2. C APÍTULO II: O PS ICODRAMA E A EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS E
2.2. Psicodrama: principais conceitos e técnicas
2.2.1. Teoria dos papéis
De acordo com Holanda (1998) etimologicamente diversos termos dão origem à palavra papel com diferentes sentidos. O termo vem do latim medieval rotulus (derivado de
rota = roda) que pode significar tanto "uma folha enrolada contendo um escrito", bem como
"aquilo que deve recitar um ator numa peça de teatro".
No sec. XI o termo era utilizado também no sentido de "função social", "profissão". O termo francês "rôle", o inglês "role" e o castelhano "rol" igualmente têm sua origem na mesma etimologia latina "rotulus".
A palavra papel na língua portuguesa, etimologicamente, vem do grego papyros, e do latim papiro. Papiro designava um arbusto do Egito de cuja entrecasca se fazia o papel, obtendo- se o material para a escrita.
O significado de rôle é o de uma folha contendo um escrito e o de papel o material utilizado na confecção da folha. Da mesma forma, a palavra portuguesa papel significa, de modo geral, o material utilizado para a escrita. Constata-se que os significados originais de rotulus foram incorporados à língua portuguesa pela palavra papel. Isso porque, além de indicar o material utilizado na escrita (papiro), papel refere-se também à "personagem representada por um ator", ou à "parte que cada ator desempenha no teatro, no cinema, na televisão, etc." e, ainda, à "atribuição de natureza moral, jurídica, técnica, etc.", isto é, desempenho, função, como papel de pai, juiz, médico, por exemplo.
Para Jacob Levy Moreno (1993), além das definições relacionadas à arte teatral, papel pode ser definido como “uma função assumida na realidade social”. Vejamos:
O papel também pode ser definido como uma parte ou um caráter assumido por um ator, uma pessoa imaginária como Hamlet animada por um ator para a realidade. O papel ainda pode ser definido como uma personagem ou função assumida na realidade social, por exemplo, um policial, um juiz, um médico, um deputado (MORENO, 1993, p. 206).
O autor também define papel como “as formas reais e tangíveis que o “eu” adota” (p.206), tais como o papel de pai, padeiro, piloto.
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Moreno afirma (1993):
O desempenho de papeis é anterior ao surgimento do ego. Os papeis não decorrem do eu mas o eu pode emergir dos papeis. O fator S pode animar um gesto, mesmo que nenhum “eu” nem o “outro” social estejam ainda envolvidos se não houver linguagem nem maquinaria social disponível para a sua comunicação (MORENO, 1993, p.210).
Os papéis e suas relações entre si são os fenômenos mais importantes de uma cultura, (Moreno, 1993), sendo todo papel uma fusão de elementos coletivos e individuais, ou seja, elementos privados, sociais e culturais.
Para Gonçalves (1988), o conceito de papel envolve inter-relação e ação, pressupondo o papel complementar: pai-filho, professor-aluno, etc., e é a menor unidade observável da conduta. A base psicológica para todo desempenho de papéis é a matriz de identidade, onde estes surgem. Segundo o autor, podemos dizer que há três tipos de papéis:
Psicossomático: papel de quem come, dorme, etc. Estes papéis não permitem uma relação pessoa para pessoa, pois não há diferenciação, mas são complementados pelos papéis de matriz (a mãe que alimenta);
Social: opera na função realidade e na dimensão social de inter-relação, a mãe, o filho, o professor e o cristão, são exemplos de papéis sociais;
Psicodramático: corresponde à dimensão psicológica do “eu” e em sua função fantasia, uma mãe, um professor, um marido.
Os papéis psicodramáticos e sociais surgem na terceira fase da matriz, juntamente com a brecha entre a fantasia e a realidade e a inversão de papéis.
Para o aprendizado e a medição de papéis utilizamos (Moreno, 1992, p. 98):
Role taking ou tomada de papéis que é a representação do papel já estabelecido, sem que haja liberdade no desempenho.
Role playing ou jogo de papéis onde se exercita um papel em status nascendi, havendo alguns parâmetros estabelecidos.
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Role creating ou criação de papéis no qual se permite grande liberdade, colocando-se situações para que se possa reagir espontaneamente.
Segundo o próprio criador do Psicodrama, o conceito de papel é um dos mais significativos conceitos dentro da nova estrutura da ciência da Psiquiatria (1993). Ele argumenta na defesa de sua contribuição para tal conceito:
É um “mito” que o sociólogo norte-americano G.H.Mead tenha exercido uma influência marcante sobre a formulação do conceito psiquiátrico de “papel” e de sua psicopatologia. A formulação e desenvolvimento desse conceito e das técnicas de desempenho de papéis é de exclusivo domínio dos especialistas em psicodrama (MORENO,1993, p. 24).
Moreno continua:
O que nós, os especialistas em psicodrama, fizemos, foi (a) observar o processo do papel no próprio contexto da vida; (b) estudá-lo em condições experimentais; (c) empregá-lo como método psicoterapêutico (terapia da situação e do comportamento); e (d) examinar e treinar o comportamento no “aqui e agora” (adestramento de papel, adestramento da conduta e espontaneidade) (Idem).
A relevância dada ao conceito de papel neste trabalho deve-se ao fato de que, segundo Moreno, (1993):
Antes e imediatamente após o nascimento, o bebê vive num universo indiferenciado, a que eu chamei de “matriz da identidade”. Essa matriz é existencial mas não é experimentada. Pode ser considerada o locus donde surgem,em fases graduais, o eu e suas ramificações, os papeis. Os papeis são os embriões, os precursores do eu [...] (MORENO,1993, p. 25).
