo. A complexidade social chegou a um ponto tal que vai ser preciso que organizações da sociedade civil defendam interesses públicos contra o Estado privatizado, o Estado tornado empresário, o Estado inadimplente e omisso.292

A sociedade pós-fordista abandona a ingenuidade na crença de um modelo social absoluto, baseado na sobreposição de um direito (liberdade ou igualdade) ou de um espaço social (público ou privado), pois o ensinamento extraído principalmente da Segunda Grande Guerra somente permite essa concepção de forma cínica, na perspicaz análise de Bernardo Sorj:

Como ampliar os interesses comuns sem diminuir ou destruir as liberdades individuais é o dilema constitutivo da modernidade liberal, dilema para o qual filósofos, cientistas políticos e ideólogos procuram respostas definitivas, mas cuja solução será precária e mutante. E, se esse dilema não apresenta uma resposta consensual e definitiva, a história apresenta uma lição negativa: todo esforço para eliminar um direito em nome de outro, para construir uma sociedade igualitária sem indivíduos livres ou afirmar a liberdade individual mas sem senso de solidariedade, transforma a sociedade – seja em prisão, seja em selva.293

292 CARVALHO NETTO, Menelick. A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das leis no Brasil: um pequeno exercício de Teoria da Constituição. In: Fórum administrativo. Ano I. Nº 1. Belo Horizonte:

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