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A tensão inerente ao contrato de trabalho vista sob o paradigma do Estado

No documento O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL (páginas 143-152)

Capítulo III – O poder diretivo do empregador e os riscos para o trabalhador

1.1 A tensão inerente ao contrato de trabalho vista sob o paradigma do Estado

O primeiro paradigma jurídico, o do Estado de Direito, se estabelece como reação não somente ao Estado absolutista como igualmente ao denominado antigo regime, ou seja, à concentração do poder político na pessoa do monarca e à toda a estrutura de privilégios de nascimento que alicerçava a sociedade de castas. Ele promove a dissolução da antiga ordem e de seu sistema de crenças mediante a ruptura com a estrutura social medieval estamental e estática em que todos os trabalhadores (homens livres, servos, artesãos e escravos)256 tinham a sua posição social definida e os deveres e privilégios dela decorrentes reconhecidos na sociedade.

Nesse momento, o poder público é despersonalizado e passa a assegurar indistintamente a todos os cidadãos o reconhecimento do direito à liberdade e igualdade. Toda pessoa tem liberdade para fazer tudo aquilo que não seja proibido pela lei e tem reconhecida a sua igualdade assentada no direito de propriedade, ainda que esse direito se limite a si próprio, “pois mais ninguém pode ser propriedade de outrem e, assim, todos são sujeitos de Direito”257. Dessa forma, as liberdades são estipuladas de forma negativa, tendo

a lei como limite, contra o Estado que deve se abster de intervir na seara privada dos

254 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. II. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997, p. 124 e 131.

255OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 54.

256 Os trabalhadores tem sua posição social reconhecida de acordo com a posição social hierárquica na organização produtiva (servos, aprendizes e companheiros) ou com seu ofício desenvolvido (o trabalhador que curte o couro, o trabalhador que faz os utensílios, o trabalhador que conserta).

257

CARVALHO NETTO, Menelick de. “A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das leis no Brasil: um pequeno exercício de Teoria da Constituição”. In: Fórum

cidadãos, o qual é visto como um mal necessário para frear o egoísmo do cidadão privado. O processo legislativo é realizado por um grupo de pessoas diferenciadas, consideradas a “melhor sociedade”, cuja identidade era resgatada por meio da renda mínima.

Nesse paradigma jurídico há um distanciamento entre a sociedade política e a sociedade civil. Esta é vista como positiva em contraposição à manifestação estatal, tida como negativa. Há uma clara dicotomia entre o direito público e o direito privado, somente sendo considerado público o direito emanado e relacionado ao Estado. O direito privado - liberdade, igualdade e propriedade- é visto como um direito natural. O direito público, convencional, é imprescindível para autorizar a atuação estatal. O particular pode fazer tudo o que a lei não proíba e o Estado somente pode agir conforme a lei, ou seja,

[...] o direito privado estruturou-se como um domínio jurídico sistematicamente fechado e autônomo, a salvo da força impregnadora de uma ordem constitucional democrática. Sob a premissa da separação entre Estado e sociedade, a estrutura doutrinária partia da idéia de que o direito privado, ao passar pela organização de uma sociedade econômica despolitizada e subtraída das intromissões do Estado, tinha que garantir o status negativo da liberdade de sujeitos de direito e, com isso, o princípio da liberdade jurídica; ao passo que o direito público, dada uma peculiar divisão de trabalho, estaria subordinado à esfera do Estado autoritário, a fim de manter sob controle a administração que operava sob reserva de intervenção e, ao mesmo tempo, garantir o status jurídico positivo das pessoas privadas mantendo a proteção do direito individual.258

Como já dito, o direito é visto como um conjunto de normas gerais e abstratas, cuja legitimidade é estabelecida por uma regra de reconhecimento vinculada à origem da norma: é direito a regra elaborada por determinado soberano ou órgão legislativo. A norma proclamada pelo órgão autorizado deve ser cegamente aplicada ao caso concreto, como um silogismo. O juiz tem como única função encontrar a regra jurídica reguladora do caso concreto e então determinar sua incidência por intermédio da

258 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. II. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997, p. 134.1

subsunção. Ao aplicador não é dado interpretar a lei de forma alguma, mas apenas se manifestar como a “bouche de la loi”. Essa cegueira do julgador, confundida com imparcialidade no julgamento, desembocava na sua total irresponsabilidade pela injustiça social verificada no caso concreto. Se a norma demonstrasse qualquer inadequação na lide em apreço, como injustiça e abusos, o problema era do legislador, jamais do julgador. Na modernidade, a igualdade formal legitima a realização de contratos de trabalho, com qualquer teor, desconsiderando a influência da desigualdade material entre as partes contratantes.