2.2.1.1. Matriz de identidade
O conceito de matriz de identidade desenvolvido por Moreno (1993) refere-se ao conjunto de condições psicológicas e sociais no qual a criança é inserida ao nascer. Gonçalves assegura que:
A matriz de identidade, no seu sentido mais amplo, é o lugar do nascimento (lócus nascendi). Moreno a definiu também como placenta social pois, à maneira da placenta, estabelece a comunicação entre a criança e o sistema social da mãe, incluindo aos poucos os que dele são mais próximos (GONÇALVES 1988, p. 60).
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Ao longo de seu desenvolvimento emocional e construção de sua identidade, ela passa por seguintes fases:
As fases da Matriz, segundo Moreno (1993), são:
Fase do duplo – fase de indiferenciação, a criança, a mãe e o mundo são uma coisa só. A criança é dependente do outro para fazer o que não pode fazer ainda, necessitando de ego auxiliar ou doublé (inspirado no cinema).
Fase do espelho – há dois momentos nesta fase. No primeiro, a criança concentra sua atenção em si e, no segundo momento, passa a concentrar atenção no outro, ignorando a si. Nesta fase a criança olha no espelho e diz ser outro bebê.
Fase da inversão – primeiramente a criança representa o papel do outro, mas não aceita o outro em seu papel; depois passa a haver a inversão simultânea de papéis. Acerca da “brecha entre a fantasia e a experiência da realidade” fenômeno que ocorre entre as fases de desenvolvimento da criança, vejamos o que Moreno nos diz:
Num certo ponto do desenvolvimento infantil, com o inicio do “segundo” universo, a personalidade passa a estar normalmente dividida. Formam-se dois conjuntos de processos de aquecimento preparatório – um de atos de realidade, outro de atos de fantasia – e começam se organizando. Quando mais talhado estiverem esses caminhos, mais difícil se torna passar de um para o outro sob o estímulo do momento (MORENO, 1993, p.123).
Moreno prossegue nos esclarecendo:
O problema não consiste em abandonar o mundo da fantasia em favor do mundo da realidade ou vice-versa, o que é praticamente impossível; trata-se, todavia, de estabelecer meios que permitam ao indivíduo ganhar completo domínio da situação, vivendo em ambos os caminhos mas capaz de transferir-se de um a outro (Idem).
Assim sendo, segundo o próprio autor “o fator que pode garantir esse domínio para uma rápida transferência é a espontaneidade”. Esse conceito é uma categoria central do pensamento e da ação de Moreno.
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2.2.1.2. Indiferenciação
É o momento evolutivo em que a criança ainda não se distingue das pessoas com quem interage: ela e o mundo são uma única coisa, uma massa informe sem contornos definidos. Pessoas e objetos se confundem; as fronteiras entre o interno e o externo estão diluídas.
2.2.1.3. Reconhecimento do Eu
Nesta fase, a criança está com sua atenção centrada em si: nos contornos do seu corpo, no reconhecimento de si no espelho. Ao perceber que seu corpo está separado da mãe, das pessoas, dos objetos, concentra sua energia em explorar o reconhecimento de suas fronteiras.
Este processo é o resultado de um contínuo jogo de papéis entre o bebê e seu ego- auxiliar, a mãe. A partir das experiências psicossomáticas da alimentação e dos cuidados maternos, a criança vai identificando suas necessidades e o movimento do outro para satisfazê- las. É, portanto, sempre no contexto interpessoal que a aprendizagem emocional e a definição da identidade se processam.
2.2.1.4. Reconhecimento do Tu
Caracteriza-se pela exploração do diferente, do que não é o eu. Através deste processo de reconhecimento do que não é próprio, a criança fortalece a sua identidade. O tu, nesse momento, é meramente instrumental, ou seja, está convenientemente a serviço do processo de reconhecimento do eu. É a fase da exploração do mundo, do diferente, da descoberta de que o outro age e reage diferentemente dela, criança.
2.2.1.5. Pré-inversão
É a fase em que a criança começa a se experimentar no papel do outro. Ainda é uma vivência automatizada, carecendo de sensibilidade para a experiência alheia. É a fase da imitação, do faz-de-conta, uma espécie de ensaio e preparação para uma futura inversão, quando a reciprocidade estará então presente.
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2.2.1.6. Inversão de papéis
Experiência indicadora do amadurecimento emocional, em que o indivíduo não só se percebe separado do outro como também é capaz de compreender a significação de sua vivência diferenciada. A capacidade de se colocar no lugar do outro e a possibilidade de que este se coloque em seu lugar criam as condições necessárias para que se realize um verdadeiro encontro, uma experiência produtora de crescimento para ambos os participantes e fortalecedora do vínculo.
Apesar de se iniciar com o nascimento e se desenrolar em grande parte nos primeiros anos de vida de um indivíduo, este movimento evolutivo não é retilíneo e pode sofrer avanços e retrocessos ao longo das várias vivências que pontuam a sua existência. Na adolescência, por exemplo, as mudanças físicas, emocionais e sociais provocam uma reativação de vivências características da fase do reconhecimento do eu. O momento de definição profissional para o adulto jovem pode configurar-se como outro ponto crítico na construção e revisão de sua identidade. É a partir da Matriz que nos definimos como indivíduos.