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2.1 SER OU ESTAR VELHO/A? O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO E AS

2.1.4 Teoria do Desengajamento

A teoria do Desengajamento ou Afastamento proposta nos EUA é, sem dúvida, um marco no estudo sobre o envelhecimento e a velhice, tendo revolucionado a forma de se pensar o tema. Sua importância refere-se não apenas ao seu conteúdo, mas resulta, também, de ter sido a primeira teoria científica no campo dos estudos sobre envelhecimento, o que influenciou a teorização sobre o tema e o entendimento sobre a pesquisa gerontológica (Marshall, 1994; Lynott & Lynott, 1996). Ademais, provocou a comunidade gerontológica da época gerando grande polêmica, levando a estudos empíricos, pesquisas comparativas internacionais e reformulações e diferenciações das teorias propostas. Apesar disto, as publicações referentes a esta teoria são pouco referenciadas no Brasil (Doll et al., 2007). Apesar de necessitar de adaptações e ressalvas em função dos pressupostos funcionalistas, passados 50 anos após sua elaboração ainda segue fornecendo possibilidades de explicação para alguns fenômenos da vida moderna, podendo ser usada como argumento teórico que ajuda a explicar, do ponto de vista do social, as relações entre envelhecimento, gênero, trabalho e mercado de trabalho.

Apesar de focar primordialmente o indivíduo, é importante ressaltar a grande importância conferida à sociedade na teoria do desengajamento. Segundo esta teoria, a sociedade conta com mecanismos institucionalizados para o desengajamento e o indivíduo os aceitaria como um membro obediente do sistema social. Este processo ocorre pela internalização das normas e valores sociais, culminando com a crença de que o desengajamento deve ocorrer para benefício da sociedade (Lynott & Lynott, 1996). Ademais, assume que homens e mulheres lidam diferentemente com o envelhecimento e com o afastamento do mundo produtivo em função das suas trajetórias e dos papeis sociais desempenhados ao longo da vida fortemente desenhados pela divisão sexual do trabalho.

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Conforme esta teoria, ao fim e ao cabo, prevalece a “vontade” do social no desengajamento do indivíduo.

Essa teoria foi desenvolvida no âmbito do Kansas City Study of Adult Life que ocorreu entre 1952 a 1962 e teve dois conjuntos de estudos, o primeiro baseado em 750 entrevistas individuais com pessoas entre 40 e 70 anos e o segundo referente a 280 pessoas entre 50 e 90 anos, algumas delas tendo sido entrevistadas várias vezes ao longo de 6 anos (Marshall, 1994). O foco da investigação estava no comportamento interpessoal, mostrando que além do aspecto biológico influenciavam aspectos psicológicos e sociais, como o gênero. Buscaram identificar mudanças durante a meia-idade e velhice no tocante a atitudes, sentimentos e valores, transformações estas expressas na inter-relação com os outros e, consequentemente, no desempenho de papeis sociais (Cumming & Henry, 1961). A partir destas pesquisas Elaine Cumming e William E. Henry publicam, em 1961, o livro Growing Old: the process of

disengagement em que discutem, a partir de uma pesquisa empírica, uma teoria geral de

interpretação da natureza social e psicológica do processo de envelhecimento na sociedade norte-americana.

A teoria do desengajamento foi formulada a partir do paradigma sociológico do funcionalismo estrutural de Talcott Parsons (Neri, 2005), autor este que escreve o prefácio do livro que apresenta a teoria. Foi, também, uma primeira tentativa de formular uma teoria geral do processo de envelhecimento nas ciências sociais. Conforme a apresentação do livro por Parsons (1961) há um processo de adaptação às condições da velhice que, apesar das diferenças entre os indivíduos – como é o caso do gênero – ainda assim apresenta características que permitem falar em um padrão comum, especialmente numa lógica binária entre homens e mulheres. A esse processo de adaptação os autores denominam de desengajamento. Seus autores a descrevem como uma teoria social-psicológica por ligar a teoria da personalidade com a teoria social, o interesse residiu justamente na interface entre ambos.

Em Growing Old, Damianopoulos (1961) apresenta o conceito de desengajamento como sendo um processo inevitável, no qual muitas relações do indivíduo com os membros da sociedade são cortadas e aquelas que se mantêm sofrem alterações. Além disto, sintetiza os principais postulados que sustentam a teoria do desengajamento:

a) postulado 1: Apesar dos indivíduos serem diferentes, o autor pontua que a expectativa de morte é universal e a decrepitude é provável. Em função disto, um rompimento

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mútuo dos laços entre uma pessoa e demais membros de uma sociedade acontecerá, ocorrendo mais cedo para alguns e mais tarde para outros;

b) postulado 2: Como as interações sociais criam e reafirmam as normas sociais, uma redução no número e na diversidade de relacionamentos acaba por criar, de um lado, uma maior liberdade sobre o comportamento cotidiano; por outro lado, este mesmo processo reforça o desengajamento, tornando-o circular e seu universo de relações sociais se torna cada vez menor e assim o desengajamento se autoperpetua;

c) postulado 3: reflete a ideia de divisão entre o papel produtivo para os homens e o papel reprodutivo para as mulheres. Segundo o autor, como o papel principal dos homens nas sociedades ocidentais é instrumental voltado para o mundo ocupacional e o papel principal das mulheres é sócioemocional direcionado à família, o processo de desengajamento será vivenciado de forma diferente pelos homens e pelas mulheres;

