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Capítulo 1 – O referencial teórico: paradigma centrado na sustentabilidade, ecologia

1.3. O Enfoque Territorial

1.3.1. Território e Territorialidade

O conceito de território transcende a abordagem puramente física ao contemplar também a dimensão social, histórica, política e cultural. Muito além de um lugar geograficamente localizado, o território deve ser considerado enquanto construção sociocultural, uma vez que aí estão inseridos atores que se relacionam de maneira coletiva. (Brasil, 2005). Espaço e território não são termos equivalentes, conforme ressalta Raffestin (2009), sendo o último, resultado do primeiro modificado por um agente humano.

Para a construção do território, o “ator projeta no espaço um trabalho, isto é, energia e informação, adaptando as condições dadas às necessidades de uma comunidade ou sociedade” (RAFFESTIN, 2009, p. 26). E tal produção do território, “por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder” (RAFFESTIN, 1993, p. 129). Um ator qualquer (o Estado, o indivíduo, empresas, grupos, entre outros) inserido dentro do espaço, encara-o como

39 “campo de possibilidades”, podendo decidir fazer articulações diversas, construindo uma rede, ou uma tessitura de relações.

Ao interagir com outros atores – tenham eles objetivos semelhantes ou não -, estabelece-se desde logo, uma relação de poder. Tais interações – políticas, econômicas, sociais e culturais – “conduz a um sistema de malhas, de nós e redes que se imprimem no espaço e que constituem, de algum modo, o território” (RAFFESTIN, 1993, p. 135). Em outros termos, a ação e interação humana no espaço são os elementos fundadores do território, o que permite interpretá-lo como construção humana e social.

Em graus diversos, em momentos diferentes, e em lugares variados, somos todos atores sintagmáticos que produzem “territórios”. Essa produção de território se inscreve perfeitamente no campo do poder de nossa problemática relacional. Todos nós combinamos energia e informação, que estruturamos com códigos em função de certos objetivos. Todos nós elaboramos estratégias de produção, que se chocam com outras estratégias em diversas relações de poder (RAFFESTIN, 1993, p. 137).

O território pode ser entendido também a partir dos nós, redes e tessituras formadas no espaço a partir de relações entre atores. Tais categorias, exteriorizadas por um grupo, são universais e, portanto, presentes em todos os tipos de sociedades, ainda que se apresentem de formas distintas. “As malhas não são homogêneas nem uniformes. Acolhem, além da população, evidentemente, outros elementos que revelam a organização territorial” (RAFFESTIN, 1993, p. 140). Revelam um aspecto importante das relações de poder, uma vez que permitem assegurar o controle sobre o que está disposto no território, impondo ordens e levando à noção de limites. “Esses sistemas [de tessituras] constituem o invólucro no qual se originam as relações de poder” (RAFFESTIN, 1993, p. 135).

A partir desse entendimento, é possível admitir que várias tessituras se sobrepõem umas às outras em um território – umas que denotam relações mais estáveis, outras mais dinâmicas – o que torna difícil, por exemplo, a percepção dos limites entre econômico (caracterizado por tessituras mais dinâmicas e fluidas) e político-administrativo (tessituras mais estáveis e fixas); “as regiões administrativas quase nunca coincidem com as regiões econômicas” (RAFFESTIN, 1993, p. 139).

Além de ser resultado da ação humana no espaço, o território também é produto de

relações temporais e, portanto, históricas. Tempo, Espaço, Homem e Sociedade são

elementos que se relacionam de maneira íntima, levando à construção da territorialidade. Em outros termos, a territorialidade pode ser definida como “um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema” (RAFFESTIN, 1993, p. 144).

40 Saquet (2011) colabora no esforço de entender o que é a territorialidade em Raffestin, demonstrando que o território é resultado das relações entre sociedade e natureza, construída historicamente. Tais relações entre os indivíduos e entre estes e o ambiente externo, no tempo, são entendidas como territorialidades – idiossincraticamente complexas e fluidas. A passagem abaixo é ainda mais objetiva:

[As territorialidades] São as relações que os homens têm entre si (alteridade e exterioridade) e com o ambiente (urbano e rural), com a ajuda de mediadores (também materiais e imateriais), especialmente pelo trabalho (manual e intelectual), visando à conquista da autonomia. A territorialidade, assim, resulta das ações dos atores sociais, individual e/ou coletivamente(SAQUET, 2011, p. 85).

Saquet (2011) demonstra que a territorialidade (entendida enquanto relação bio-social e multilateral), constrói redes e nós, qualificando o espaço como território. Assim, o território também pode ser entendido a partir de redes de indivíduos organizados: o tecido construído a partir das redes configura a forma como cada sociedade se relaciona com o espaço ao longo do tempo. As redes relacionais são elementos centrais para a construção do território, uma vez que “são compreendidas através da complementaridade existente entre a circulação e a comunicação, possibilitando fluxos materiais e imateriais” (SAQUET, 2011, p. 44).

