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TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM NIKETCHE, DE PAULINA CHIZIANE, E DESOBEDIÊNCIA, DE LICÍNIO AZEVEDO

Jéssica Fabrícia da Silva (UNICAMP) jefabricia@hotmail.com

Introdução

Pensar de forma ponderada a questão da dicotomia tradição e modernidade nas obras Niketche, uma história de poligamia, da moçambicana Paulina Chiziane, e Desobediência, do brasileiro radicado moçambicano Licínio Azedo, um livro e um filme, respectivamente, é possível mobilizando-se conceitos como a condição do subalterno na sociedade moçambicana e, mais especificamente, como essa condição é modificada pelo pós-colonialismo, que se encontra imbricado a primeira concepção. Desse modo, buscar-se-á, nesse artigo, a partir da lenda da princesa Vuyazi presente no romance de Paulina Chiziane e o filme Desobediência, do cineasta Azevedo, demonstrar como a mulher moçambicana esforça-se para (sobre)viver ao espaço repressor que mobiliza em seu alicerce questões dicotômicas já citadas.

Subalterno & pós-colonialismo

Em Pode o Subalterno Falar? Gayatri Chakavorty Spivak, crítica literária e teórica indiana, discorre, como o título de seu artigo sugere, a (in)capacidade de fala do subalterno. Vale ressaltar que a reflexão proposta por ela tem origem por meio da indagação sobre a função do intelectual que intenta a representação do subalterno e a capacidade de agir deste.

Para Spivak, os subalternos são aqueles que abarcam “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (p. olhar). O que demonstra a agência dos subalternos, então, é a possibilidade de “fala”, marca de autossuficiência à sociedade que os relegam.

Não se pode omitir o propósito mor a qual se propõe o estudo da teórica indiana: Spivak questiona o que Michel Foucault e Gilles Deleuze compreendem por subalterno, que,

na visão desses autores, segundo a teórica, seria composta por uma massa de indivíduos que “[...] sabem muito mais do que [o intelectual] e certamente o dizem muito bem [...]” (FOUCAULT apud SPIVAK, 2014, p.36). Desse modo, os autores entram no ponto crucial do texto: não há mais a premência do intelectual para agenciar a fala do sujeito subalterno, pois esse está capacitado a falar por si. Entretanto, “[...] devemos agora confrontar a seguinte questão: no outro lado da divisão internacional do trabalho do capital socializado, dentro e fora do circuito da violência epistêmica da lei e educação imperialistas, complementando um texto econômico anterior, pode o subalterno falar?” (SPIVAK, 2014, p.70, grifos em itálico do autor, grifos em negrito nosso). É importante fazer essa breve retomada do texto de Gayatri Spivak, pois a estudiosa afirma categoricamente que o subalterno não pode falar: “[...] o subalterno como sujeito feminino não pode ser ouvido ou lido” (2014, p.163). Desse modo, ela expõe que a mulher enquanto intelectual carece de não cair na falácia de permitir que o subalterno fale por ele mesmo: “o subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à ‘mulher’ como um item respeitoso nas listas de prioridades globais. A representação não definhou. A mulher intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio” (SPIVAK, 2014, p.164).

Em outro ensaio em que discute sobre a questão da alteridade – Quem reinvidica alteridade? –, Spivak evidencia que “no contexto pós-colonial global atual, nosso modelo deve ser o de uma crítica da cultura política, do culturalismo político, cujo veículo é a

escritura de história legíveis, seja do discurso dominante, seja das histórias alternativas”

(1994, p.189, grifos nossos). Fazendo um paralelo entre a importância da escrita para a construção de narrativas outras e o papel da mulher intelectual, pode-se conjecturar que a fala do subalterno, hodiernamente, dá-se por meio da escritura – seja essa no texto narrativo seja essa no texto fílmico.

No que tange a pós-colonialidade, Inocência Mata explicita que

[...] não tendo o termo a ver, necessariamente, com a linearidade do tempo histórico, o pós-colonial pode ser pensado no sentido de uma temporalidade que agencia a sua existência após um processo de descolonização, ou da independência política, transformando tanto as entidades-sujeito como aquelas que sempre foram vistas como objeto, [...] o que não quer dizer, a priori, tempo de liberdade: na verdade, muitos romances escritos depois da independência, sobre esse tempo, são exemplo de como o pós-independência não é sinônimo de liberdade e de liberdade de amarras de outros tipos (que não aquelas coloniais) (2013, p.19, grifos em itálico da autora, grifos em negrito nosso).

