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Vou tentar falar da minha trajetória, mas acho que vou falar bastante... São 40 anos de uma trajetória que não caminhou em linha reta. Se fosse em linha reta, talvez fosse mais fácil dizer, mas a minha trajetória não tem nada a ver com linha reta, embora tenha uma linha mestra, que acho que deu sentido a todos os diversos movimentos que fiz.

Bom, eu chego na terapia ocupacional por acaso, por volta de 1974-75. Eu jamais tinha ouvido falar em “terapia ocupacional”, nem sabia que existia... Mas naquela crise de buscar uma profissão, alguém me diz da terapia ocupacional e por algum motivo isso me chama a atenção. Então, eu fiz o primeiro movimento de ir até a Faculdade de Medicina (da USP), onde existia um “departamentozinho” que era o curso de Terapia Ocupacional, conversar com a Marici. Conversando com Marici, ela me falou uma coisa, que eu gosto de relembrar sempre, que talvez tenham sido as palavras mágicas que tiveram importância na minha vida profissional de forma muito significativa. Ela me disse: “a terapia ocupacional olha para o homem como um todo e por isso a gente estuda várias disciplinas, ciências médicas e biológicas, ciências humanas, psicologia, artes...”. E isso me encantou! Porque na verdade eu tinha uma grande crise para escolher uma profissão, porque eu sempre gostei de estudar diferentes coisas, eu estudava música, e para mim a escolha profissional se configurava mais como “o que é que eu vou deixar de estudar e o que é que eu vou querer estudar”, porque qualquer escolha significava uma disciplina fechada em detrimento de todas as outras. Eu vivi esse conflito, e quando a Marici disse aquelas palavras, elas foram mágicas: “quer dizer que então eu posso estudar tudo isso e arte também? Eu posso estudar psicologia, filosofia... e não ser nem psicóloga nem filósofa e nem artista? Posso ser uma outra coisa ainda?”. Ela disse “pode”! E isso me seduziu! Depois eu fui entender que, na verdade, eu já tinha feito um casamento com a interdisciplinaridade sem saber, e mais tarde isso se configurou como a trajetória que eu chamo de linha mestra de todo esse processo: a interdisciplinaridade, que me levou à complexidade.

Entro, então, em primeira opção, na terapia ocupacional da USP junto com uma turma muito interessante (na época com 25 vagas e 19 formandos). Nós estudamos no período da ditadura, no período final da Ditadura Militar. Presenciamos invasões do

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exército nos porões na universidade. É dessa época o momento em que o exército incendiou o TUCA (o teatro da PUC-SP). Eu participei junto com a Eucenir Rocha do jornal do CAAVC (Centro Acadêmico Arnaldo Vieira de Carvalho), “a Muleta”, e naquela época participar de jornal com toda a censura política também era uma atividade interessante e perigosa! Acho que a maioria das pessoas dessa turma ainda está trabalhando como terapeuta ocupacional, dentro e fora da universidade, com trabalhos muito interessantes. Nos unimos em torno da necessidade de legitimar e valorizar a terapia ocupacional, com questões políticas muito claras. Tínhamos uma opção política inequívoca, a favor dos “fracos e oprimidos”... um perfil da nossa turma.

A nossa formatura foi muito interessante. Em plena ditadura, quebramos muitos protocolos e fizemos discursos que desafiaram a censura do cerimonial, pois, naquela época, toda a cerimônia e todos os discursos passavam pela censura da Secretaria da Faculdade de Medicina. Nossos homenageados foram o ascensorista do elevador e uma terapeuta ocupacional que trabalhava no Hospital do Juqueri. Um escândalo, para a época!

Saindo da faculdade, depois de uma formação nitidamente biomédica, baseada nos livros antigos de Spackman e MacDonald, textos do American Journal, traduzidos, xerocados e apostilados, eu e outras colegas fomos buscar o primeiro grupo de estudos em Terapia Ocupacional que oferecia uma formação especializada em Saúde Mental, o grupo de estudos da Jô Benetton que futuramente se transformou em CETO (Centro de Estudos de Terapia Ocupacional). Minha opção pela Saúde Mental e minha formação profissional foram muito influenciadas por esse grupo de estudos.