Despido do caráter de uma relação de aprendizagem, amor ou força bruta, o trabalho subordinado passa a ser pautado pela liberdade e igualdade dos contratantes na assinatura de um contrato de trabalho. O trabalhador obtém a sua liberdade para agir, porém em contrapartida se encontra em uma situação de total insegurança, arcando com todos os riscos e acidentes decorrentes do desempenho da atividade produtiva. O trabalho é deslocado da pessoa do trabalhador e é tratado como mercadoria distinta; conseqüentemente, o trabalhador fica privado de qualquer garantia ou proteção jurídica. A remuneração, que deveria no mínimo corresponder apenas ao custo indispensável à sobrevivência e reprodução do proletário, como ensina o próprio Marx259, varia conforme a lei da oferta e da procura no mercado e o custo da produção dessa mercadoria (o tempo exigido para sua formação), atingindo patamares insuficientes ao seu sustento diário. Essa regulação jurídica permite o florescimento do capitalismo, o qual pode ser definido como “um sistema de produção de mercadorias, centrado sobre a relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado sem posse de propriedade”,

259 MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In: ANTUNES, Ricardo (org). A dialética do Trabalho: escritos

de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 90 e seguintes. MARX, Karl. Trabalho

assalariado e capital. In: MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas em três tomos, tomo I. Lisboa: Edições “Avante!”. Moscovo: Edições Progresso, 1982, p. 160/161.

cuja relação forma “o eixo principal de um sistema de classes”.260 O capitalismo é identificado como um sistema desumano:

No tempo em que Marx escrevia os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, a alienação da classe operária significava imediatamente um trabalho opressivo em um nível quase animal. Com efeito a alienação era, em certo sentido, sinônimo de desumanidade.261

Alguns filósofos, diante da espoliação e miséria dos proletários desse período, não hesitam em expressar certa nostalgia à segurança encontrada na escravidão ou servidão, como o faz o Barão de Gérando, no tratado De la Bienfaisance Publique:

Só há um estado na sociedade em que se poderia fechar completamente o acesso à indigência: seria aquele em que, como no sistema de escravidão dos antigos, na servidão feudal, no regime das corporações, em toda parte em que o trabalho é subordinado, a classe inferior da sociedade abdicasse da sua independência, aceitasse a segurança em troca desse preço, com a proteção obrigatória dos seus senhores, às custas da sua dignidade moral e até mesmo de uma boa porção do seu bem-estar material. Não haveria então indigentes porque a adversidade e a prosperidade deixariam de ser possíveis. É verdade que o proletário não poderia esperar mais do que o que fosse estritamente necessário, mas teria de modo geral a esperança de consegui-lo. Não existiria para ele o trabalho espontâneo; o trabalho não lhe seria necessário como um recurso, mas lhe seria imposto como um jugo, e toda a extensão de que suas forças o tornassem capaz. Mas desde o instante em que o homem se torna árbitro do seu destino, deve sofrer as conseqüências dos seus erros e das suas faltas. Desde o momento em que o homem se emancipou, o emprego da sua liberdade o expõe a mil acidentes. Vem daí que a situação mais crítica para o homem é o momento de sua emancipação, a passagem do estado de servidão ou vassalagem para a completa independência. 262