d) postulado 4: o ciclo de vida do indivíduo é pontuado por mudanças do ego, como, por exemplo, o processo de envelhecimento é, geralmente, acompanhado de perdas de conhecimento e aptidões. Ao mesmo tempo, o sucesso nas sociedades industrializadas é baseado nestes mesmos conhecimentos e aptidões. Desta forma, a segmentação por faixas etárias é um mecanismo utilizado para assegurar que um jovem estará suficientemente bem treinado para assumir responsabilidades e que o velho se aposentará antes que seu conhecimento se torne obsoleto ou que perca suas capacidades. Isto porque, conforme o autor, nas sociedades ocidentais industrializadas a posição no mundo do trabalho tem com critério universal o desempenho e não critérios biológicos ou herança cultural. Assim, o desengajamento pode ter início por parte do indivíduo ou por parte da sociedade em função dos imperativos organizacionais, ou ainda, por ambos;

e) postulado 5: quando indivíduo e sociedade estão prontos para o desengajamento, este acontecerá completamente. Quando nenhum está pronto, o engajamento continua. Quando o indivíduo está pronto e a sociedade não está, há uma disfunção entre expectativas do indivíduo e dos demais membros do sistema social, mas usualmente o engajamento continua. Quando a sociedade está pronta para o desengajamento e o indivíduo não, o resultado desta tensão é usualmente o desengajamento. No primeiro caso de conflito (indivíduo pronto e sociedade não) o autor afirma que a sociedade tentará engajá-lo novamente. Quando o contrário ocorrer (sociedade pronta, indivíduo não) a sociedade o dispensará e o indivíduo pode conseguir engajar-se em uma atividade que requeira aptidões

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diferentes e que ainda as mantenha. O autor mostra, assim, que tende a preponderar a disposição da sociedade.

f) postulado 6: Este postulado, ao lado do postulado 3, reflete fortemente o tempo e o espaço em que é desenvolvida a teoria, deixando entrever a forma como a sociedade entendia a função do homem e da mulher, hoje muito modificada. Conforme Damianopoulos (1961), o abandono dos papeis centrais na vida – o trabalho para os homens e o casamento e a família para as mulheres – resulta em uma dramática redução no espaço da vida social, ocasionado crises e perda da moral, a menos que outros papeis adequados para o estado de desengajamento estejam disponíveis. Para os homens, o desengajamento ocasiona diversas perdas: pertencimento a um grupo de colegas, contribuição para a sociedade por meio de uma tarefa instrumental e a identidade advinda do status ocupacional. Para as mulheres também haveria perdas: perda do esposo pela viuvez, do status derivado da ocupação profissional do marido e a mudança de laços sociais obrigatórios para laços voluntários.

g) postulado 7: se o indivíduo se torna nitidamente consciente da brevidade de sua vida e da escassez de tempo que lhe resta pela frente e, ainda, se ele percebe a diminuição do seu espaço de vida e que sua energia disponível está diminuindo, então ele está pronto para o processo de desengajamento;

h) postulado 8: as reduções nas interações e a perda dos papeis centrais resultam numa mudança na qualidade dos relacionamentos nos papeis restantes. Há uma mudança nas relações, tendendo a passar de relações verticais para horizontais, ou seja, mudança nas relações que antes eram obrigatórios no trabalho e na família (verticais) para relações voluntárias e que tendem a ser entre iguais (horizontais). O autor pontua que no caso de pessoas que trabalhavam em postos de alto prestígio e com estruturas hierárquicas bem marcadas – na época somente homens – a mudança na qualidade das relações pode inclusive gerar traumas;

i) postulado 9: O autor salienta que o desengajamento é um conceito livre de cultura no sentido de ser universal, mas a forma como acontecerá será sempre marcada pela cultura. Conforme Damianopoulos (1961), na sociedade americana o desengajamento é mais difícil para homens que para mulheres. Em sociedades patriarcais e tradicionais que valorizam a sabedoria, o papel do homem quase não muda com o envelhecimento, e em alguns casos ele se torna até mais engajado do que era antes da velhice. Nas sociedades com escassez de recursos, o desengajamento coincide com a perda da aptidão instrumental.

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Na teoria do desengajamento são questionados diversos pressupostos gerontológicos sobre a relação de pessoas mais velhas com o trabalho ao afirmar que as pessoas idosas desejam reduzir seus contatos sociais, e que com isso se sentem mais felizes e contentes. Questiona-se se um valor da meia idade que é seguir em atividade seria um valor necessário para os/as idosos/as. Este entendimento acaba levando, em algum momento no processo do envelhecimento, a um conflito entre a continuidade da atividade, de um lado, e o enfrentamento subliminar com o final da vida, de outro lado (Doll et al., 2007).

Esta teoria foi muito criticada por não levar em conta que a velhice comporta vários tipos de experiências de afastamento dependentes de variáveis como classe social, profissão, renda, escolarização, status, gênero e saúde. O afastamento pode ocorrer em alguns domínios da vida, como a vida familiar ou profissional, mas não necessariamente em todos, o que ressalta o caráter multidimensional e multidirecional do processo de envelhecimento de forma geral e do processo de desengajamento, de forma específica. Deste modo, a ideia de um desengajamento diferencial tem hoje ampla aceitação entre os gerontólogos (NERI, 2005).

Trazendo a discussão para o campo da Administração e fazendo as devidas ressalvas sobre o paradigma no qual se insere e de pontos que são muito marcados historicamente e espacialmente, esta teoria de base sociológica pode contribuir com diversos insights para diagnóstico e análise do que ocorre ainda hoje na relação envelhecimento e mercado de trabalho com intercorrência dos aspectos de gênero.

Considera-se pertinente clarificar qual o entendimento de mercado de trabalho adotado neste trabalho e também evidenciar o espaço onde as características inerentes aos indivíduos como a idade e o gênero intervêm na constituição de diferentes mercados de trabalho.

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