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2 FIGURAÇÕES RELEVANTES

3 FUNDAMENTOS, ESTRATÉGIAS E CAMINHOS DA PESQUISA

3.1 Teoria das Representações Sociais (TRS)

Por intermédio do tópico desta seção, distingue-se um direcionamento, revela-se a escolha de uma teoria específica para auxiliar a ação prática desenvolvida durante a execução empírica da pesquisa. No contexto dos pensamentos que foram expressos pelos participantes foi relevante conceber tais pensamentos como espelhos de representações sociais construídas por eles em relação ao tema dado. Tomou-se então as Representações Sociais como um caminho, uma escolha para que se pudesse obter os resultados pretendidos.

Na literatura são delineados três níveis de discussão sobre as representações sociais, são elas:

- as representações sociais como um fenômeno (configuram como objeto de investigação)

- as representações sociais como teoria (conjunto de definições conceituais e metodológicas que elaboram os constructos relativos às representações sociais)

- as representações sociais como metateoria (debates e refutações críticas com respeito aos postulados de tal teoria em comparação com modelos teóricos de outras teorias). (GUARESCHI, 2000)

No contexto desta tese é possível destacar o segundo tópico abordado acima, pois as representações sociais demonstra-se como uma teoria que fundamenta o método para a compreensão das representações manifestadas pelos bibliotecários que atuam em bibliotecas públicas catarinenses a respeito do fenômeno da exclusão social em seu contexto de atuação.

Em sua tese doutoral, Serge Moscovici introduziu em 1961 o conceito de representação social. Estudou como as pessoas constroem e são construídas pela realidade social. A ideia de construção da realidade social foi desenvolvida por Durkheim. Posteriormente com base nos aportes filosóficos da fenomenologia de Husserl, foi desenvolvida por Schutz. A partir de Schutz, Peter Berger e Thomas Luckmann são os pesquisadores que mais utilizam e desenvolvem o conceito. Serge Moscovici propôs uma teoria que possui como objeto de estudo o conhecimento de senso comum (ARAYA UMAÑA, 2002). Reabilitando o senso comum, considera o saber popular e o conhecimento da vida cotidiana. (MARKOVÁ, 2006).

A TRS se ocupa desse saber social no entendimento de que saber se refere a qualquer saber, entretanto, a teoria está direcionada para os saberes que se produzem na vida cotidiana, que pertencem ao mundo vivido. (JOVCHELOVITCH, 1998).

Segundo seu criador, o pano de fundo em que se desenvolveu a TRS leva em consideração as representações ou crenças, a origem social das percepções, bem como, o papel (por vezes de coação) das representações e crenças. Isso enfatiza sua relevância para um estudo como este. Poder e interesses, por exemplo, para serem reconhecidos socialmente necessitam de representações ou valores que lhes atribuam algum sentido, em que indivíduos convirjam e se unam em torno de crenças que garantam sua existência em comum. Isso é guiado não simplesmente pelo conhecimento ou técnica, mas por opiniões que pertencem à outra ordem (crença sobre a vida em comum, como as coisas devem ser, o que se deve fazer, o que é justo, verdade, belo, entre outras coisas) que produzem um impacto no comportamento, na forma de sentir, de transmitir e permutar bens. O que as sociedades pensam sobre seu próprio modo de vida, os sentidos que atribuem às instituições e imagens que partilham, são parte constitutiva de sua realidade e não somente um reflexo seu. (MOSCOVICI, 2009).

A TRS reforça o contexto fenomenológico preconizado por Husserl (1990) ao validar as percepções, a ideia de interdependência revelada por Elias (1994), de construcionismo social de Berger e Luckmann (2007) e também a concepção da filosofia da ficção de Flusser (BERNARDO, 2011) ao admitir que os indivíduos vivem e constroem uma realidade compartilhada que muitas vezes é pautada não em conhecimento científico ou técnico, mas em um conhecimento apoiado, por exemplo, em uma crença espiritual.

Por vivermos e sermos parte da construção permanente deste mundo compartilhado e interdependente, Moscovi (2009) enfatiza que é necessário lembrar que quase tudo que um indivíduo sabe, aprendeu com outro através da linguagem. Este conhecimento possui raízes submersas no mundo da vida e nas práticas coletivas em que todos participam e que necessitam ser renovadas constantemente. Portanto, o conhecimento e crenças significativas se originam impreterivelmente da interação entre os indivíduos.