260 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade, 2ª reimpressão. São Paulo: Editora UNESP, 1991, p. 62. Não bastasse a coerção econômica, em diversos países o reforço a esse sistema também é feito por meio da previsão do crime de mendicância, assentado no discurso moral de que o mendigo desrespeita as regras da autonomia individual e se recusa a ingressar na era da responsabilidade pessoal. (ROSANVALLON, Pierre. A nova questão social: repensando o Estado Providência. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998, p.142). As práticas de imposição de trabalho aos indivíduos marginalizados (ressalte- se aqui que não estamos falando apenas dos criminosos condenados, mas de mendigos, desempregados ou desfavorecidos), as quais eram inicialmente pensadas paradoxalmente como um dever do Estado de assistência do soberano aos desfavorecidos e se expressavam como um direito a obrigar o indivíduo a trabalhos forçados (inclusive trabalho escravo, no modelo inglês), para discipliná-lo e moralizá-lo (século XVI), encontravam em contrapartida a previsão da mendicância e vadiagem como crimes. Embora o trabalho forçado seja questionado e repudiado no Estado Moderno, a mentalidade moralista se perpetua e o crime de mendicância se mantém.

261 LUKÀCS, Georg. In: KOFLER, Leo. ABENDROTH, Wolfgang. HOLZ, Hans Heinz. Conversando com

Lukács. KONDER, Giseh Vianna (trad). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 52.

262 ROSANVALLON, Pierre. A nova questão social: repensando o Estado Providência. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998, p. 140/141.

O modelo contratual de trabalho, adotado para a inserção ainda que diária do trabalhador na fábrica, alçou a condição de modelo dominante para a contratação do trabalho subordinado, até mesmo quando improdutivo. Esse modelo defende ser suficiente a previsão legal de igualdade e liberdade formais e a vontade de celebrar um contrato para justificar a obediência do trabalhador e a pactuação de qualquer modalidade de cláusula contratual. Todavia, o proletário assalariado, considerado apenas um corpo produtivo destituído de inteligência (mera força bruta), ainda é visto com desconfiança e equiparado à escória marginalizada da sociedade, como os indigentes e os criminosos. A desconfiança se devia à sua vulnerabilidade, pois o proletário era contratado por dia e recebia apenas o suficiente para sua subsistência, vivendo em condições desumanas de higiene, educação e em locais superlotados, confundindo-se com aquele grupo marginalizado263. Não raro essa condição já precária convivia com períodos de desemprego, aproximando-o então da pura indigência.

No paradigma em apreço, o exercício dos direitos fundamentais se contrapunha ao poder estatal, deixando a fábrica livre de qualquer ressalva ao poder de comando do empregador.264 O empregador se portava como senhor supremo, impondo unilateralmente suas regras e técnicas por meio de regulamentos, cujo descumprimento autorizava a imposição de sanções (multas, advertências, suspensão e demissão) e se imiscuia diversas vezes na vida privada do empregado, como expressa a publicação “O

263 Os valores salariais eram ínfimos na sociedade pré-industrial. Contudo, os trabalhadores complementavam a sua renda com a produção de subsistência, pois em regra eram trabalhadores rurais, fixados à terra e com família. O problema se inicia quando o trabalhador não tem mais nenhuma forma de complementar sua renda, quando são empurrados para os centros urbanos e fixados em guetos imundos e superlotados, sem qualquer condição de higiene, educação e saúde.

264 Na França, até 1892, momento da criação e reorganização da inspeção do trabalho “As fábricas são territórios fechados com seus regulamentos e seus guardiães.” “[...] o patrão se beneficia de uma espécie de extraterritorialidade: a fábrica é um local esquivo [...]. (PERROT, Michelle. Os excluídos da história:

Catecismo do Patrão” 265de Léon Harmel, que recomenda ao patrão facilitar os casamentos

entre os jovens de boa conduta e buscar tornar legítima a filiação correspondente266. Essas recomendações expressam a transição entre a prática medieval e as novas relações industriais e nos remete à origem etimológica do termo “patrão”: pater/patronus.267 O trabalhador era visto como uma pessoa sem condições de se governar, que deveria ser tutelado e moralizado por intermédio do trabalho: “[o trabalho] É ao mesmo tempo, uma necessidade econômica e uma obrigação moral para os que nada têm, o antídoto contra a ociosidade, o corretivo para os vícios do povo”.268 O poder hierárquico ou diretivo oferecido ao empregador era então ilimitado e continha o perfil de um verdadeiro direito potestativo, sendo mesmo reconhecido como um status natural do empregador. A coerção para a submissão ao trabalho assalariado se dá sob duas frentes: a externa, mediante a criminalização da mendicância e a ameaça de prestar trabalhos forçados269, e a interna, mediante rigorosa disciplina na fábrica.