Ao se referir a não-liberdade de outros tipos, Mata abrange a reflexão para as narrativas não ditas durante o processo de independência: as falas de grupos minoritários,

como mulheres e homossexuais, situam-se ainda mais na periferia dessas novas nações. Ela ainda afirma que “[...] torna-se, por isso, necessário iluminar outros campos de marcação de relações de poder (classe e ideologia política, raça e etnia, gênero e origem cultural), protagonizadas pelas elites locais, e suscitadas, ou não, por qualquer tipo de diferença que potencie hierarquizações [...]” (MATA, 2013, p.18).

Niketche, uma história de poligamia e Desobediência convergem, como já dito, nesses dois pontos: retratam a vivência de personagens femininas e são obras pós-coloniais.

Niketche, uma história de poligamia

Percebe-se em Paulina Chiziane uma conscientização da importância da escrita enquanto instrumento de luta e reinvindicação, de possibilidade de fala do sujeito subalterno, pois a escritora reafirma em suas entrevistas e ensaios o quão significativo foi poder lançar seu primeiro livro, Balada de Amor ao Vento (1990):

Reencontrei na escrita o preenchimento do vazio e incompreensão que se erguia à minha volta. A condição social da mulher inspirou-me e tornou-se meu tema. Coloquei no papel a aspirações da mulher no campo afectivo para que o mundo as veja, as conheça e reflita sobre elas. Se as próprias mulheres não gritam quando algo lhes dá amargura da forma como pensam e sentem, ninguém o fará da forma como elas desejam. Foi assim que surgiu a minha primeira obra, Balada de amor ao Vento, tornando-me deste modo uma das poucas escritoras do meu país. (CHIZIANE, 2013, p.202-203)

Em Niketche, uma história de poligamia, percebe-se que Paulina chega ao ápice de seu fazer literário, consagrando-se como cânone em uma tradição narrativa de crítica a poligamia (LEITE, 2012).

A história é narrada por uma personagem-protagonista, ou seja, em primeira pessoa, Rami, que não estava satisfeita com o seu casamento com o comandante de polícia Tony. Criada conforme os princípios da religião católica, Rami honrava a posição de esposa a qual estava imbuída: era uma mulher submissa, que relegava os seus desejos. Todavia, mesmo renunciando as suas ânsias em pró do marido, Tony não se incomodava em descumprir os votos matrimoniais, traindo Rami e sempre se ausentando do lar. Exausta em ser preterida, a narradora-protagonista move-se à casa de Julieta, a quem as vizinhas dizia ser amante de Tony, e, chegando à moradia, uma discussão principia-se. Rami apanha e é humilhada por Julieta; entretanto, surge entre elas um certo respeito-mútuo, pois Ju confessa que também está sendo traída por Tony e não sabe onde ele se encontra. Assim, de casa em casa, e de

discussão em discussão, sendo humilhada, Rami descobre que seu marido possui mais três amantes: Luísa, Saly e Mauá Saulé.

Em um primeiro momento, a tentativa de Rami foi a de buscar nas tradições antigas, como os ritos de passagem, meios de reconquistar seu marido e afastar as rivais – que era o modo como as outras mulheres eram vistas pela narradora. Contudo, Rami não tem sucesso em sua empreitada e principia a ponderar sobre como a poligamia fixou-se em Moçambique:

Poligamia é o destino de tantas mulheres neste mundo desde os tempos sem memória. Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este povo deixou as suas raízes e apoligamou-se por influência da religião. Islamizou- se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e converteram-se de imediato. Porque poligamia é poder, porque é bom ser patriarca e dominar. Conheço um povo com tradição poligâmica: o meu, do sul do meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos, disse não à poligamia. Cristianizou-se. Jurou deixar os costumes bárbaros de casar com muitas mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. Tinha o poder e renunciou. A prática mostrou que com uma só esposa não se faz um grande patriarca. Por isso os homens deste povo hoje reclamam o estatuto perdido e querem regressar às raízes. Praticam uma poligamia tipo ilegal, informal sem cumprir os devidos mandamentos. Um dia dizem não aos costumes, sim ao cristianismo e à lei. No momento seguinte, dizem não onde disseram sim, ou sim onde disseram não. Contradizem-se, mas é fácil de entender A poligamia dá privilégios. Ter mordomia é coisa boa: uma mulher para cozinhar, outra para lavar os pés, uma para passear, outra para passar a noite. Ter reprodutoras de mão-de-obra, para as pastagens e gado, para os campos de cereais, para tudo, sem o menor esforço, pelos simples facto de ter nascido homem. (CHIZIANE, 2004, p.92)