O início do trabalho foi em hospitais psiquiátricos, uma vez que, na época, esta era a única opção para terapia ocupacional em Saúde Mental. Trabalhei em São Bernardo do Campo, Mauá, mudei de emprego várias vezes... Desde o início me chamava a atenção a dificuldade para o trabalho em equipe multiprofissional, o que foi me levando aos caminhos do estudo da Interdisciplinaridade.

Trabalhei no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas em São Paulo, foi um período importante, trabalhei com Fernanda Nicácio, com Maria Inês Britto

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Brunello e outras pessoas. Fernanda era de uma turma posterior à nossa e sua turma também tinha um perfil de militância política bem definido.

Depois disso iniciei minha trajetória na universidade, indo para a PUC- Campinas. Não fui contratada para a Saúde Mental, mas para a área de Fundamentos da Terapia Ocupacional: Atividades e Recursos Terapêuticos, Terapia Ocupacional Geral e preparação subjetiva do aluno para qualificação da relação terapêutica nas disciplinas de Práticas Terapêuticas Supervisionadas. Este último tratava-se de um projeto inovador e polêmico com o objetivo de preparação pessoal do aluno para a relação terapêutica, com algo de psicológico, mas com um viés predominantemente ético, político intersubjetivo.

O fato de me formar numa especialidade e assumir disciplinas de Fundamentos exigiu um exercício muito difícil: encontrar o específico e o genérico na Terapia Ocupacional, ou seja, unificar as especialidades em torno de um objeto comum. Não se podia mais dizer Terapia Ocupacional em Saúde Mental é isso, Terapia Ocupacional em Reabilitação Física é aquilo, etc. Os alunos queriam saber, afinal, o que é terapia ocupacional! Um trabalho difícil para aquele momento da profissão. Era necessário dizer aos alunos, de modo claro e sintético, o que é Terapia Ocupacional, sem a distinção por áreas de atuação.

Essas buscas levaram muitos colegas à Filosofia, porque a questão epistemológica surgia como a questão do momento. Na época existia uma grande integração entre PUC, UFSCar e USP. Os professores faziam reuniões, encontros e discussões integrando várias disciplinas, principalmente na área de fundamentos. A questão de ART era a principal! Discutíamos temas, conteúdos e métodos de ensino de ART. Foi um momento muito interessante e muito produtivo que também foi se perdendo, e foi se perdendo à medida que a academia ia ficando cada vez mais forte e mais burocrática.

Quanto à Saúde Mental, continuei principalmente com trabalho de supervisão para terapeutas ocupacionais que, ao longo do tempo, foi se tornando supervisão clinico-institucional para equipes multiprofissionais de Saúde Mental e Rede de Atenção Psicossocial, fora da universidade.

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Acho que a busca pela Filosofia, Sociologia e Antropologia foi marcada pelos professores que iam fazer pós-graduação em outras áreas do conhecimento. A gente precisava de suporte para enfrentar as questões epistemológicas da terapia ocupacional: quem nós somos? Foi muito produtivo esse momento porque surgiram muitas análises filosóficas, epistemologias, tentativas de classificar a terapia ocupacional em modelos, de sistematizar e organizar o conhecimento em terapia ocupacional.

A participação da Bete Pádua, como professora de Filosofia e Metodologia do Trabalho Científico, na produção de Trabalho de Conclusão de Curso, durante vinte anos, dos alunos de Terapia Ocupacional da PUC-Campinas, foi importante para nos apontar a metodologia da Complexidade como um método contrário ao Reducionismo, que permitia tratar a Terapia Ocupacional em sua complexidade.

No meio do caminho, fiz mestrado em Educação, o que me ajudou muito no desenvolvimento de metodologias ativas de ensino, uma inovação para a época.

As Políticas de Educação do final dos anos 1990 tiveram consequências sobre as instituições acadêmicas e suas organizações de trabalho. A forte mercantilização da educação provoca um fechamento gradativo de cursos tradicionais de Terapia Ocupacional em universidades privadas e filantrópicas. Diminuem os espaços de participação coletiva e criativa na vida acadêmica. Aumentam as exigências administrativas e burocráticas, assim como o controle de produtividade.