O Quadro 8 demonstra de forma sucinta como o território e a territorialidade são interpretados por Claude Raffestin, bem como suas referências e sua abordagem geral.

Quadro 8 - Síntese da concepção de território de Claude Raffestin.

Principais Referências Pierre Monbeig, Luis Prieto, Michel Foucault, Henri Lefèbvre, Filles Deleuze, Félix Guattari, entre outros.

Compreensão de território

• como fronteiras e frentes de ocupação/povoamento: economia e geopolítica • espaço modificado pelo trabalho (construído);

• resultado das relações de poder multidimensionais;

• contém signos da vida quotidiana; redes de circulação e comunicação; • produto e condição do processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR);

• produto histórico, relacional e material.

Territorialidade

• significa relações de poder: alteridade e exterioridade;

• relações bio-sociais e múltiplas (econômicas, políticas e culturais); • corresponde ao vivido espaço-temporalmente;

• significa organização e mobilização política com vistas à conquista de autonomia.

Abordagem

• híbrida-multidimensional; • relacional, histórica; • crítica não marxista;

• destaque para as redes, tessituras, nós e relações de poder-territorialidades; • (i)material envolvendo território e paisagem

41 Também inspirado pela obra de Claude Raffestin - e de outros, como Robert Sack e Henri Lefébvre -, Haesbaert (2006) faz um bem acabado esforço de conceituação para o território. Admitindo o caráter polissêmico do termo, chama a atenção para elementos como

história, cultura, conflito e poder como constituintes da territorialidade. O autor observa que

o território pode ser vislumbrado de um prisma dual - contempla uma dimensão simbólica e cultural, condicionada, por sua vez, pelas relações entre os grupos sociais inseridos no espaço onde vivem, dando significância ao mesmo; e uma dimensão concreta, de caráter político- econômico, que está relacionado à apropriação do espaço como elemento de poder (HAESBAERT, 2006, p. 94). Explicitando posição semelhante à de Brandão (2007), ao invocar especificamente a obra de Robert Sack, Haesbaert (2006) denota que o território é elemento de mediação de relações de poder. Nesse sentido, a territorialidade humana seria melhor apreendida como “uma estratégia espacial para atingir, influenciar, ou controlar recursos e pessoas, pelo controle de uma área” (SACK apud HAESBAERT, 2006, p.86), abarcando aí as formas de exploração e organização do – e no – espaço.

Quatro noções de território estão em Haesbaert (2006), o que ajuda a desvelar a polissemia do termo. O Quadro 9 resume as concepções tratadas pelo autor.

42 Quadro 9 - Concepções de território segundo tipologia elaborada por Haesbaert.

Concepção Aspectos Gerais

Política

Interpretação materialista; ciências sociais e políticas; Destaca aspectos jurídico-políticos e estatais;

Território como espaço de efetivação do controle e das relações de dominação; Território como fundamento material do Estado;

Espaço ótimo para a reprodução material de determinado grupo social; Autores: Friedrich Ratzel; Jean Gottman.

Naturalista

Interpretação materialista; ciências naturais; etologia; Destaca relação sociedade-natureza;

Territorialidade como instinto humano; Analogias com territorialidades animais;

Privilégio da dimensão natural e do comportamento "natural" do homem em relação ao seu ambiente físico;

Autores: T. Malmberg; Konrad Lorenz.

Econômica

Interpretação materialista; marxismo;

Enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas; Território como fonte de recursos;

Território incorporado na luta de classes e na relação capital-trabalho; Território como espaço de reprodução material;

O uso econômico define o território; Autores: Maurice Godelier; Milton Santos.

Cultural

Interpretação idealista; antropologia; Destaca as dimensões simbólicas e subjetivas;

Território como produto da apropriação simbólica da um grupo em relação ao seu espaço;

Pertencimento ao território implica identidade cultural;

Aspectos éticos, espirituais, simbólicos e afetivos, além dos materiais. Fonte: Elaboração própria a partir de Haesbaert (2006).

A partir das abordagens acima, Haesbaert atenta para a necessidade de uma leitura do território como elemento híbrido e multideterminado, que combine com uma “perspectiva integradora entre as diferentes dimensões sociais (e da sociedade com a própria natureza)” (HAESBAERT, 2006, p. 74). Em complemento,

Fica evidente neste ponto a necessidade de uma visão de território a partir da concepção de espaço como um híbrido – híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e “idealidade”, numa complexa interação tempo-espaço (...). Tendo como noção esta noção “híbrida” (e, portanto, múltipla, nunca indiferenciada) de espaço geográfico, o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural (HAESBAERT, 2006, p. 79).

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