Rami, então, decide que o correto seria juntar todas as esposas e consumar a poligamia como de fato ela é: com os direitos e deveres ao esposo e às mulheres, liderando e aconselhando as esposas no que elas precisassem. Tony, em contrapartida, desespera-se pois não era isso que desejava ao procurar o adultério.

Em determinado momento da obra, as mulheres descobrem que Tony possui uma nova amante – a Eva – e convocam um tribunal para decidir se concordam ou não com esse relacionamento e o que deve ser feito com o marido adultero. Elas, então, decidem que a melhor maneira de se vingar é dominando-o na cama em um ritual dançando niketche, uma dançando sensual e sexual das regiões da Zambézia e Nampula.

É a partir daqui que a lenda da princesa Vuyazi adentra na trama, pois uma das tias de Tony decide conta-lhes como forma de repreensão após o episódio da dança, já que esse foi tido como falta de respeito e insubmissão:

— Era uma vez uma princesa. Nasceu da nobreza mas tinha o coração de pobreza. Às mulheres sempre se impôs a obrigação de obedecer aos homens. É a natureza. Esta princesa desobedecia ao pai e ao marido e só fazia o que queria. Quando o marido repreendia ela respondia. Quando lhe espancava, retribuía. Quando cozinhava galinha, comia moelas e comia coxas, servia ao marido o que lhe apetecia. Quando a primeira filha fez um ano, o marido disse: vamos desmamar a menina, e fazer outro filho. Ela disse que não. Queria que a filha mamasse dois anos como os rapazes, para que crescesse forte como ela. Recusava-se a servi-lo de joelhos e a aparar-lhe os pentelhos. O marido, cansado da insubmissão, apelou à justiça do rei, pai dela. O rei, magoado, ordenou ao dragão para lhe dar um castigo. Num dia de trovão, o dragão levou-a para o céu e a estampou na lua, para dar um exemplo de castigo ao mundo inteiro. Quando a lua cresce e incha, há uma mulher que se vê no meio da lua, de trouxa à cabeça e bebé nas costas. É Vuyazi, a princesa insubmissa estampada na lua. É a Vuyazi, estátua de sal, petrificada no alto dos céus, num inferno de gelo. É por isso que as mulheres do mundo inteiro, uma vez por mês, apodrecem o corpo em chagas e ficam impuras, choram lágrimas de sangue, castigadas pela insubmissão de Vuyazi. (CHIZIANE, 2004, p.157)

Sabendo que se trata de uma obra literária, Niketche e uma lenda presente dentro dessa narrativa; e, assim, compreendo, a partir de Aristóteles, a capacidade de verossimilhança do fato criador15, pode-se depreender que a insubmissão da mulher dentro da sociedade moçambicana foi sempre marcada como algo ruim e que precisaria ser punido. No decorrer de Niketche, percebe-se mais nitidamente como a personagem de Rami sofre com as consequências de uma modernidade que se favorece de uma tradição. Todavia, nos romances de Chiziane não há uma tentativa de deslegitimar as tradições e leis moçambicanas, mas discutir como elas, da forma como estão estruturadas, contribuem para a manutenção da subalternidade feminina.

De certa maneira, esse mesmo processo também é observado em Desobediência, de Licínio Azevedo.

Desobediência

Licínio Azevedo é considerado um dos maiores cineastas moçambicanos. Trabalhou, nos anos de 1970 pós-independência em Moçambique, com nomes importantes do cinema mundial, Ruy Guerra, Jean Rouch e Jean-Luc Godard, sendo que deste último é perceptível a influência nos filmes de Azevedo.