265 “Il faut que le patron facilite les mariages entre jeunes gens de bonne conduite, qu’il fasse cesser les relations ilicites; et si par malheur, il s’en produit, s’emploie à faire légitimer les enfants qui en proviennent”.(RAY, Jean-Emmanuel. Vies professionnelles et vies personnelles. In Droit Social, nº 1, janvier 2004, p. 5.

266 O regulamento de oficina da Verrerie Sant-Édouard, em 1875, no artigo 30 dispunha o seguinte: “Todo operário empregado na Verrerie cuja conduta não for a do homem honesto, sóbrio e trabalhador, que procura em tudo e em toda parte o interesse dos patrões, será mandado embora do estabelecimento e denunciado à justiça, se for o caso.” (CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 333).

267RAY, Jean-Emmanuel. Vies professionnelles et vies personnelles. In Droit Social, nº 1, janvier 2004, p. 5. “A palavra patrão só se aplica aos chefes que garantem a seus subordinados a paz e a segurança. Quando este papel não é mais preenchido, o patrão cai da categoria dos senhores e não é mais do que um empregador, segundo o termo bárbaro que tende a se substituir àquele que prevalece nas áreas onde reina a insegurança.”( CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 334/335).

268 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p.227.

269 Na década de 1890, foram julgados até 20 mil processos anuais por vagabundagem pelos tribunais franceses, com ameaça de degredo em caso de reincidência (CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão

social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 424). No Brasil a ausência de

qualquer ocupação produtiva ainda está prevista como uma contravenção penal e está definida com: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita” (art. 59 do Decreto-lei 3.688, de 3.10.1941) e “Mendigar, por ociosidade ou cupidez” (art. 60 do mesmo texto). A condenação gera a internação em colônia agrícola ou instituto de trabalho pelo período de um ano (art. 15) e o condenado tem a seu desfavor a presunção de periculosidade (art. 14, inciso II, do mesmo diploma). Na Câmara dos Deputados foram apresentados dois projetos de lei propondo a revogação do art. 59 e 60 antes

O velho paradigma do trabalho forçado não é pois recusado enquanto se constitui o embrião de uma condição de assalariado ‘moderna’. Ao contrário, ele acompanha e tenta enquadrar seus primeiros desenvolvimentos. O que pode ser perfeitamente entendido: as condições de trabalho são tais nas primeiras concentrações industriais, que é preciso estar sob a mais extrema sujeição da necessidade para aceitar semelhantes ‘ofertas’ de emprego, e os infortunados assim recrutados aspiram somente a deixar o mais rápido possível esses lugares de derrelição. Novamente, não se está muito distante da figura do vagabundo.[...] Portanto, é ‘normal’ que o exercício da coerção tenha sido, aí, particularmente impiedoso.270

A freqüência intermitente ao trabalho era corrente dada a precariedade da situação do proletário, que o levava a peregrinar de fábrica em fábrica, mina em mina, de obra em obra atrás do melhor salário ou das melhores condições de prestação dos serviços, abandonando o seu empregador sem qualquer aviso. O trabalhador ainda mantinha hábitos de vida modesto, contentando-se com parcos recursos, suficientes a assegurar a observância de vários costumes populares, como a “Segunda-feira santa”. Diversos empregadores concluem que, para se obter a cooperação do proletário, impunha-se mais do que sua coerção, era necessária a obtenção de seu consenso e consentimento. Eles então resgatam serviços sociais para fixar e fidelizar o proletário em sua fábrica, como bem exemplifica a seguinte descrição:

Assim, sob a enérgica férula da família Schneider, Le Creusot propõe um serviço médico com farmácia e enfermaria, um posto de beneficência que socorre os operários doentes ou feridos, mas também as viúvas e órfãos dos operários, uma caixa econômica em que a fábrica deposita 5% dos juros das somas depositadas, uma sociedade de previdência para a qual os operários devem cotizar em torno de 2% de seu salário. A companhia também desenvolve uma política de habitação: construção de moradias- padrão, venda de terrenos a preços reduzidos e empréstimos para o acesso dos operários à propriedade.271

citados, de autoria do deputado Hélio Bicudo – PL 3843/97 e do deputado Navarro Vieira Filho - PL 7270/1986, os quais foram arquivados.