O ato de pesquisar é uma atitude imersa neste mundo da vida. Não será possível acessar as representações desejadas se não pela interação, pelo recurso da linguagem, pela comunicação, pela oitiva das pessoas. A partir desta reflexão, a seguir, destaco a relevância da linguagem e do senso comum para as representações sociais no contexto desta tese doutoral.

3.1.1 A relevância da linguagem no mundo da vida para as representações sociais

A proposta de compreender tais representações possui relação estreita com a utilização da linguagem, com a interação e comunicação na realidade da vida cotidiana.

Todos nós estamos cercados, individualmente e coletivamente, por palavras, ideias e imagens que penetram por nossos sentidos e mente e nos atingem (MOSCOVICI, 2009). Segundo Nietzsche (2013b), o homem como criador da linguagem, estabeleceu um mundo próprio, o que o fez se erguer acima do animal.

Locke (1999, p. 57, 58) empenhou esforço na pesquisa sobre o entendimento humano a partir das faculdades discernentes no homem elaborando perguntas como: se a mente é “[...] um papel em branco, desprovida de todos os caracteres,

sem nenhuma ideia, como poderia ser suprida?”; e “De onde lhe provém este vasto estoque que a ativa e ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita?”; e “De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento?”. Suas reflexões levam a considerar como resposta a experiência que nos chega através dos sentidos e nos faz receber as ideias de cores (amarelo, branco, preto...), temperaturas (quente, frio...), sabores (amargo, doce...) e todas as demais qualidades sensíveis. Afirma que os sentidos levam para a mente o que os objetos externos produziram de percepções.

Essa linha de reflexão pode levar a Flusser (2007) e seu entendimento de que os sentidos conduzem palavras que chegam organizadas em frases, ordenadas. Ao serem apreendidas e compreendidas, constituem um significado. Em sua articulação de uma ideia sobre a língua percebida internamente, em abordagem ontológica, destaca que o intelecto (infraestrutura), os sentidos (superestrutura) e o espírito (“ou qualquer outra palavra”) constituem o Eu. Analogicamente para o autor, este Eu é uma árvore que tem como os sentidos suas raízes (“ancoradas no chão da realidade”), como o intelecto seu tronco (que transporta a seiva colhida pelas raízes) e o espírito como produtor de folhas, flores e frutos. A realidade é apreendida pelos sentidos – raízes do Eu – e ao chegarem até o intelecto – tronco – se transforma em palavras. O intelecto consiste, portanto, de palavras - é produto e produtor da língua, ele “pensa”. “Apreender palavras é formar intelecto” e este se realiza na “conversação”. O autor propaga pensamentos da língua e de sua interação como realidade, como processo histórico criador. (FLUSSER, 2007, p. 56, 57, 59, 247).

Marková (2006, p. 52) sugere que a mente seja caracterizada como sendo a capacidade dos seres humanos para a comunicação, para atribuir sentido aos sinais, símbolos e significados em suas experiências, mas também, criar novos sinais, símbolos e significados – uma capacidade que está enraizada na história e na cultura. A mente, segundo a autora, é especialmente ativada em eventos sociais e os fenômenos em comunicação e em tensão tocam e perturbam de maneira fundamental as vidas dos indivíduos, grupos e sociedades, tornando as mudanças sociais possíveis e até inevitáveis. É necessário entender a mente como um fenômeno constituído

histórica e culturalmente em comunicação, tensão e mudança. A autora destaca “onde existe diálogo, existe atividade humana” e essa é uma questão que explica a relevância da teoria das Representações Sociais, criada por Moscovici.

É na interação que se forma o humano e a linguagem é um instrumento que estabelece uma ordem, um cosmo, na relação entre os indivíduos. Berger e Luckmann (2007) endossam que é a partir da interação social que o indivíduo afirma o sentido da realidade e a linguagem figura como doadora de significação para esta realidade. O mundo da vida cotidiana, o mundo intersubjetivo que já existia antes de termos nascido no mundo, é o mundo já experimentado, interpretado e organizado pelos nossos antecessores. Este estoque de experiências prévias a respeito do mundo, nossas próprias experiências e as que são comunicadas (por pais, professores) operam como um referencial. (SCHUTZ, 2012). Crescendo num grupo e na relação com outros seres humanos, a criança pequena se transforma num ser mais complexo, a criatura impulsiva e desamparada se transforma em pessoa psicologicamente desenvolvida e somente a partir do grupo aprende a fala articulada (ELIAS, 1994).