Ao longo do tempo, nosso corpo docente foi perdendo coisas importantes para a qualidade do trabalho cotidiano: experimentávamos processos de trabalho que hoje são verdadeiras joias para os novos projetos e novos paradigmas da Saúde, que ainda estão bem longe de serem conquistados, mas que a gente vivia em um coletivo de fato. As produções de ideias, de programas de disciplina, de projeto pedagógico, a gente enfrentava em coletivo, discutia, analisava e por mais tenso que fosse produzia um currículo, um curso, um programa, uma decisão qualquer, absurdamente coletiva e, talvez, nem tivéssemos tanta dimensão disso. Produzimos conhecimento em terapia ocupacional, durante aquele período. Muitas vezes a PUC saia na vanguarda da terapia ocupacional. O projeto que o MEC (Ministério da Educação) instituiu como

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currículo mínimo da terapia ocupacional em 1990 foi inspirado no currículo que a PUC construiu. Tínhamos uma participação política importante na vida universitária.

O curso não chegou a fechar, mas ficou quatro anos sem entrada de novos alunos. Após quatro anos, a PUC-Campinas reabriu vestibulares para Terapia Ocupacional e o curso continua, como novo currículo e nova configuração. Eu retorno à PUC-Campinas depois de 5 anos. Mas tudo está diferente no mundo da Educação!

Concomitante ao trabalho na PUC-Campinas, também fui professora da USP, entre 1984 e 1985, com contrato inicial de 12 horas semanais. Com a expansão do curso, teria que assumir a dedicação exclusiva, devendo optar por uma das duas universidades: PUC-Campinas ou USP. Foi uma decisão muito difícil! Apesar de querer continuar na USP por muitos motivos, a Faculdade de Medicina sempre foi muito conservadora, muito fechada, e o espaço político para o curso, naquela época, era muito pequeno. O curso de Terapia Ocupacional não tinha independência, era um pequeno departamento do Curso de Medicina. Acabei optando pela PUC-Campinas porque, na época, havia uma grande inserção política de nosso curso na universidade... E isso, para mim, era o ideal de vida universitária! Era poder participar de movimentos sociais, da discussão da produção de conhecimento, junto com outros cursos, etc. Isso define um pouco da minha trajetória... Na verdade, as minhas escolhas sempre estiveram ligadas à possibilidade de criar e ter prazer no trabalho. Do ponto de vista financeiro, do ponto de vista social, para o mundo, foram escolhas péssimas, mas eu me mantenho até hoje trabalhando e feliz com o que eu faço... Enfim, são escolhas que têm a ver com a escolha dessa profissão.

Em 2009, com a possibilidade de fechamento do curso de Terapia Ocupacional, saí da PUC-Campinas, retornando posteriormente em 2014, já que o curso voltara a ser oferecido com novo currículo e nova configuração. Nesse intervalo de tempo, transitei pela Paraíba, participando da formação do primeiro curso de Terapia Ocupacional do estado, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Retornando à Campinas, participei da gestão municipal, junto à Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal, fortalecendo minha atuação na Rede de Atenção Psicossocial de Campinas.

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O G.E.I.T.O. surge em 2000, com o início da crise da universidade, quando a possibilidade de criar vai sendo substituída pela burocratização da Educação, pelo controle da produtividade e da ação do professor dentro de sala de aula. Lembro-me que antes os alunos diziam que iam reclamar no MEC... um dia, começaram a dizer que iam reclamar no PROCON! Aí compreendi que muita coisa havia mudado no mundo da Educação! O G.E.I.T.O. surge como uma possibilidade de estudar e produzir conhecimento com criatividade, liberdade e prazer. Uma proposta que ainda estamos alimentando, uma vez que nos compreendemos como um grupo de acolhimento, de estudos e de construção de conhecimento a partir da prática. A gente percebe que o trabalho na instituição vai ficando cada vez pior, os nossos alunos chegam com toda a carga das dificuldades da Saúde, do SUS, enfim, da sociedade e a gente encontra ali um espaço de alimento, de acolhimento, de possibilidade de discutir a prática sem medo de represálias, opressão, sem necessidade de ter um discípulo, uma igreja, uma seita, essa coisa de ter que seguir alguém. Estuda a complexidade, mas vamos compondo isso de acordo com as necessidades. Começamos a perceber que não estamos adoecendo no trabalho. E isso é muito gratificante porque é o resultado de um trabalho que nasce com esse objetivo, permitindo produzir conhecimento em trânsito afetivo e efetivo entre ciência-prática-assistência. É a possibilidade de sobrevivência das nossas vidas profissionais.