15 “Segue-se então que o poeta deve ser mais criador do que metrificador, uma vez que é poeta porque imita, e por imitar ações. Continua sendo poeta mesmo quando se serve de fatos reais, pois nada impede que alguns fatos, por natureza, sejam verossímeis e possíveis e, por esse motivo, seja o poeta o seu criador”

Sobre o cinema africano, Fernando Arenas explicita que é “[...] fundamentalmente uma atividade e uma experiência pós-colonial, pois refletem as intensas mudanças culturais e sociais que vêm ocorrendo nas nações africanas como consequência de reviravoltas políticas e econômicas que afligem constantemente o continente” (2007, p.143).

Assim, Desobediência é um filme do gênero docudrama, “[...] híbrido resultante da fusão entre documentário e drama, que busca reconstruir ou retratar fatos históricos” (RICKLI, 2011, p.02, grifos do autor). O filme conta, a partir de um episódio autêntico e atuado pelos seus protagonistas no papel de atores, a história de uma camponesa moçambicana, Rosa, acusada pela família do falecido marido, Tomás, de ser responsável pelo suicídio dele, já que ela o contestava, sendo vista como uma esposa desobediente. A ideia de realizar a película surgiu com Licínio lendo em um jornal a notícia de que Rosa, apesar de ter sido absolvida por um juiz – que pode ser visto como representação da modernidade – e por um curandeiro – representação da tradição, ainda era perseguida e acusada pelos familiares de Tomás.

Durante as filmagens, o cineasta percebeu a necessidade de uma segunda câmera que gravasse o making of, pois o conflito motivador do filme ampliou-se e gerava comportamentos dos quais ele não sabia lidar, como a questão do curandeiro, pois a família da Tomás não aceitava que o curandeiro fosse o mesmo que eles tinham ido da primeira vez, que explanou o motivo do suicídio de Tomás: ele tinha se deitado com a mulher de seu irmão e isso o perturbava muito. Não aguentando a pressão, Tomás começou a beber mais e tornar-se agressivo, o que gerava as contestações de Rosa.

Nota-se, então, que apesar de se tratar de uma realidade muito mais próxima da ficcional criada por Chiziane, pois a representação é (re)vivida pelos próprios agentes, a perspectiva do cineasta ainda está presente ao fazer uso dessa segunda câmera, possibilitando para o telespectador uma catarse, que capta toda a tensão enfrentada por Rosa, tensão dupla, já que ela recria o que sentiu e o que sente enquanto experiência nova, ainda colocada em um local de subalternidade.

Conclusão

O intuito desse artigo era explicitar que a tradição e a modernidade em Moçambique se configuram de maneira a corroborarem para a manutenção da subalternidade da mulher, não lhe dando direito a fala, seja por meio da escrita de autoria feminina, seja por um cineasta.

contra um sistema que não se obteve melhoras significativas para as mulheres após a independência. Desse modo, deve-se refletir que “[...] pela escrita – que compõe esse ‘documentário literário’ – pode-se chegar a essa ‘história’ de vozes silenciadas, pois é também a escrita a representação do indizível” (MATA, 2007, p.423).

Referências bibliográficas

ARENAS, Fernando. “Retrato de Moçambique pós-guerra Civil: a filmografia de Licínio de Azevedo”. In: BAMBA, Mahomed; MELEIRO, Alessandra (orgs.). Filmes da África e da diáspora: objetos de discursos. Salvador: EDUFBA, 2012, p.72-98.

ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Col. Os pensadores).

CHIZIANE, Paulina. [Testemunho] Eu, mulher... Por uma nova visão do mundo. Abril – NEPA/UFF, [S.l.], v.5, n.10, p.199-205, apr.2013. Disponível em: <http://www.revistaabril.uff.br/index.php/revistaabril/article/view/114>. Acesso em: 13 out. 2017.

_____. Niketche: uma história de poligamia. Lisboa: Caminho, 2004.

LEITE, A. M. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. 2ª ed. Lisboa: Colibri, 2013. MATA, Inocência. A literatura africana e a crítica pós-colonial – reconversões. Manaus: UEA Edições, 2013.

_____. “Mulheres de África no espaço da escrita: a inscrição da mulher na sua diferença”. IN: MATA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante (orgs.). A mulher em África: vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Edições Colibri, 2007.

RICKLI, Andressa Deflon. Docudrama: quando o real se transforma em ficcional. VIII Encontro Nacional de História da Mídia. 2011, Guarapuava. Anais...

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

_____. “Quem reinvidica a alteridade?” Trad. Patricia Silveira de Farias. IN: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.