A linguagem é gramatical e também cultural, uma espécie de herança social em que, como destaca Schutz (2012), o sistema de conhecimento adquirido assume para seus membros a aparência de suficiente coerência, clareza e consistência, conferindo a todos a possibilidade de compreender e ser compreendido.

Relevante destacar que a linguagem, como um sistema de sinais criado pelo homem, ordena e orienta não somente as palavras e frases mas também o homem em sua conduta. Berger e Luckmann (2007) destacam seu caráter coercitivo sobre os indivíduos, que força-os a seus padrões. (BERGER; LUCKMANN, 2007).

Como já mencionado anteriormente, Nietzsche (2013) ao refletir sobre em que condições o homem inventou os juízos do que é “bom” e “mau”, destaca que a origem da linguagem representa uma expressão de poder dos senhores – dos que estão no poder - que tomam para si o direito de dizer que ‘isto é isto’, enfatizando ainda mais profundamente o contexto moral da linguagem.

A grandiosidade do impacto da linguagem na constituição do que conhecemos por realidade é bastante explorada por

Flusser (2007, p. 235) em sua obra “Lingua e realidade”. O autor destaca que a grande conversação que somos e que teve sua gênese com o que chama de “balbuciar” e “salada de palavras” dos pensamentos e intelectos que se projetaram rumo à realização continua seu avanço e foi graças a esse avanço que o território da realidade expandiu-se e aprofundou-se.

“Importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que são” afirma Nietzsche (2012b, p. 91) fomentando a ideia de que a reputação, o nome e o modo como uma coisa é vista mediante a crença que as pessoas tiveram e que foi incrementada gradualmente por gerações, enraízam-se e encravam-se na coisa.

Toda a argumentação esclarece no contexto deste estudo que a realidade, para os indivíduos, é apresentada mediante o processo de comunicação do pensamento social baseado nas experiências dos nossos antecessores, um pensamento baseado nas crenças compartilhadas, no senso comum.

O senso comum neste sentido se apresenta como “realidade por excelência”, impondo-se à consciência das pessoas através de uma realidade ordenada, objetivada e ontológica. (ARAYA UMAÑA, 2002). O próprio entendimento do conceito de representações sociais exige maior esclarecimento sobre o conceito de senso comum no contexto que se deseja empregar. Algo que é dito como sendo um senso comum, possivelmente poderá significar para alguns leitores algo que não está delineado, não está aprofundado, um conhecimento vulgar.

3.1.2 Senso comum e representações sociais

O senso comum é um tipo específico de conhecimento que retrata o que as pessoas pensam e como organizam sua vida cotidiana e as representações sociais se ocupam deste tipo de conhecimento. Estas, as representações sociais, são sistemas cognitivos que possibilitam o reconhecimento de estereótipos, opiniões, crenças, valores e normas. Constituem-se como sistema de códigos, valores, lógicas classificatórias, princípios interpretativos e orientadores da prática que definem a consciência coletiva e que atuam com força normativa estabelecendo os limites e possibilidades na forma de homens e mulheres atuarem no mundo. (ARAYA UMAÑA, 2002).

Por que algumas pessoas não usam preservativos apesar das evidências de seu caráter preventivo com relação às doenças sexualmente transmissíveis? Por que as mulheres vítimas de violência doméstica esperam (algumas vezes até sua morte) pela conversão de seu agressor? Qual a representação social de “amor”, “corpo”, “violência” ou “sexo” que acompanha estas práticas? São algumas perguntas que Araya Umaña (2002) faz ao endossar a relevância dos estudos de representações sociais para compreender a visão de mundo das pessoas e grupos, entender a dinâmica das interações sociais e evidenciar o que se demonstra determinante nas práticas sociais através do senso comum.

Azevedo (2008, p. 2), ao estabelecer relações entre o senso comum, o samba e o discurso popular destaca que, em geral, “no discurso moderno, hegemônico e escolarizado”, senso comum associa-se a termos como “lugar-comum”, “fórmula”, “o mesmo de sempre”, “estereótipo”, “clichê”, “obviedade”, “banalidade”, ‘redundância” e “falta de originalidade”, expressões abordadas em seu sentido pejorativo.

Marková (2006, p. 193) nos lembra que filosoficamente o conhecimento do senso comum nos remete à Aristóteles31, na Grécia Antiga e historicamente, constitui um dos principais recursos para o desenvolvimento do conhecimento científico (ainda que no processo de civilização tal conhecimento venha, implícita ou explicitamente, sendo tratado como “inferior” ao conhecimento científico).