270 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 206/207. Max Weber relata que os trabalhadores das minas de Newcastle eram acorrentados por coleiras de ferro ( WEBER, Max. Historique économique. Apud CASTEL, Robert. As

metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p.

207).

271 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, 4ªedição. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p.330/331.

Essa tutela se aproximava daquela prestada na servidão ou corporações de ofício, em que o prestador de serviços se vê diante de uma relação de total dependência e submissão em relação ao patrão, pois no exemplo acima quando os trabalhadores da família Schneider resolveram comandar a caixa econômica foram advertidos: “Cuidado, vocês fazem oposição, polida mas não menos oposição, e eu não gosto da oposição”272.

De toda sorte, não havia espaço jurídico para se cobrar qualquer responsabilidade do empregador pela pessoa do empregado, por sua saúde ou integridade física. Os proletários são estimulados a formar associações de socorro mútuo, as quais são supervisionadas pelo Estado, com a estrita limitação do número de integrantes de modo a obstar a sua transformação em entidades reivindicativas.

As péssimas condições de trabalho, a opressão operária e a desqualificação e homogeneização decorrentes da implantação da racionalização da organização do trabalho (que posteriormente originaram o taylorismo/fayolismo) beneficiaram a formação de uma consciência de classe. A defesa à liberdade, igualdade e outros direitos fundamentais contra o poder do empregador se expressava em práticas de sabotagens, boicotes, luddismo ou manifestações públicas coletivas contra as condições de trabalho. A denúncia de Marx quanto às desigualdades entre os pactuantes de um contrato de trabalho e a teoria da centralidade do trabalho difundidas pelo Manifesto Comunista de 1848 tomam fôlego. As manifestações coletivas são duramente reprimidas pelo Estado porque contrárias à lei, à ordem e à concepção de liberdade individual da época, expressas na revogação das corporações de ofício e da coalisão de empregados e empregadores pela

272 A advertência de Schneider resulta em uma greve, em 1870. (CASTEL, Robert. As metamorfoses da

Lei Chapelier na França (1791)273 e do direito de coligação na Inglaterra (1799). Como relatam Orlando Gomes e Elson Gottschalk:

O indivíduo nasceu e devia viver livremente. Para que predominasse, em toda soberania, o reino da lei, os indivíduos teriam que viver sem liga social. Todo grupo organizado forma uma ‘vontade de imperialismo’ (Seillère), incompatível com os princípios da liberdade individual. O Estado Liberal, guardião dessas liberdades, não poderia permitir a opressão do indivíduo pelo grupo, nem a ação combativa de grupos rivais.274

Contudo, os proletários encontram somente o caminho coletivo para fazer ruir a legitimidade desse sistema opressivo de trabalho. Nascem as primeiras normas esparsas regulando a relação de emprego em seu aspecto individual, tais como: a limitação das condições de trabalho em razão da idade (Inglaterra, 1802), limitação da jornada de trabalho (França, 1848; Inglaterra, 1847; Rússia, 1897. A intervenção estatal cresce principalmente na regulamentação do contrato individual de trabalho, com a instituição de normas de ordem públicas, ou seja, inderrogáveis. O reconhecimento legal do direito de associação ou de greve sucede à regulamentação individual (Inglaterra, 1826; França, 1864; Brasil, 1903).

O Estado Liberal é colocado em xeque por movimentos ideológicos anarquistas, marxistas e socialistas e pelo modelo capitalista de produção embasado no fordismo, que tem como intuito a criação de uma sociedade de consumo de massa. Surge, desse modo, no início do século XX, principalmente após a 1ª Guerra Mundial, com o reconhecimento internacional dos direitos dos trabalhadores por meio da criação da Organização Internacional do Trabalho pelo Tratado de Versalhes, o paradigma do Estado

No documento O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL (páginas 143-152)