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4. EU NÃO NASCI PARA PERDER: a publicidade é um cadáver LGBTQ+ que não nos

4.2 Toda forma de amor: a guerra declarada contra o comercial de O Boticário

No ano de 2015, no curto espaço de duas semanas a imagem da marca O Boticário provocou diversos reveses na cabeça de milhões de consumidores. No dia 24 de maio de 2015,

a empresa lançou o filme publicitário para o dia dos Namorados. Até o dia 07 de junho já havia sido computada na rede de stream youtube mais de 3,2 milhões de visualizações no vídeo.61

Isso representa um valor oito vezes mais que os filmes lançados na semana anterior. Neste período de duas semanas, segundo o SGC Conteúdos (2015), o filme recebeu 372 mil avaliações positivas, e 188 mil negativas. (CRESPO, 2015). Trata-se de um número realmente expressivo se somarmos todos os vídeos da empresa na rede.

Algumas figuras públicas, como o pastor evangélico Silas Malafaia se pronunciaram sobre o assunto. Malafaia gravou e publicou um vídeo em seu canal do youtube62, no qual convidava a sociedade para boicotar a marca. O vídeo tem muitas visualizações, entretanto, o número de “não gostei” superou os de apoio à postura do pastor.

Em contrapartida, o deputado federal Jean Willys, homossexual autodeclarado, comentou que apesar de não ter um namorado, compraria os produtos da marca apenas como forma simbólica de apoio à campanha.

Em 2018, três anos após a publicação, os números relacionados ao comercial não mudaram muito, são 3.867.265 visualizações, 385 mil avaliações positivas, contra 194 mil negativas. O que vem sofrendo uma constante mudança, ainda que de forma lenta e gradual, é a forma como a sociedade vem se configurando e respondendo as lutas, pautas e agendas dos LGBTs. Isso fica evidente inclusive, pela quantidade de filmes publicitários que foram veiculados após esta ruptura iniciada pela Almapp e O Boticário.63

O Boticário não é um anunciante recente, desta forma podemos dizer que não é ingênua a veiculação deste comercial em uma data que é expressivamente lucrativa para as lojas da empresa. Podemos afirmar também que houve ciência por parte da agência sobre a repercussão, o ônus e o bônus que eram esperados a partir desta campanha.

Quando uma empresa assume uma postura de certa forma pioneira, e principalmente quando toca profunda e sutilmente num dos maiores tabus da nossa sociedade, deve estar preparada para isso. Inclusive, levando em consideração que apesar de ser veiculado no horário nobre da televisão aberta, supomos que a agência responsável pela campanha, considerou de que a maior repercussão se daria nas redes sociais digitais, onde o público tem o poder de manifestar-se; o que de fato ocorreu.

61 Dados levantados pela SGC Conteúdos em Junho de 2015. Disponível para consulta em

www.sgcconteudo.com.br Acesso em 20 ago 2018

62Disponível em: http://economia.ig.com.br/empresas/2015-06-02/em-video-malafaia-propoe-boicote-ao-

boticario-va-vender-perfume-pra-gay.html acesso em 19 ago 2018.

63 Disponível em: http://www.universoaa.com.br/opiniao/sem-boicote-os-sete-melhores-comerciais-gays-

Na televisão, a comunicação é unilateral, a empresa fala e o espectador apenas exerce o papel de receptor da mensagem. Isso associado ao fato de que a audiência é medida por uma certa quantidade de televisores ligados em determinado canal.

Diferentemente, asredes sociais vêm cada vez mais demarcando espaço na vida de cada brasileiro, sendo inclusive, apropriada por programas televisivos através de hastags64 e outros tipos de interação, o que nos dá margem para levantar a hipótese de que a marca já contava com este tipo de reverberação relacionada a este comercial.

Nas redes sociais há diálogo, há a voz de milhares de pessoas de diversos locais do país ou do mundo falando sobre o mesmo assunto, seja para criticá-lo ou para exercer apoio, ou ainda para manter-se em silêncio. Neste caso em específico, as redes sociais foram fundamentais para reduzir as críticas e aumentar o apoio da população ao comercial. Isso, levando em consideração apenas aspectos subjetivos do comportamento popular em relação a campanha, sem considerar o fator econômico.

Dito isto, gostaríamos de abordar aspectos mais técnicos do comercial, para elucidar a proposta da marca. A agência responsável pela campanha de 2015, que divulga a linha de sete fragrâncias “multigênero” de Egeo e mostra casais de diferentes orientações sexuais comemorando o Dia dos Namorados, é a AlmapBBDO. A empresa está com a agência desde 2004.65

A campanha intitulada “Um dia dos namorados para todas as formas de amor”, rendeu à Almap dois prêmios, o Grand Effie e o Ouro em Comércio e Varejo. O filme teve grande repercussão nas redes sociais.66 De acordo com o veículo Meio&Mensagem, para o júri do Effie Brasil, a campanha mereceu o prêmio principal por unanimidade devido à coragem em tocar em um tema delicado e não voltar atrás após a polêmica gerada nas redes sociais.67

Estes prêmios podem ser considerados um marco para a publicidade nacional, pois são uma constatação de que é possível fazer publicidade sem o emprego homogêneo de estereótipos negativos que levam à exclusão social.

64 Tags são palavras-chave (relevantes) ou termos associados a uma informação, tópico ou discussão que se deseja indexar de forma explícita no aplicativo Twitter, e também adicionado ao Facebook, Google+ e/ou Instagram. Hashtags são compostas pela palavra-chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#).