As ciências naturais e sua filiação com a razão e racionalidade contrastam com o conhecimento popular, com as crenças, os mitos perceptíveis no conhecimento do senso comum e, por vezes, são associados à falta de racionalidade ou mesmo a irracionalidade. Racionalistas, como Gellner e Chomsky afirmam em suas obras “Razão e cultura” e “Novos horizontes no estudo da linguagem e da mente”, respectivamente, que o pensamento racional é um processo de

31 Tal expressão para Aristóteles se referia à capacidade de sentir, configurando duas funções: de constituir a consciência da sensação, o "sentir o sentir" (já que tal consciência não pertence a um órgão especial do sentido, como no caso da visão ou tato) e de perceber as determinações sensíveis comuns a vários sentidos (movimento, repouso, aspecto, tamanho...). (ABBAGNANO, 2007).

antropogênese que envolve o cognitivo em uma perspectiva inata e universal do indivíduo. Em sua ontogênese, a capacidade de pensar racionalmente se dá mediante o desenvolvimento de cognição do indivíduo. Em oposição, coloca-se a hipótese de que o pensamento racional que surge da antropogênese é decorrente da relação dialógica e interdependente do Alter-Ego32, da dialogicidade. Neste segundo caso, a capacidade de pensar racionalmente é a capacidade de se comunicar. (MARKOVÁ, 2006). A autora alerta que as duas perspectivas sobre o senso comum são hipóteses diferentes sobre o ser humano e que nenhuma pode reivindicar cientificamente evidências conclusivas sobre a natureza da racionalidade (MARKOVÁ, 2006).

Neste estudo, a dialogicidade no contexto esboçado apresentou-se como mais coerente. A partir dela, pode-se dizer que conhecimento racional não é algo individual, mas dialógico. Ao nascermos na sociedade e na cultura, nascemos e adotamos o conhecimento de senso comum (hábitos alimentares, conceitos de beleza e feiura, de moralidade e imoralidade, por exemplo) através da comunicação - ele está emaranhado com as demais formas de pensamento, de sabedoria e comunicação (MARKOVÁ, 2006). A capacidade de pensar racionalmente e de se comunicar, portanto, constitui o potencial para o pensamento do senso comum (MARKOVÁ, 2006), ideia que reforça a construção desta pesquisa acerca das representações que fazem parte do objetivo deste estudo.

A concepção de senso comum é denominada por Husserl de atitude natural (DARTIGUES, 2008). Berger e Luckmann (2007) destacam que a atitude natural é a atitude da consciência do senso comum porque se refere a um mundo que é comum para todos os indivíduos.

Schutz (2012) também reflete sobre a atitude natural. É o que o autor denomina “mundo da vida” que o homem adulto e plenamente consciente age e é mediante a atitude natural que experimenta a realidade. É no mundo da atitude natural que se referem os nossos juízos, neste mundo fazemos enunciados e relações sobre as coisas, exprimindo o que recebemos da nossa experiência. (HUSSERL, 1990)

Como já abordado anteriormente, este mundo da vida é um mundo intersubjetivo, que já existia antes de nosso

nascimento, já experimentado e interpretado por outros, nossos antecessores, um mundo previamente organizado. A interpretação sobre este mundo tem por base este estoque de experiências prévias que opera como um esquema de referência. A atitude natural não faz parte de um mundo privado de um único indivíduo, mas de um contexto comum, intersubjetivo – é o cenário onde agimos e interagimos. (SCHUTZ, 2012).

Azevedo (2008) relaciona, através dos estudos de Walter Benjamin, senso comum à sabedoria. Em sua obra “Gaia Ciência”, Nietzsche (2012, p. 132, grifo meu) parece suspirar quando escreve “E como ainda está longe o tempo em que as forças artísticas e a sabedoria prática da vida se juntarão ao pensamento científico, em que se formará um sistema orgânico mais elevado [...]”.

Para que fosse possível alcançar o objetivo proposto nesta tese foi imprescindível deixar aparente as representações elaboradas pelos bibliotecários de bibliotecas públicas acerca da exclusão social. Para que ficassem evidentes foi necessário algo que Flusser (1998, p. 37) denominou como um método “muito penoso” e também “uma violência contra nossa mente” (FLUSSER 2007, p. 44): a redução fenomenológica.