Eu fiz muitas coisas que não são específicas da terapia ocupacional. Como supervisora clínico-institucional, a terapia ocupacional leva um olhar específico e as pessoas identificam essa diferença. Eu trabalhei em diferentes projetos como gestora ou como facilitadora de grupos, que também não é específico de terapia ocupacional, mas as pessoas percebem a especificidade da terapia ocupacional nesses fazeres. Acho que eu contribuí de alguma forma e também ganhei muito com essas experiências. Mas, destaco um aspecto importante: a participação em projetos multiprofissionais vem permitindo uma ampla divulgação e reconhecimento da Terapia Ocupacional. As experiências que me influenciaram foram muitas, eu falei algumas para marcar uma linha do tempo.

Acho que faltou falar uma coisa que foi muito importante para o percurso da terapia ocupacional brasileira, algo que eu acho que não contribuiu para a história da profissão enquanto produção de conhecimento, que é o que eu vou chamar,

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inicialmente, de cisão entre teoria e prática, cisão entre academia e prática clínica/assistencial/profissional. Eu já falei o quanto as mudanças na política educacional, nas exigências do novo modelo da educação determinaram o percurso da academia e da profissão. Até a década de 1990, meados de 1990, não havia uma cisão entre a prática clínica e a academia. Os profissionais trabalhavam na assistência, na Educação, nas associações de classe e representação profissional, na pesquisa. Em 1995, em um congresso de terapia ocupacional, essa cisão ficou marcada para sempre. De alguma forma, passou-se a entender que produção de conhecimento é função acadêmica apenas... A academia assume a primazia do conhecimento, muitas vezes desvinculada e cindida da prática.

A partir desse momento, acho que os congressos e a terapia ocupacional perdem, porque diminui muito o número de pessoas que podem, de fato, trazer conhecimento inovador e aumenta muito o número de projetos científicos que nem sempre expressam os anseios da classe profissional. Essa cisão vai se fortalecendo, vai aumentando cada vez mais. Acho que hoje as pessoas reconhecidas profissionalmente são doutores, embora nem sempre a produção de conhecimento da academia e dos doutores atenda às necessidades do profissional que está na ponta, precisando responder às questões da prática. Essa cisão permanece e essa é minha maior crítica à burocratização da academia. Eu compreendo a necessidade da classe profissional em atender exigências da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do MEC, embora sejam exigências, para mim, bastante questionáveis, discutíveis. A classe profissional precisa disso, eu consigo compreender. O que eu tenho discutido e não tenho concordado, é que a nossa classe profissional não optou pelo caminho de cumprir as exigências questionando as exigências. Pelo contrário, essas exigências foram absorvidas como referências de valor, passando a definir as relações de significação e valoração da prática e do conhecimento produzido pela própria classe profissional. Obviamente, foi a hegemonia da academia que tomou para si esse lugar.

Por conta de estar escrevendo um artigo voltado para a terapia ocupacional nos novos paradigmas, eu ressalto duas coisas da produção brasileira: primeiro a análise da atividade humana como práxis, essa é uma produção brasileira que tem a ver com o nosso contexto histórico, social e político (desenvolvida por vários autores brasileiros: Léa Soares, Marília Caníglia, Berenice Rosa Francisco...) e é importantíssima. Hoje a

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Ciência Ocupacional resgata, dando outros nomes e categorias para falar disso que já falamos em 1980. E, a outra questão é analisar profundamente o uso da palavra “ocupação” no Brasil, no sentido social e histórico para a sociedade e para a terapia ocupacional. Existem problemas para a aceitação do termo no Brasil, a gente pode usar, mas tem que ressignificar, que avaliar a questão cultural. Ou pode não usar, permitindo o uso da atividade humana como sinônimo, porque são questões culturais que devem ser respeitadas. De novo, eu insisto que não devemos almejar a homogeneização, porque toda homogeneização parte de um critério, normalmente do critério de quem tem mais poder, do hegemônico. E no meu compromisso com a transdisciplinaridade, uma das coisas que se prega é a interculturalidade e a recusa em admitir que apenas um modo de conhecimento seja validado, porque a transdisciplinaridade dá valor a todos os modos de conhecimento. A questão é: como nós vamos dialogar? Só dá para dialogar se você tiver uma unidade que valoriza a diversidade.

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