65 Disponível em: http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2015/10/propaganda-da-boticario-

com-casais-gays-vence-premio-publicitario.html Acesso em 20 ago de 2018.

66 Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/06/01/o-boticario-e-criticado-nas-redes- sociais-apos-comercial-com-casais-gays.htm acesso em 20 ago de 2018.

67 Disponível em: http://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/2015/10/19/almap-e-o-botic-rio- vencem-grand-effie.html acesso em 20 ago 2018.

Naturalmente, entendemos que há um risco por parte dos anunciantes, bem como das agências que fazem a gestão destas contas, no que diz respeito à consideração e à incorporação de pautas consensualmente identificadas como moralmente polêmicas, em determinadas conjunturas sociais.

Contudo, o filme publicitário de O Boticário, nos mostra que há quem esteja disposto a assumir o risco de enfrentar resistências morais, mesmo provenientes de públicos para os quais a mensagem não foi diretamente endereçada, em direção a uma pauta pró-diversidade.

Ainda no que diz respeito aos aspectos subjetivos, podemos afirmar que a reação negativa da sociedade se deu de forma veemente, devido ao fato do comercial retratar casais homoafetivos em posição de igualdade com casais heterossexuais, executando exatamente as mesmas ações: receber o/a parceiro/a para comemorar a data, e cumprimentá-lo/a com um abraço no momento da recepção, conforme imagens extraídas do comercial, que veremos a seguir:

Imagem 4 – Comercial O Boticário para o dia dos namorados 2015 – 0’15”

Uma mulher toca um interfone na entrada de um prédio, em seguida um rapaz, que é dos personagens do filme, atende a um interfone em sua casa. A moça entra, e o rapaz abre a porta. Surpresa! Quando o rapaz abre a porta damos de cara com seu parceiro aguardando no hall de entrada, os dois sorriem, se abraçam em um gesto de afeto.

Imagem 5 – Comercial O Boticário para o dia dos namorados 2015 – 0’17”

Casal heterossexual se encontra em restaurante para comemorar o dia dos namorados. A mulher carrega um presente de O Boticário em mãos. O rapaz, que vimos no início do vídeo entrando em uma loja de O Boticário e colocando um perfume Egeo no balcão, também irá presenteá-la com um produto da marca. Ao se aproximarem, os dois se abraçam em um gesto de afeto.

Imagem 6 – Comercial O Boticário para o dia dos namorados 2015 – 0’20”

A moça que havia tocado o interfone na cena anterior é recebida por sua parceira. As duas também sorriem, e se abraçam em um gesto de afeto

Imagem 7 – Comercial O Boticário para o dia dos namorados 2015 – 0’21”

O quarto e último casal se encontra, em um local que parece ser um parque, se abraçam em um gesto de afeto e sorriem.

Após as cenas descritas nas imagens acima, o comercial segue mostrando a troca de presente entre cada casal, com uma voz que narra o mote da campanha “No dia dos Namorados entregue-se às 7 tentações de Egeo”. Esse mote diz respeito às sete fragrâncias lançadas pela marca em comemoração ao dia dos namorados, e que foi, nas mídias externas (mobiliário urbano, outdoor, cartazes, etc.), ilustrada com peças como a imagem abaixo.

Imagem 8 – Peça da campanha “Entregue-se a 7 tentações de Egeo” de O Boticário para o dia dos namorados 2015.

A peça ilustra um casal heterossexual em um abraço sensual. A imagem é sobreposta por 7 recortes que ilustram cada uma das fragrâncias da campanha.

É, no mínimo, curioso, pensar que a última imagem é a que traz maiores elementos imagéticos que poderiam ser criticados pela parcela conservadora da sociedade. Ante os tabus ligados a questões que envolvem uma sexualidade mais explícita por determinados tipos de marca, o consumidor não demonstrou descontentamento de forma expressiva com a peça publicitária de O Boticário.

O que é ainda mais curioso, é que o comercial trouxe dois tipos de casais homoafetivos, gays e lésbicas, mas apenas o casal gay foi alvo da maior parte dos ataques dos conservadores. Neste contexto, é possível ainda de forma mais profunda, compreender como se normatizam e se regulam os sujeitos com base no patriarcado, e no androcentrismo.

Os motivos pelos quais o casal lésbico não sofreu ataques de forma tão veemente nas mãos daqueles que se dizem ligados à moral, à família em uma constituição tradicional (composta por homem, mulher e filhos) e aos bons costumes, fica ainda mais evidente, já que faz parte da construção do imaginário coletivo masculino fantasias sexuais que envolvem duas mulheres.

Ao tratar dois casais homoafetivos e dois casais heterossexuais como a mesma carga de normalidade, importância e afetividade, O Boticário toca em um tabu no seio da sociedade brasileira. Apesar da homossexualidade já ter sido há quase duas décadas retirada da lista de patologias sexuais, a sociedade em geral trata ainda este tema com ojeriza, relegando-o a um local de anormalidade patológica.

As razões que permeiam os bastidores do ódio e da abjeção popular destinado ao comercial de O Boticário não consistem na aparição de gays em horário nobre. Isso afinal, não é mais nenhuma novidade. A originalidade está em retratar os quatro casais em posição de similitude.

A guerra declarada ao comercial lança luz sobre a intolerância, preconceito e abjeção que sempre permearam a estrutura social brasileira, mas que ao longo dos anos, transcorreu disfarçada de moralidade e preocupação com a saúde pública, devido a todas as questões que envolveram e ainda envolvem a epidemia de AIDS, desde os idos da década de 1980.