3.2 Postura do pesquisador fenomenológico

O ato de evidenciar e de deixar aparente qualquer fenômeno irá requerer uma postura específica do pesquisador. Denominada de epoché33, o ato de ‘suspender’, de colocar ‘entre

33 Suspensão do juízo, que caracteriza a atitude dos céticos antigos, particularmente de Pirro; consiste em não aceitar nem refutar, em não afirmar nem negar. [...] Segundo o ceticismo essa atitude era a única possível para se atingir a imperturbabilidade. [...] Na filosofia contemporânea, com Husserl e a filosofia fenomenológica em geral, a

epoché tem finalidade diferente: a contemplação desinteressada, ou

seja, uma atitude desvinculada de qualquer interesse natural ou psicológico na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo na sua totalidade. [...] A epoché fenomenológica distingue nitidamente a filosofia de todas as outras ciências que estão interessadas na existência do mundo e dos objetos nele compreendidos; por isso, faz do filosofar uma atitude puramente contemplativa, à qual pode revelar-se, em sua genuinidade, a própria essência das coisas“ (ABBAGNANO, 2007, p. 339).

parênteses’ a realidade concebida pelo senso comum - também chamada de redução fenomenológica - é uma tentativa de distanciamento. Para Husserl (1990, p. 29) trata-se da exclusão “de tudo que não é dado evidente no sentido genuíno, dado absoluto do ver puro”, “a investigação das essências”.

Tal atitude é uma postura necessária ao pesquisador fenomenológico na análise intencional já mencionada no texto que introduz este estudo.

Ora, a análise intencional conduz [...] a distinguir entre sujeito e objeto ou consciência e mundo, uma correlação mais original que a dualidade sujeito-objeto e sua tradução em interior-exterior, já que é no próprio interior da correlação que se operara a separação entre interior e exterior. Mas o acesso a essa dimensão primordial só é possível se a consciência efetua uma verdadeira conversão, isto é, se ela suspende sua crença na realidade do mundo exterior para se colocar, ela mesma, como consciência transcendental, condição de aparição desse mundo e doadora de seu sentido. Está aí uma nova atitude que Husserl chamará atitude fenomenológica. (DARTIGUES, 2008, p. 24-25, grifo nosso) Flusser (2007, p. 44) em sua obra “Língua e realidade” propõe tal esforço, o de colocar entre parênteses os conhecimentos acumulados no curso da história, disponíveis para referência futura, resgatando uma ingenuidade34, uma aproximação despida de conhecimentos prévios que proporcionará “apalpar o centro, o eidos da língua”.

Duveen (2009), ao apresentar para o leitor o livro “Representações Sociais: investigações em psicologia social”, de Serge Moscovici, destaca a relevância de uma estratégica de pesquisa, um passo inicial, na metodologia utilizada nos estudos do autor e de Denise Jodelet (com quem Moscovi trabalhou), a

34 O autor cita Husserl ao destacar que tal ingenuidade trata-se de uma ingenuidade de segundo grau, resultado do esforço da epoché, já que a ingenuidade não pode ser conquistada, pois se perde no curso da história do pensamento. (FLUSSER, 2007, p. 43-44)

saber, o de estabelecer uma distância crítica das representações.

Se as representações sociais servem para familiarizar o não-familiar, então a primeira tarefa dum estudo científico das representações é tornar o familiar não- familiar, a fim de que elas possam ser compreendidas como fenômenos e descritas através de toda técnica metodológica que possa ser adequada nas circunstâncias específicas. (DUVEEN, 2009, p. 25)

Álvaro de Sá, tradutor da obra de Elias (1998), “Envolvimento e alienação”, explica inicialmente que o autor utiliza o termo “alienação” como sinônimo para distanciamento, no sentido de que tal distância propiciaria melhor conhecimento dos fatos para melhor agir e, neste sentido, representaria um envolvimento em outro nível.

Tal método é o método empregado pela fenomenologia, exige permanente autocontrole para que preconceitos e valores não estejam apegados ao pesquisador que realiza o esforço de afastamento, e, ao ser aplicado com êxito, revela a própria essência das coisas (FLUSSER, 1998, grifo nosso).

Schutz (2012, 71), endossando a ideia anterior, revela esta postura como um esforço da mente para refrear os juízos relativos à existência no espaço e tempo, para colocar a nossa crença “entre parênteses”, suspendendo-a temporariamente, numa epoché particular. O autor pergunta e responde: “o que sobra do mundo após o processo de colocação entre parênteses?” Sobra a completude concreta do fluxo da nossa experiência com nossas cogitações (percepções, reflexões), que são intencionais, e seus objetos intencionados correlatos persistem mesmo com os parênteses. Entretanto, não devem ser